Introdução
Lagoinha é um dos bairros mais antigos e tradicionais da cidade de Belo Horizonte. Desde a criação da capital, nos anos finais do século xix, caracteriza-se pela diversidade social e cultural significativa, traços que marcam o imaginário da população e da história da cidade até aos dias de hoje. A sua origem e formação estão intimamente relacionadas com a estrutura física e urbanística da cidade. Sem desconsiderar outros fatores, essas características impulsionaram o crescimento e a consolidação do bairro, que se tornou reconhecido pela sua “vida boémia” (Machado e Pereira,1997).
Entretanto, conformou-se nesse espaço um ambiente fortemente pontuado pelo bucolismo e pela tradição, apesar da boémia. De acordo com Carneiro (2001), conviviam no bairro grupos sociais diferentes, de modo que, curiosamente, o ritmo natural do tempo ditava a dinâmica do bairro, onde durante as tardes as famílias se reuniam na praça, havia procissões religiosas, e os amigos encontravam-se nos bares da região. Pela noite, quando as famílias se recolhiam, entravam em cena os boémios, prostitutas e pessoas que trabalhavam ou desfrutavam da vida noturna. Desta maneira, as pesquisas sobre a história do bairro mostram a coexistência de várias características diferentes, seja o Lagoinha da boémia, da vida bucólica, das atividades religiosas, dos antiquários, dos ambulantes, palco do surgimento dos primeiros blocos de carnaval da cidade, das equipas de futebol de várzea, entre outras.
Devido à sua área de localização, este bairro sempre absorveu as alterações estruturais pelas quais a cidade foi passando ao longo dos anos, sendo impactado, principalmente, pela expansão do centro da cidade. A partir dos anos de 1930, esta teve grandes interferências na sua extensão e limites administrativos, sobretudo devido às intervenções viárias, que acabaram por desfigurar o seu património. Assim como muitas outras regiões da cidade, o bairro Lagoinha teve várias áreas demolidas para a construção de grandes avenidas, que o seccionaram, ao mesmo tempo que implicaram uma emergência de novos tipos de uso do seu território. Especificamente devido à sua localização, pois fica conectado ao centro da cidade e é um ponto inicial da avenida direcionada ao vetor norte da região metropolitana da cidade, bem como aos dois principais aeroportos que servem a capital mineira, a área passou por significativas alterações urbanísticas, tais como a construção do principal terminal rodoviário da capital, de túneis que interligaram regiões heterogéneas da cidade, o complexo de viadutos que dão acesso ao centro da cidade, bem como a estação do trem metropolitano, e ainda, mais recentemente, intervenções ligadas à Copa das Confederações de 2013 e à Copa do Mundo fifa 2014. Com isso, a maioria das intervenções urbanas, sobretudo as de larga escala, multiplicaram-se no entorno do bairro e mudaram drasticamente a dinâmica social que o caracterizava, causando um estrangulamento territorial, além de um paulatino isolamento em relação à cidade, com o esvaziamento das ruas adjacentes e sua posterior degradação física.
Ao mesmo tempo, essa região perdeu gradualmente a sua população a partir dos anos de 1970, apesar do poder público acreditar na sua recuperação em virtude da grande concentração de investimentos públicos, marcados pela construção do complexo viário e das outras grandes obras. Contudo, o que se observou, foi um acentuado processo de descaracterização do bairro e da sua organização social. De acordo com Machado e Pereira (1997, p. 38), alguns setores da imprensa encarregaram-se de anunciar o que chamavam de “a decadência do Lagoinha”, pois “O Lagoinha está morrendo”, o Lagoinha é “um bairro fantasma”, ou “vamos salvar a Lagoinha”. Tudo isso alterou a sociabilidade do local, levando-o a um estado de deterioração, ainda que resistissem ali uma população e um património clamando por se reintegrar na vida da cidade.
O bairro Lagoinha, pela Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo tem o seu zoneamento definido como “Zona de Adensamento Restrito”, ou seja, trata-se de uma região com restrições para ocupação, que por infraestrutura inexistente ou deficiente, ou ainda por questões ligadas à articulação viária e às condições topográficas, tem a ocupação desestimulada. Esta lei trata o bairro como área de importância cultural e económica para a cidade, garantindo-lhe proteção como património cultural, com a preservação da sua paisagem urbana. Para a proteção do património foi criada uma Área de Diretrizes Especiais - ADE, que se constitui como instrumento de preservação de áreas referenciais para a população, que mereçam legislação específica. No entanto, a ade Lagoinha ainda não foi regulamentada e não prevê nenhuma política de proteção para o bairro.
