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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.226 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018226.14 

RECENSÕES

FERRO, Lígia

Da Rua para o Mundo. Etnografia Urbana Comparada do Graffiti e do Parkour,

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2016, 304 pp.

ISBN 9789726713784

Vitor Sérgio Ferreira*

*Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 — 1600-189 Lisboa, Portugal. vitor.ferreira@ics.ulisboa.pt


 

Da Rua para o Mundo. Etnografia Urbana Comparada do Graffiti e do Parkour, publicado pela Imprensa de Ciências Sociais em dezembro de 2016, não é apenas mais um livro sobre graffiti. Desde logo porque a autora, Lígia Ferro, integra na sua investigação uma outra prática mais recente que, de forma mais discreta que o graffiti, tem vindo também a ocupar o espaço público da cidade – o parkour –, presumindo que ambas “constituem práticas esteticamente diferentes que têm várias características socioantropológicas comuns” (p. 58).

Com efeito, o graffiti e o parkour são práticas cujos protagonistas partilham as ruas da cidade como “palco” das suas performances, uma metáfora dramatúrgica usada várias vezes ao longo do livro e reveladora do seu ponto de partida teórico e metodológico: é nas ruas que writers e traceurs gostam de encenar e dar a ver as suas artes, apropriando-se dos itinerários e equipamentos que têm disponíveis de forma criativa e exploratória, ao dar-lhes usos originais e distintos dos previstos na sua organização e construção. As ruas das cidades constituem-se, assim, como palco das “múltiplas mobilidades, aprendizagens e sociabilidades” desses protagonistas (p. 223), onde se “constitui todo um campo de ­possibilidades para pintar e saltar” (p. 238) e a ­partir do qual se pode contemplar a própria “complexidade urbana” (p. 169).

Ainda que vulgarmente associadas a um imaginário de liberdade, na verdade as ruas são reguladas, geridas e controladas por normativas políticas e institucionais específicas a cada cidade. Por entre as diferentes malhas de complexidades urbanas que se entretecem, os campos de possibilidades disponibilizados às formas de representação visual e de movimentação coreográfica de writers e traceurs vão também adquirir “configurações” muito diferenciadas, conceito que Lígia Ferro toma de empréstimo a Norbert Elias na construção da sua hipótese. Por outro lado, se o graffiti e o parkour partilham condições locais distintivas e particulares à complexidade urbana de cada cidade, partilham também uma condição global na sociedade contemporânea, já que as respetivas performances podem ser encontradas em praticamente todas as manchas urbanas do mundo.

À natureza “glocal” dessas práticas que se movem “da rua para o mundo”, Lígia Ferro aponta ainda o facto de comungarem de condições de emergência semelhantes, localizadas nas periferias urbanas (dos Estados Unidos da ­América, no caso do graffiti, e de França, no caso do parkour), em contextos socialmente desfavorecidos, cultural e geograficamente marginais, tendencialmente etnicizados e masculinizados, e etariamente delimitados à condição juvenil, no seu início. É por referência a este conjunto de condições históricas que o graffiti, a par de outras práticas culturais de rua como o skater, o rap ou o breakdance, por exemplo, têm sido frequentemente objeto de investigação no campo dos estudos de juventude a nível nacional e internacional.

A abordagem dessas práticas nesta obra é, no entanto, perspicazmente deslocada para fora dos lugares de conforto teórico que os instrumentos conceptuais desenvolvidos no campo dos estudos de juventude poderiam proporcionar. Lígia Ferro fá-lo distanciando-se das abordagens tradicionais que olham para essas práticas como expressões de (micro)culturas, subculturas ou contraculturas juvenis. São abordagens que tendem a ressaltar nas práticas de rua atributos de irreverência social e de resistência micropolítica, associando-as a atitudes de desafio às autoridades e de rejeição de convenções e modos de funcionamento institucional, de contestação à ordem estabelecida e ao modelo cultural hegemónico.

