Da nossa ontologia faz parte o corpo. Não somos em parte corpo, mas em tudo corpo (Ihde, 2002). No sentir, no pensar, na ação. Talvez esta condição nos diferencie de outros modos do ser, designadamente do orgânico (o ser animal, o vegetal), dotados de corpo, mas não de uma necessidade tão premente do habitar, da relação com o lugar. Somos ser-aí (Dasein; Heidegger, 1986/2004, 1986/2005) e a nossa ontologia é relacional. O corpo protege-se, o corpo (des)fixa-se em permanência, o corpo move-se, lavrando o território percorrido, ao mesmo tempo que traçando uma geografia interior. E-motion (Bruno, 2007) - emoção e movimento - dita o tom duplamente dinâmico da nossa historiografia. Dir-se-á que a génese da cidade (Mumford, 1961/2004) remonta ao imperativo da proteção e da sobrevivência do corpo, função a que se junta a vocação do mito e do décor (função-mito-décor) (Pimenta, 1989). A cidade-abrigo, a cidade-templo, a cidade-jardim. Num só lugar acomodam-se (ou inquietam-se) muitos sentimentos. O medo (Bauman, 1999/2001, 2001/2003; Kovadloff, 1998), o belo (Han, 2015/2016a); Kant, 2020, a natureza-paisagem (Cauquelin, 1989; Simmel, 1913/2011), o princípio de felicidade ou o inter-esse (Arendt, 1958/2001). E tantos outros. Mas também múltiplos (já) (Perniola, 1991/1993) sentidos. O corpo transforma-se em (não)lugar sentiente. Instável nos seus (des)limites, miscigenado com todo o tipo de dispositivos tecnológicos, o pós-corpo interage (perguntamos, ainda ou mais do que nunca?) com a arquitetura material-virtual, com as mediascapes (McQuire, 2008) plantadas no espaço percorrido, imerge na humidade, na promiscuidade dos odores, na orquestração caótica de tonalidades e de paisagens acústicas, deixa-se conduzir pela experiência háptica e cinemática (Friedberg, 2002, 2006) e ainda pelo “aroma do tempo” (Han, 2014/2016b).
Será hoje a cidade um significante sem significado ou uma pura produção imaginá- ria (Domingues, 2009). O seu “possível lateral” é talvez, ainda, um excesso. A luminosi- dade perene invisibiliza os objetos, os detalhes, e ameaça a visão das paisagens celestes. A polifonia de timbres e a variabilidade de frequências tanto inspira criações artísticas e acústicas (veja-se o caso da música concreta), como coloniza o tempo interior. Mais recentemente, o corpo contraiu-se de forma radical, e de um modo especial nos espaços
urbanos, fechando-se intra-muros e inibindo-se do tocar, do cheirar, do respirar, da interação dialógica. As metapaisagens e as extensões tecnológicas do sentir tornaram-se inter-trans-lugares menos arriscados e mais convidativos enquanto formas comunicati- vas do habitar. Assistimos ao começo do fim da experiência urbana (Felice, 2009/2012)? De que modo a organicidade e as paisagens pós-urbanas resistem ainda? Aguarda-nos um cântico surdo, lamentando a morte do corpo-cidade sentiente? Se a “fuga” à nature- za motivou originariamente o edificado da cidade, ao mesmo tempo que o seu resgate, sob o modo de uma ideia híbrida que encerra tanto a harmonia na sua forma utópica, como a visão aterradora de um universo indomável e pré-humano, inquieta-nos hoje a (im)possibilidade do corpo-lugar e o seu “cumprir-se no devir” (Henri, 2001).
Tendo arriscado temperar esta publicação com um apelo a uma visão organicista da (pós)cidade, foi lançado o desafio de escrever sobre a urgência do (re)sentir o (pós) corpo-(pós)lugar, não esquecendo o odor das temporalidades e dos percursos, as paisagens cinestésicas, os desarranjos (in)visíveis do território sobre o qual se distende o “corpo-sem-órgãos” (Deleuze & Guattari, 1980/2001), o ser próprio imiscuído com o do lugar vivido.