Segundo Sapori, Sena e Silva (2010), até ao ano de 1995 o tráfico de drogas em Belo Horizonte era composto pela venda de canábis e cocaína, e, a partir desse ano, com a entrada do crack na cidade, ocorre uma alteração nesse mercado. O crack que chega a Belo Horizonte era abastecido pela rota vinda de São Paulo e começou a ser comercializado na região da Pedreira Prado Lopes, vizinha do bairro da Lagoinha. Os pesquisadores apontam um fenómeno muito peculiar na cidade e relacionam o processo de entrada e disseminação do comércio e uso do crack com o recrudescimento dos homicídios, particularmente no período de 1997 a 2004, momento em que se deu a consolidação do tráfico dessa droga. Dessa maneira, pela proximidade das “bocas de fumo”, o bairro Lagoinha passou a compor um local de aglomeração dos usuários de crack, que, associado ao ambiente degradado, deu uma nova configuração de uso ao espaço, impulsionando uma mudança nas sociabilidades no local. O argumento do estudo é que o bairro se conforma numa “cracolândia” em decorrência de condições “ideais” para tal, contando com alto grau de desorganização social. Zilli (2004), na sua pesquisa sobre o tráfico de drogas na Pedreira Prado Lopes, vizinha do bairro Lagoinha, afirma que a localização estratégica em relação ao centro de Belo Horizonte, e a própria configuração ambiental interna da ppl, favorecem a proliferação do tráfico de drogas e dos gangues ligados à sua exploração, e, em medida inversamente proporcional, esses mesmos fatores prejudicam o trabalho de repressão policial. Trata-se de um local com tráfico bem estruturado e que movimenta muitos recursos, principalmente em função do comércio de crack. De acordo com esse autor, ao cair da noite, a Pedreira Prado Lopes deixa de ser apenas o lar de toda uma comunidade de trabalhadores para se transformar no “paraíso do crack”, que fornece de forma inigualável a droga para a cidade de Belo Horizonte (Zilli, 2004, p. 115).
Beato et al., (2001), num dos primeiros estudos exploratórios sobre a associação entre conglomerados de homicídios e tráfico de drogas na cidade de Belo Horizonte, demonstram que o que se observou em certas áreas da cidade, inclusive na região da Lagoinha, não foi aleatório. A Pedreira Prado Lopes já tinha um cenário de alta incidência de criminalidade, com uma rede de tráfico de drogas bem organizada, com possibilidades de expansão, o que favoreceu a entrada dessa “nova pedra” no caminho. Os autores indicam um conglomerado composto pelos bairros Lagoinha, São Cristóvão, Centro, Pedreira Prado Lopes, Concórdia, Floresta, Bonfim e o Colégio Batista, que apresentaram uma taxa anual alta de homicídios, contando com 22,6 casos por 100 mil habitantes. Os dados sugerem que os conglomerados estão relacionados com bairros e favelas em que parece prevalecer o tráfico de drogas, principalmente naquelas onde há o comércio ilegal do crack.
As análises de Beato et al., (2001) e Sapori, Sena e Silva (2010) corroboram a conexão entre o tráfico de drogas, em especial o crack, e o recrudescimento de homicídios, sendo esses fenómenos sociais espacialmente e temporalmente concentrados, pois não acontecem homogeneamente em toda a cidade. As regiões onde há grande consumo dessa droga costumam apresentar índices mais altos de violência e crimes (em geral), e esse facto mostra-se de grande relevância para esse estudo, pois ajuda a entender o facto de a cracolândia se localizar na região da Lagoinha, pois entende-se que o espaço já tinha características peculiares para a conformação de tal realidade. Chamamos a atenção para a possiblidade de análise da emergência desse tipo de fenómeno social, com base nas questões teóricas da ecologia humana e desorganização social.