Se esses traços tendem a caracterizar o graffiti e o parkour nos seus contextos de emergência histórica, uma abordagem fechada em torno dessa problematização, como bem destaca Lígia Ferro, acabaria por se tornar restritiva e pouco heurística para dar conta do ecletismo que as práticas de rua assumem nas sociedades contemporâneas. Com efeito, essas práticas têm vindo a ser continuadas ao longo do percurso de vida, marcadas por trajetórias territoriais que vão da periferia para o centro das cidades, bem como por trajetórias sociais no sentido da diversidade dos seus protagonistas e das “configurações culturais” em que se envolvem. O graffiti e o parkour são praticados por sujeitos cada vez mais heterogéneos em termos etários, étnicos, de classe e de género, estando o primeiro cada vez mais afastado da cultura hip hop.

É nesta perspetiva que, à problemática que trata estas práticas culturais como práticas juvenis, a autora vai preferir abordá-las a partir da sua inscrição urbana e das formas como interpelam os vários poderes da cidade. Não desvalorizando os atributos de resistência subcultural e social do graffiti e do parkour, a autora não os assume como totalizadores do conteúdo simbólico investido nessas práticas. Neste sentido, constrói uma abordagem teórica e metodológica que propicia, na sua investigação, apresentar de forma rica e detalhada uma paisagem socialmente heterogénea que adquire matizes e intensidades diferentes entre os diversos contextos que analisa, descobrindo e caracterizando outras “configurações culturais” construídas em torno da prática do graffiti e do parkour, para além da configuração subcultural tradicionalmente identificada em trabalhos académicos.

Consegue-o, sobretudo, graças à amplitude comparativa da etnografia que planeou e realizou. Dotada de um desenho etnográfico complexo – com triangulações entre entrevistas semiestruturadas e informais, registos escritos e fotográficos em diário de campo, e análise de textos oficiais, blogues, fotologues e redes sociais –, prolongado no tempo e multissituado no espaço, a autora inventaria e descreve com densidade compreensiva uma ampla variedade de matizes daquelas práticas de rua.

Para além da genealogia das práticas, Lígia Ferro desenvolve um exercício sistemático de comparação entre o graffiti e o parkour a um nível transnacional, deambulando em incursões etnográficas tão longas quanto lhe foi possível, entre as cidades de Barcelona, Lisboa, Paris, Nova Iorque e Rio de Janeiro. A itinerância de proximidade que realiza assume não apenas um nível transnacional mas também um nível local, na medida em que, tratando-se de práticas eminentemente móveis, a autora seguiu writers e traceurs nos seus movimentos quotidianos entre os vários espaços da cidade, observando e envolvendo-se nas situações e relações de sociabilidade que travam nas ruas, e recuperando assim, in situ, as referências simbólicas que as medeiam.

Nos moldes de uma etnografia urbana multissituada, a autora aborda o graffiti e o parkour não apenas a partir dos diferentes modos de relação estabelecidos entre os seus praticantes, mas igualmente entre estes e os vários agentes que, em cada cidade, com eles lidam a partir do campo político (nomeadamente os poderes públicos municipais), do campo cultural (no caso do graffiti) e do campo desportivos (no caso do parkour).

Com a perspicácia de quem há muito se move nesse terreno empírico, Lígia Ferro cedo constatou que tanto o graffiti quanto o parkour, desde o seu surgimento, estiveram no centro de diferentes estratégias e discursos políticos por parte dos poderes municipais. Afinal, são práticas que questionam “formas invisíveis de poder” (p. 35) ou, pelo menos, formas mais subtis de exercício de poder, na regulação dos usos da rua e de controlo sobre as interações que nela se desenvolvem entre pessoas e das pessoas com os equipamentos urbanos. Desta feita, interessou à autora analisar, por um lado, as diferentes formas de atuação dos poderes municipais face ao graffiti e ao parkour, nas estratégias que empregam para controlar as práticas e gerir as interações sociais que agregam na rua; por outro lado, interessou-lhe também observar as reações dos protagonistas face às formas municipais de gestão e controlo das ruas e ao campo de possibilidades que criam, nos “modos como são interpretadas, geridas e negociadas pelos protagonistas na construção dos seus projetos.” (p. 65).