Tomando o dodecafonismo como referência que inspira um certo arrojo que aqui procuramos imprimir, desejaríamos aplanar o grau da visão, dominante na nossa cultu- ra, seriando-o numa escala equitativa (embora rica de infinita diversidade) de sentidos, reclamando para cada registo sensorial - que artificialmente confundimos (com exces- siva preocupação de discernibilidade) com o olfato, a audição, o tato - uma mesma exigência e gradação tónica, inextricável no seu conjunto. O debate sobre a significância dos sentidos na experiência urbana precisa dos contributos dos estudos culturais, da comunicação em geral, cruzando fronteiras disciplinares, abordagens metodológicas e geografias, de forma a (re)constituir a concretude dessa experiência e as condições que a alimentam e tornam possível.
Do ponto de vista etimológico, o termo “sentiente”, que nesta publicação norteia a problemática de base adotada, de algum modo subjacente aos diferentes artigos/conteúdos, afim de “senciente”, advém do latim, correspondendo ao particípio presente de sentire, “sentir” e definindo o “que sente” (Porto Editora, s.d.). Entende-se aqui o uso da palavra na sua acoplação à cidade (cidade sentiente), impondo-se assim perspetivar as “formas sensíveis da vida social” (Sansot, 1986) que no espaço-corpo urbano se manifestam, gerando sentires e sentimentos (Stimmung) que catapultam uma dada visão (cinestésica), de natureza preferencialmente fenomenológica, sobre o mundo contem- porâneo, tal qual vivido no quotidiano. Com esta experiência estão comprometidas as subjetividades, as instâncias materiais do exercício relacional que define (e tensiona) as identidades sociais e culturais, mas também a expansão do ser sobre o seu carácter compósito, híbrido, pós-humano (Hayles, 1999). A cidade-carne que importa explanar desdobra-se, pois, em múltiplas gradações do sentir, extravasando o sentido comum que a palavra “sensível”, também neste quadro não desconsiderada, emana por si. Cida- de-sentiente pretende afirmar-se como uma expressão, em suma, “trajetiva”, nos termos de Berque (2000), no seu sentido movente entre a subjetividade do flanêur e o objetual que, no contexto da deriva urbana, o co-constitui e interpela.
Por meio de um diverso conjunto de textos, que seguidamente sumariamos, deam- bulamos pela cidade territorial-imaginária, geográfica-virtual, real-surreal, corpo-performance, espaço-movimento, a cidade que se escuta, a cidade-luz, entre outros. São neste número contempladas variadas estações de partida rumo à produção do conhe- cimento sensível: a ontologia do ser e do espaço na sua correlação, as atmosferas, as ambiências e as tonalidades urbanas, as sensações e emoções; a música, os passeios sonoros e a poética em ligação com o lugar, a experiência eco-acústica urbana; as festividades e as performances de rua; a pele e os (sub)liminares transitivos; as (des)ocu- pações, as proximidades-distanciamentos; a luz feita carne do controlo, da vigilância e da resistência; o corpo dissonante, o corpo-ciborgue; a reinvenção das mobilidades e o contra-movimento do não-lugar…
Em “Biopolíticas da Luz nas Cidades Modernas e Contemporâneas: Do Olhar-luz Disciplinar às Luzes Operacionais de Controle”, Antoine Nicolas Gonod d’Artemare ex- plora a forma como a implementação da iluminação pública integrou a procura de uma maior eficiência de vigilância e controle da população no espaço urbano, usando a cidade da Paris moderna como exemplo. Defende que a iluminação pública parisiense foi parte integrante da arte obscura da luz e do visível, acionada pelo poder disciplinar. E como não há poder sem resistência, o autor, no seu propósito de desnaturalizar a relação que as culturas ocidentais têm com a luz, mostra caminhos de oposição possíveis de contra-luz à visibilidade total e panóptica proporcionada pelas luzes contemporâneas, partindo do filme-instalação Gegen-Musik (Contra-tempo), de Harun Farocki.