Neste sentido, as pesquisas apontam para um aumento da criminalidade na região da Lagoinha durante este período, explicável em grande medida pela disseminação do tráfico de crack (Beato et al., 2001; Sapori, Sena e Silva, 2010; Zilli, 2014). Como prova dessa realidade caracterizada pelo grande número de pessoas que estavam em situação de uso de drogas nessa região da cidade, a prefeitura de Belo Horizonte implantou o Consultório de Rua, um programa voltado para o atendimento e recuperação de dependentes e usuários de drogas. Apenas em 2012, tinham sido assistidos pelo programa, responsável pela região Noroeste da capital, onde se localizam o Complexo da Lagoinha e a Pedreira Prado Lopes, cerca de 3960 pessoas em 15 meses.1
Dessa forma, a tensão e os conflitos no bairro da Lagoinha, que em outros tempos giravam em torno da prostituição e da boémia, atualmente deixaram de existir ou perderam a centralidade, e foram substituídos por outros mais complexos: a violência e os problemas relacionados com o consumo e tráfico de drogas, fruto de um processo de degradação social, construído socialmente, influenciado pelas configurações da comunidade, da cidade e das políticas urbanas inadequadas ou insuficientes.
O cenário que apresenta atualmente demonstra que o local passa ainda por processos que continuam a alterar seu espaço físico e patrimonial sem preservá-lo, sendo que todo esse processo levou o território a um estado de degradação, compondo um “estado ótimo” para a formação de um território psicotrópico (Fernandes e Pinto, 2004), entendido como um interstício espacial apartados do quotidiano urbano, regido pelos mercados de produtos e serviços legais, que são sedutores de indivíduos com interesses em torno das drogas, e também comportamentos orientados para aspetos instrumentais ligados a um estilo de vida em que as drogas possuem papel importante.
A ecologia social do crime e a emergência das cracolândias
Este estudo analisa um bairro urbano que passou por dificuldades associadas à consolidação de um território marcado pela presença de usuários de crack, que lhe valeu o estigma de cracolândia. Os subsídios teóricos para o entendimento desta problemática foram os estudos que têm “o lugar” como dimensão importante para a compreensão de desvios e crimes nos grandes centros urbanos. Com isso, propõe-se adotar como referencial teórico a abordagem ecológica do crime, bem como os trabalhos subsequentes a ela e as suas reelaborações.
As primeiras referências são os trabalhos da sociologia americana produzidos pela Escola de Chicago na primeira metade do século xx. Nessa escola, a partir dos estudos de Park e Burgess (1984) que originam posteriormente os trabalhos de Shaw e Mckay (1942), inicia-se o esforço epistemológico na busca de uma ecologia social do ambiente urbano, onde a explicação para a criminalidade estaria ligada a características particulares do território, como a desorganização social de determinadas comunidades e a incapacidade das mesmas para conceberem valores comuns e controlarem de maneira efetiva o comportamento dos seus membros. A desorganização social era entendida como concentração de desvantagens económicas e estruturais, altas taxas de rotatividade residencial e heterogeneidade étnica, que afetariam diretamente a capacidade de controlo e coesão das comunidades.
A teoria da desorganização social tenta explicar que a assimetria na distribuição do poder social e político não é suficiente para explicar o motivo de áreas parecidas apresentarem, muitas vezes, níveis diferentes de qualidade de vida e de segurança, e aponta ser necessário levar em consideração na análise o papel desempenhado por certos atributos comunitários, em combinação com as políticas de segurança, que facilitam o exercício do controlo social e mantêm a organização da comunidade. O que se discute, é que a dificuldade de agir coletivamente é um dos principais fatores que afetam a segurança e a estabilidade social dos bairros. Nessa perspetiva, os processos que levam à degradação de certas áreas urbanas não estão ligados somente à distribuição do capital económico, mas são processos mais complexos, onde contam também as dinâmicas comunitárias, combinadas com as políticas urbanas e de segurança inadequadas (Carneiro, 2012). O impacto da desordem na vida comunitária acontece de forma lenta e é entendido, aqui, como um processo de construção social.
A discussão da relação entre organização social e comunitária e o controlo do crime está na raiz da reformulação da teoria da desorganização social. Esses elementos são responsáveis pela capacidade de o bairro exercer autorregulação, ou seja, pelo grau de supervisão coletiva fundamental na manutenção do controlo da ordem local, de tal forma que o grau de organização de uma comunidade passa a ser considerado como resultado dos mecanismos de superação de obstáculos estruturais que impedem o efetivo controlo social fundamentado nas redes formais e informais. Num contexto de desorganização social, o baixo nível de integração social impede o estabelecimento de laços sociais estáveis e a manutenção de valores relativos a normas, papéis e arranjos hierárquicos entre os seus residentes. Sem a perceção de valores comuns, o exercício coletivo de mecanismos informais de controlo social torna-se inoperante, fazendo surgir assim, oportunidades para o desvio.