Para além do espaço de possibilidades disponibilizado pelos poderes políticos municipais, a autora foi ainda olhar para as tendências e resistências em torno das formas de apropriação dessas práticas de rua por parte de instituições públicas e privadas dos campos cultural e desportivo. Isto considerando que as formas diversas como o graffiti e o parkour se relacionam com as instituições desses campos (instituições artísticas, mediáticas, indústrias culturais ou de design corporal, etc.), também estruturam diferentes espaços de possibilidades para a legitimação social dessas práticas nas várias cidades analisadas, resultando ainda em impactos muito diversificados nos projetos e trajetos dos seus protagonistas.

Esta entrada inovadora permitiu a Lígia Ferro identificar mais configurações culturais para estas práticas, para além da já conhecida configuração subcultural – onde as performances do graffiti e do parkour são localizadas em contextos intersticiais, e associadas à construção de identidades alternativas. Desde logo, a configuração institucional destas práticas em espaços e agendas públicas e privadas, quando o graffiti e o parkour marcam presença regular e visível nos campos cultural e desportivo das cidades, bem como nas agendas de iniciativas políticas dos municípios. Embora muitas vezes contestado por protagonistas com projetos situados em configurações subculturais com base em argumentos de “autenticidade”, o carácter institucionalizado do graffiti e do parkour abre o espaço de possibilidades de mercadorização das suas estéticas e saberes e, consequentemente, de profissionalização dos seus atores.

É o que tem acontecido em Lisboa e em Barcelona, por exemplo, embora com trajetórias em sentido inverso: a autora constatou existir uma abertura a estas formas de expressão cultural pelo campo político em Lisboa, bem como pelo campo desportivo e mediático, no caso do parkour, sendo, porém, o reconhecimento do graffiti pelo campo da arte bastante mais difícil; ao contrário do que acontece em Barcelona, onde o percurso da história destas práticas tem vindo a desenrolar-se no sentido de serem reconhecidas pelos poderes municipais como da ordem do incivismo e vandalismo, sendo porém bem recebidas em instituições culturais e mediáticas, nomeadamente o graffiti.

Por fim, Lígia Ferro constatou ainda a configuração mediadora das práticas de rua que investigou, onde são ensaiados projetos que potenciam as trocas entre os recursos concedidos nos contextos das práticas e outros provenientes de vários campos da vida social. São trocas que potenciam e exploram as “funções de mediação” dos saberes e sociabilidades inerentes às práticas de rua em áreas de atuação social como a cidadania e o empoderamento, a coesão social e comunitária, a aprendizagem e a capacitação para a vida, o sucesso escolar e profissional, promovendo mecanismos alternativos às fórmulas tradicionais e institucionalizadas.

Com frequência, nas cidades onde os poderes municipais e institucionais reconhecem a legitimidade social das práticas de rua, esses poderes não apenas articulam com os protagonistas através do estabelecimento de protocolos de ação ou da concessão de outro tipo de apoios, como muitas vezes são eles próprios a tomar a iniciativa de criar projetos de mediação entre grupos sociais e referências culturais. São destacados no livro vários projetos que investem nas potencialidades mediadoras das práticas de rua em cidades como o Rio de Janeiro, Paris, Lisboa e Barcelona, onde o graffiti surge ­frequentemente articulado com projetos de ajuda comunitária em bairros de periferia, discutindo o papel de intervenção social das práticas nas vivências e imaginários dos bairros e nas trajetórias das pessoas que aí vivem, transformando, valorizando e aumentando os campos de possibilidades das pessoas e dos territórios onde atuam. No polo oposto ao Brasil e à Europa, está Nova Iorque, onde é muito difícil concretizar projetos de mediação através destas práticas.

Um livro a ler, portanto, por quem trabalha académica ou profissionalmente com writers e traceurs, ou simplesmente por quem tem curiosidade em descobrir mais sobre os mundos das culturas urbanas e práticas de rua.

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