Refletindo sobre a situação atual da marca-cidade Rio, Ana Teresa Gotardo e Ricar- do Ferreira Freitas em “Corpos Dissonantes e as Lutas Pelo Espaço Urbano: Narrativas em Documentários Internacionais Sobre o Rio de Janeiro” propõem-se romper o imagi- nário do corpo perfeito atribuído à marca Rio na construção da “cidade olímpica”. Com recurso a elementos da análise fílmica e da narrativa, destacam nos documentários em análise os movimentos em busca de representação de mulheres trans e travestis, pes- soas negras e pobres e pessoas com deficiência, os quais, no seu entender, interferem no espaço de luta pelo direito à cidade e pelo direito a narrar-se, mostrando outras possibilidades de existência. Ligia Dias e Julieta Leite, mantendo-se no quadro da reflexão sobre as políticas dos corpos no espaço urbano, no texto “Cidade e Performatividade: Rupturas Normativas no Espaço Público Informal - Um Estudo de Caso na Cidade do Recife”, trazem para a discussão o conceito de espaço performativo disruptivo. A inves- tigação realizada, que inclui uma contextualização histórica e observação realizada em campo, é relativa ao entorno do Mercado de São José, na cidade do Recife, Pernambuco, Brasil e às lógicas de apropriação desse espaço público pelos trabalhadores do comér- cio informal. As autoras caracterizam as relações de apropriação espacial pelos corpos performativos e evidenciam como os corpos e as suas performatividades, através das suas vivências quotidianas, estão intrinsecamente ligados a modos de ser do espaço múltiplos, os quais, no seu entender, deveriam integrar as reflexões que sustentam as práticas urbanas.
O artigo que se segue resulta de uma investigação mais abrangente, realizada no bairro Lavapiés, na região central de Madrid, Espanha, por Regiane Miranda de Oliveira Nakagawa. No texto “A Praça Nelson Mandela: Espacialidades em Fronteira”, a autora elege a praça Nelson Mandela, ponto de encontro de senegaleses e outras etnias, para explorar a forma como, na referida praça, ocorre a formação de espacialidades distin- tas, originadas pela diversidade de interações e ligações entre os diferentes grupos que frequentam o espaço. A ideia da fronteira semiótica em Lotman enforma o trabalho de campo realizado, que se inspirou na deriva situacionista e foi conduzido à luz dos princípios da observação participante. Fruto de um trabalho etnográfico, o artigo de Lucas Durr Missau, “Comunicação e Mobilidade: Experiências de Deslocamento Mediado em Buenos Aires”, descreve como as narrativas sobre as experiências de migração e os fluxos diários de deslocamento se articulam com a mediação de aplicações de transpor- te. A atenção recai nas especificidades da experiência de mobilidade de habitantes que usam aplicações de transporte para se deslocarem na cidade, para compreender como o uso dessas apps integra o quotidiano das pessoas e averiguar do papel que têm na inclusão social.
Em “Espaço Inventário, Espaço Inventado”, Frederico Augusto Vianna de Assis Pessoa privilegia a escuta ou a abertura dos ouvidos numa abordagem à cidade que visa compreender as relações sociais e a estruturação urbana que as manifesta. A cidade brasileira Belomonte, localizada no sul da Bahia, constitui o seu território de escuta, ma- téria a partir da qual mapeia um território de sensações e pensamentos que atravessam aquele que escuta, adicionando ao que a escuta capta, o que é vivido, refletido e enten- dido. Esse território é devolvido ao leitor num ensaio em que se cruza a estética literária com a reflexão racional sobre o que a experiência do mundo, mediada pela escuta, revela sobre uma cidade.