Não são poucos os estudos no âmbito desta perspetiva teórica que consideram elementos da desordem social e física e a sua relação com a decadência urbana e o aumento do crime (Hunter,1985; Bursik, 1988; Sampson e Groves, 1989; Bursik e Grasmick, 1993; Carr, 2012). A perspetiva da eficácia coletiva (Sampson et al., 1997; Sampson, 2012) demonstra que a desordem e o crime são fenómenos compreendidos como manifestações produzidas por um mesmo mecanismo causal, que é a perda da capacidade coletiva da comunidade de exercer o controlo social nos seus limites, e isso explicaria a variabilidade do nível de segurança e ordem nos bairros. A manifestação de altas taxas de criminalidade em certas vizinhanças seria consequência de como se articulam determinados fatores históricos, estruturais, socioeconómicos, demográficos e culturais. Assim, o controlo social informal efetivo na vizinhança traduz-se na capacidade de os seus residentes obterem recursos financeiros e respostas direcionadas para as demandas locais, o que consequentemente tende a minimizar os efeitos da desordem social sobre as taxas de criminalidade local e sobre o comportamento desviante.
Ainda nessa perspetiva, a variabilidade das taxas de crimes nas comunidades relaciona-se com diferentes graus de eficácia coletiva, que significa a possibilidade de manter a coesão social e utilizar capital social em prol do bem da comunidade, no caso manter a comunidade livre do crime e da delinquência. Outros estudos como Smith, Frazee e Davison (2000), apontam ainda outros componentes do processo de desorganização social, como atividades realizadas no segmento de rua, aspetos da arquitetura e o tipo de uso dos imóveis centrais, entre outros.
A investigação sobre os mecanismos que antecedem e que relacionam desordem e crime, permitem uma forma de articular melhor uma resposta à criminalidade, que vai além do recurso ao sistema de justiça criminal e da adoção de leis, abrindo novos caminhos para a participação da administração pública local na gestão das políticas de segurança pública. A desordem é um problema em si mesmo, que tem efeitos diretos e negativos sobre a comunidade, como a diminuição da confiança interpessoal e da capacidade de cooperação e o enfraquecimento dos mecanismos informais de controlo social. Entende-se que a desordem física e social são recursos importantes para a emergência de desvios e crimes, pois refletem a ecologia das áreas urbanas e produzem situações favoráveis à sua ocorrência.
O ambiente no bairro da Lagoinha em Belo Horizonte, aproxima-se, muitas vezes, do que seria definido pela teoria como “comunidades desorganizadas”. Podemos inferir que as condições apresentadas pelo bairro Lagoinha - rotatividade de moradores, composição heterogénea do ponto de vista cultural, carência relativa de recursos económicos, baixo grau de coesão, grandes intervenções urbanísticas, abandono do poder público, proximidade com o local de venda de drogas e outras características, afetou a capacidade de os moradores consolidarem laços sociais ou manterem uma sociedade civil que fosse capaz de se autorregular, assim como de se organizar de forma a atuar de maneira eficaz dando resposta aos problemas como o da cracolândia (Shaw e Mckay, 1942; Skogan, 1989; Sampson et al., 1997; Bursik e Grasmick, 1993). De acordo Smith, Frazee e Davison (2000), se a região for socialmente desorganizada, como é descrito pelo caso da Lagoinha, ela apresentará elevados índices criminais, pois proporciona inúmeras oportunidades para a realização de desvios e crimes.
Assim, essas teorias apresentam-se como um recurso importante para a compreensão da forma como surgem no espaço urbano áreas mais propícias para o desenvolvimento de crimes e desvios, como o espaço da Cracolândia, e, mais especificamente, quais os aspetos do ambiente urbano que são de grande importância para que, efetivamente, ocorra esse fenómeno.
Babylon by crack - sobre a disseminação de cracolândias
Enquanto a secção anterior aponta uma alternativa para se analisar o processo de aparecimento e consolidação de condições territoriais que facilitam a consolidação dos espaços urbanos conhecidos como cracolândia, muito outros estudos reforçam as conexões e regularidades entre as características de desordem física e social dos lugares e o fenómeno da sua disseminação na cena urbana tanto no Brasil, quanto no mundo.