Os dois artigos que se apresentam em seguida têm como pano de fundo comum a pandemia da covid-19 vivenciada pelo mundo fora desde 2020. Em “Janelas Sonoras em Tempos de Pandemia”, Micael Herschmann e Felipe Trotta analisam o modo como as janelas foram usadas temporariamente pelos atores nas cidades como meios de in- termediação entre espaços privados e públicos, com o propósito de estabelecer, através da emissão de sons, vínculos sociocomunicacionais relevantes. Usando o material audio- visual e narrativas recolhidas durante um estudo exploratório realizado nos média e nas redes sociais sobre o comportamento e reações dos atores durante as quarentenas da covid-19 que ocorreram em 2020 e 2021 em diversas localidades do globo (com desta- que não só para os contextos do Brasil e Estados Unidos da América, mas também dos países do continente europeu), os autores evidenciam, neste movimento de viragem para as janelas e varandas, um duplo fluxo de aproximações, por via de experiências sonoras de solidariedade; e de afastamentos, por via de experiências sonoras de pro- testo e geradoras de disrupção social. As cidades confinadas despertaram nos que as habitam outras necessidades e desejos, nomeadamente o desejo de caminhar. “Sobre Caminhar em Confinamento”, artigo de Rui Filipe Antunes e Sílvia Pinto Coelho, explora, partindo da experiência de caminhar durante os confinamentos decretados em Portu- gal, a relação entre caminhar e confinamento. Para o efeito, convocam a experiência de caminhar na prática artística, exemplos de clausura em contraposição ao dever cívico de confinamento, para refletir sobre as relações de movimento nas cidades confinadas, propondo relações de corpo-espaço-movimento.
As superfícies urbanas da cidade de Atenas durantes os anos de crise económi- ca são a matéria a partir da qual Panagiotis Ferentinos, no artigo “A Derme da Crise - Imaginando Atenas em Crise Como uma Colagem Urbana”, se propõe ler a crise e compreender como a esfera pública respondeu e reagiu a este período de declínio e recessão. Entendendo essas superfícies como constituindo a pele de Atenas, com a qual interagem os cidadãos, o autor foca-se no estudo de várias dimensões dessa pele e na forma como contribuem para a formulação de uma colagem urbana e uma assem- blage de elementos visuais que coexistem, fazendo de Atenas um caso único de cidade supermarcada.
O artigo “A Metrópole Carnavalizada: Os Blocos de Rua Como Performances Sur- realistas e Situacionistas na Cidade do Rio de Janeiro” de André Videira de Figueiredo tem como motivo os blocos não oficiais do Carnaval de rua do Rio de Janeiro, exemplificado pelo Cordão do Boi Tolo. Articulando a análise literária, com a reflexão sociológica e a “flânerie etnográfica”, discute-se este carnaval de rua como uma atualização das pro- postas surrealista e situacionista, vendo-o, do ponto de vista estético e cultural, como experiência criativa de performatização dos corpos e, do ponto de vista político, como forma de resistência política e cultural que consubstancia novas ambiências e vivências que emprestam novos significados ao espaço urbano.
A encerrar o número, ainda sobre Carnaval no Brasil, mas desta feita na cidade de Maceió-al, figura o artigo de Ernani Viana da Silva Neto e Susana A. Gastal, “Turismo e Cultura: O Carnaval na Cidade de Maceió (Brasil)”. Trata-se de identificar como se organiza historicamente o Carnaval em Maceió e destacar as relações do mesmo com o campo cultural e turístico no espaço urbano, usando para o efeito dados fornecidos por entrevistas a atores locais nas referidas áreas, que põem a descoberto as intenções asso- ciadas às festividades. Os autores concluem apontando contradições entre a promoção de um Carnaval local popular e inclusivo e o incómodo causado pelo ímpeto carnava- lesco, reforçadoras de estereótipos sociais e culturais e da impossibilidade de acesso às festas das camadas populares, por via da sua origem étnica.
Nas duas secções seguintes, o número integra uma entrevista a Hildegard Wes- terkamp, “Entrevista com Hildegard Westerkamp: ‘Quando Começamos a Ouvir o Mun- do Estamos a Tratar da Vida Toda’” por Madalena Oliveira e Cláudia Martinho, e uma recensão por Tathiana Veronez, sobre o livro de Fabio La Roca, A Cidade em Todas as Suas Formas, publicado em 2018 pela Editora Sulina.