O usuário de crack é conhecido nas grandes cidades do Brasil como cracudo, “nóia”, “boca de lata”, “sacizeiro”, ou “craqueiro”, - as denominações variam de acordo com a diversidade cultural, no entanto o que pouco se altera são as características dos lugares onde se pode encontrá-los, quando se trata de um problema público. Frúgoli Jr. e Cavalcanti (2013) fazem uma análise comparativa de cracolândias de São Paulo e do Rio de Janeiro e afirmam que nesses locais os aspetos conjunturais convergem para paisagens materiais assinaladas por ruínas. No bairro da Luz, em São Paulo, e em Manguinhos, no Rio de Janeiro, as cracolândias reproduzem-se ou surgem no meio de escombros de obras de grande escala, que compõem projetos mais amplos, políticos e urbanísticos, de ressignificação de certas regiões do espaço urbano.
Em São Paulo (Frúgoli Jr. e Spaggiari, 2010; Raupp e Adorno, 2011; Rui, 2012; Frúgoli Jr. e Cavalcanti, 2013) as cenas de uso de crack estão localizadas na região central e têm uma nomeação geralmente no singular, mesmo que outros espaços venham aos poucos a tornar-se também locais de uso regular do crack, sem que se configure necessariamente a mesma paisagem. A região da Luz é uma região importante da cidade de São Paulo, que vive um processo de decadência, uma região central não somente em termos espaciais, mas, sobretudo, simbólicos. A degradação da “cracolândia” tem consequências, a longo prazo, também para todo o entorno, como a desvalorização dos imóveis, o seu esvaziamento e posterior abandono.
Embora tenha chegado mais tarde ao Rio de Janeiro (Alves, 2014; Vallim, Zaluar e Sampaio, 2015), por volta do ano de 2005, o crack instaurou uma nova dinâmica no tráfico de drogas, reconfigurando a estrutura de gestão e de vendas da droga, mas também esforços quotidianos do próprio tráfico na ordenação dos espaços sob a sua influência, produzindo novas territorialidades pelas tensões entre os fluxos e as permanências dos usuários de crack. Assim como observado noutras cidades, as concentrações de usuários de crack encontram no interior, ou nos entornos de favelas, o ambiente propício para a sua existência.
Malheiro (2013), ao analisar o espaço de uso de crack em Salvador, Bahia, recorre ao conceito de Magnani (2005) sobre os circuitos, que são conjuntos de lugares na cidade que se definem por certas práticas específicas, no caso o consumo do crack - conceito conectado à ideia de zonas morais, de Robert Park (1936), e de áreas naturais, da escola de Chicago. O cenário descrito por esses autores traduz-se em ambientes que mesclam desde prostitutas, recicladores, vendedores de objetos roubados, transeuntes e moradores de rua que povoam casarões antigos, destruídos pelo tempo, em ruas sem pavimentação, onde ocorre tráfico e o consumo de crack.
Raupp e Adorno (2015) pesquisaram sobre locais de consumo de crack na região central de Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Região Sul do Brasil) e afirmam que o quotidiano do local pesquisado se liga à história de degradação da região central da cidade, marcada atualmente por tentativas de controlo e ordenação do espaço urbano. Mais uma vez, a característica do lugar passa a ser central para explicar a ocorrência. Os autores enfatizam que a área de consumo de crack apresenta elevada poluição sonora, degradação e desvalorização, existindo muitos prédios que abrigam casas de prostituição e hotéis baratos, que facilitam a atração dos usuários. Os autores discutem ainda a hipótese de que espaços provisórios, que ocupam os interstícios de territorialidades em processo de reacomodação espacial, simbólica e quotidiana, como os escombros de grandes obras de remodelação urbana, constituam locais férteis para a constituição ou a consolidação de práticas e rotinas associadas ao uso do crack, tendo já sido, ou sendo reconhecidas como cracolândias.
De acordo com a literatura da área, esse padrão de uso e abuso das “chamadas cocaínas fumáveis” - drogas de baixa qualidade e baixo preço, mas muito viciante - atingiu situações alarmantes principalmente em cinco países da América do Sul: Argentina, Uruguai, além do Brasil, até ao final da década de 1990, e em momentos distintos o Chile e o Paraguai. Segundo Ahumada, Hynes e Cumsille (2015), esse fenómeno tornou-se visível em áreas de alta vulnerabilidade social, marcadas por episódios de violência e graves danos à saúde dos jovens e usuários em geral, sem acesso a programas de tratamento ideais. A questão teve alto impacto nos meios de comunicação e entrou rapidamente na agenda política dos governos.
García (2014) faz uma etnografia sobre jovens usuários de crack na Cidade do México, em locais de venda e uso de crack, conhecidos como fumódromos, que são cantos, campos, parques, becos e espaços fechados como casas e apartamentos. O crack chega ao México no início dos anos de 1990, mas situações problemáticas relacionadas com o aumento do seu consumo, são relativamente novas, segundo o autor, datando de 2008. O autor distingue jovens que fumam crack no contexto do bairro, aqueles mais pobres e mais expostos à violência, e aqueles que optam por fumar crack em casa, grupos com maior poder aquisitivo e proteção. Nas ruas, esses espaços exigem um conjunto de regras e estratégias feitas a partir da acumulação de certo capital, necessário para se permanecer dentro deles. Os aprendizados mais úteis, no espaço social do crack, são baseados na sua experiência de rua, conhecimentos que não têm o aval de um documento ou título oficial, um capital que adquirem em práticas e relacionamentos que envolvem o uso de crack, o roubo e a luta, o tabagismo e o uso de drogas, dando-lhes a fama no bairro (Garcia, 2014).
Outro cenário citado por suas características peculiares e propícias, localizado na América Latina, é “A zona”, área assim conhecida do bairro Mariscal, em Quito, no Equador. Alvarez (2014), em etnografia da dinâmica do uso de drogas nessa área multicultural e muito movimentada, descreve esse lugar onde o uso de substâncias lícitas e ilícitas é visível, e reconhecível à primeira vista, com suas características de boémia, controvérsia, irregularidade, marginalidade e opulência, muito frequentada por jovens e turistas. O bairro, que outrora possuíu elevado valor arquitetónico para o património da cidade, considerado um bairro de elite, décadas antes, transformou-se num lugar de práticas legais e ilegais, com grande influência multiétnica, sendo reduto de grupos indígenas, afrodescendentes e imigrantes em precárias condições socioeconómicas.
Finalmente, não se pode deixar de citar o caso de Bogotá, na Colômbia, sobre o bairro do Bronx, que chama a atenção pelas suas características de desordem urbana (Martínez, C. et al., 2017). Trata-se de uma espécie de cracolândia, localizada a poucos quarteirões do palácio presidencial, onde o rei é o bazuco, droga derivada da coca, e que se tornou um dos maiores mercados de drogas de tal país. Essa região ficou conhecida pelas suas ruas estreitas, cheias de lixo, hotéis baratos, laboratório de processamento de drogas, edifícios antigos, pichações, prostituição, presença de traficantes de armas, crianças viciadas, casas usadas por viciados - ou seja, várias características de desordem e degradação urbana.
No caso específico do bairro Lagoinha, objeto deste artigo, a sua transformação espacial em direção a um território de uso do crack coincide, para alguns autores, com a entrada dessa droga na cidade e com o aumento da violência, em particular dos homicídios, a partir da segunda metade dos anos de 1990.
Beato e seus colegas (2001), num dos primeiros estudos exploratórios sobre a associação entre conglomerados de homicídios e tráfico de drogas na cidade de Belo Horizonte, já apontavam a região do bairro Lagoinha como um cluster de homicídios e tráfico de drogas, sobretudo do comércio ilegal do crack.
Padrões e regularidades espaço-temporais das ocorrências relacionadas com o crack e outras drogas na cidade de Belo Horizonte
Foram analisados dados fornecidos pela Diretora de Estatística e Análise (DEA), do Centro Integrado de Informações de Defesa Social (CINDS), órgão da Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESP) do Estado de Minas Gerais. Trata-se de duas bases sobre registos de ocorrências de tráfico ilícito de drogas consumados na capital Belo Horizonte entre janeiro de 2012 e agosto de 2016. A primeira base de dados continha as informações sobre as ocorrências, num total de 32 442 notificações, e a outra base de dados apresenta o detalhe dos materiais arrolados nas mesmas, especificamente os que envolviam o crack (somente apreensão de crack, apreensão de crack e outros materiais) e que contaram 10159 casos.
Como etapa inicial da investigação, os eventos criminais relacionados com as drogas foram analisados de forma agregada para a identificação de aspetos gerais. Dessa forma, iniciamos a análise a partir da avaliação dos horários das apreensões de crack na cidade de Belo Horizonte no período de janeiro de 2012 a agosto de 2016. A Figura 1 mostrou que existe uma espécie de padrão temporal em relação aos horários, havendo durante todo o recorte temporal analisado uma considerável concentração de ocorrências durante o período compreendido entre as12 e as 20 horas.
Os dados obtidos mostraram a diferença em relação ao tipo de material apreendido: 8 113 casos de crack em pedras (representando 79,8% do total), 2 014 casos de apreensões de crack juntamente com outras drogas (representando 19,8% do total), e 32 casos da droga em quilos de pasta (0,32% do total de casos). A figura 2 mostra que a maior quantidade de apreensões aconteceu em pequenas quantidades da droga, o que sugere que a polícia aborda mais usuários e pequenos revendedores do que traficantes, ou que os mesmos estejam mais “vulneráveis” à atuação repressiva da polícia.
É importante salientar que os dados obtidos se referem a dois tipos de desvios, o tráfico e o consumo de drogas. O tráfico de drogas consiste em importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de acordo com a lei brasileira. Como uso de drogas, entende-se o ato de adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância estupefaciente ou que provoque dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Sendo assim, na figura 3, houve a diferenciação entre as ocorrências de consumo e de tráfico de crack na cidade no período avaliado. As ocorrências de tráfico foram muito mais notificadas do que as ocorrências de consumo, o que leva à ideia de que o foco da ação policial é distinto para usuários e traficantes.
Na figura 4 apresenta-se uma lista com os bairros de Belo Horizonte nos quais se identificaram mais ocorrências relacionadas com o uso e tráfico do crack. A região central aparece com destaque, devido a maiores investidas policiais e também por ser um local estratégico no acesso à droga devido ao grande fluxo de pessoas e veículos, população de rua, e outras características que favorecem a ocorrência do crime. Logo depois aparece a Pedreira Prado Lopes, lugar onde o crack se instalou inicialmente na cidade durante a década de 1990 e que continua ofertando o crack para o mercado ilegal, sendo que os bairros ao seu redor também aparecem na lista como a Vila Senhor dos Passos e a Lagoinha.
Essa figura sugere que outros bairros e o centro da cidade tem a presença de uso e tráfico de crack, e que acontecem em muito maior quantidade que no próprio bairro estudado, contudo nesses outros bairros não existem “cracolândias” como no bairro Lagoinha, que passou por um processo social peculiar, que permitiu a existência desse fenómeno social.
Especificamente sobre o bairro Lagoinha, ocorreram 125 notificações relacionadas com o uso e tráfico de crack no período de 2012 a 2016, sendo que 73 delas estavam relacionadas com o crack. Abaixo, na figura 5, têm-se a distribuição do número de ocorrências por ano.
Destes 73 registros, 51 (69%) foram notificados como apreensão de crack em pedras e os outros 22 casos (30%) foram de apreensão de crack juntamente com outras drogas. Diferenciando as notificações de uso e de tráfico, no primeiro caso foram 35 casos (47%) e na segunda categoria, foram 38 casos (52%), como demonstra a figura 6 .
A partir da espacialização das apreensões de drogas, foi possível mapear a incidência de apreensão e uso de crack na cidade, desde janeiro de 2012 até agosto de 2016. As operações dessa secção foram realizadas adotando soluções de geoprocessamento baseados num software livre, o Sistema de Informação Geográfica qgis 2.18, que possibilitou identificar os principais locais de apreensão de drogas na cidade, informações que podem ser usadas para o apoio de atividades de planeamento urbano além de também contribuir para o avanço das reflexões acerca dos problemas criminais urbanos mais imediatos.
No mapa 1 pode-se observar a concentração espacial das ocorrências relacionadas com o tráfico e consumo de drogas na cidade, durante o período de janeiro de 2010 a agosto de 2016. Chama a atenção a concentração de ocorrências no território, que correspondem principalmente a locais de aglomerados, bem como o centro da cidade. A elaboração do mapa de calor proporciona uma visualização mais eficaz dos pontos da cidade que mais sofreram com o problema das drogas no período analisado, uma tendência bastante usual na análise criminal atual, que permite identificar hot spots.
Os mapas números 2 e 3, mostram especificidades relativas à distribuição espacial das ocorrências de tráfico e consumo de drogas no bairro Lagoinha e seus vizinhos (Centro, Pedreira Prado Lopes, Bonfim, Colégio Batista, São Cristóvão e Concórdia). Analisando-os, percebe-se, em geral, uma clara associação entre as ocorrências de tráfico e consumo de crack e a sua concentração nas regiões limítrofes do bairro Lagoinha, seja com o centro, mais ao sul, ou com a vila Senhor dos Passos, à oeste.
Por sua vez, aumentando a escala no mapa 4, incluímos elementos relativos à estrutura física como ruas, avenidas e viadutos do bairro Lagoinha associados aos pontos de ocorrência de consumo de crack. Se, por um lado, se verifica uma tendência de espraiamento do crack pelo território do bairro, encontra-se, por outro lado, uma relativa associação da sua incidência ao longo do eixo viário que divide o bairro, bem como a incidência nas proximidades do aglomerado Pedreira Prado Lopes.
Crónicas da cidade cinza - Narrativas e impressões acerca do bairro da Lagoinha
De acordo com Bastos e Bertoni (2014), o Brasil dispõe atualmente de séries históricas de pesquisas domiciliárias, inquéritos escolares e estudos realizados em contextos clínicos, mas carece de inquéritos abrangentes referentes às cenas de uso de drogas. Em relação a estas últimas, sobressaem estudos qualitativos realizados em determinadas localidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador, já destacadas nessa pesquisa. Destaca-se a importância desta parte do estudo, porquanto se trata de um dos poucos registos verídicos de cenas de uso de crack na cidade de Belo Horizonte.
Este estudo qualitativo aconteceu durante o período de janeiro de 2016 até maio de 2017, quando foram realizadas visitas ao bairro, em dias e horários aleatórios, para realização da observação e realização de entrevistas. Durante o trabalho de campo foram feitas entrevistas semiestruturadas complementadas por inúmeras conversas com os residentes e transeuntes no local, donos de comércio e outros que também serviram como orientadores da pesquisa. A análise que se segue utiliza fragmentos de entrevistas, descrições das cenas e de trechos do caderno de campo, cujo objetivo é agregar mais informações à caracterização espaço-temporal descrita anteriormente e dialogar com o debate teórico utilizado no artigo.
Os residentes do bairro, comerciantes e lojistas entrevistados afirmaram, na sua maioria, gostar de morar no Lagoinha. Quando indagados sobre a possibilidade de se mudarem do bairro, não demonstraram esse desejo, justificando que já se tinham acostumado à dinâmica do lugar. A proximidade do centro foi sempre ressaltada como característica positiva do bairro. Adicionalmente, grande parte dos relatos sobre o passado do bairro remetiam para um ambiente mais tranquilo, com festas carnavalescas, rodas de sambas, bares, e com espaços públicos frequentados pelos moradores e crianças.
Adoro, nunca vou sair daqui, aqui é muito bom, aqui tem tudo pertinho, é fácil de locomover, vai no centro rapidinho e volta, tem o hospital, tem tudo aqui perto, não precisa de ir a outros lugares. Não tem pontos negativos não. [Entrevistado A, morador do bairro]
Quando indagados sobre os problemas relacionados com a segurança, a tendência foi minimizar os problemas locais ou colocá-los como parte do aumento da violência da cidade como um todo. Como se pode ver na entrevista a um dono de restaurante do bairro:
Claro que tem pontos de droga aqui, como em todos os lugares da cidade. Tem roubo, tem violência como em toda cidade. [Entrevistado B, comerciante do bairro]
Os entrevistados, quando questionados sobre as descrições do Lagoinha feitas pelos media, disseram desconhecer o estigma que recaía sobre o bairro, e outros afirmaram que a cracolândia ficava na Pedreira Prado Lopes. Alguns referiram o gosto em morar ou trabalhar no bairro, mas frisaram os problemas de violência relacionados com o uso e comércio do crack, concordando com o estigma da cracolândia.
Nesse sentido, durante a pesquisa de campo, foram referidas intervenções urbanas no bairro associadas à perda da vitalidade social de antigamente, reportada frequentemente ao longo das entrevistas. As obras afetaram fisica e socialmente a conformação no bairro, sobretudo no que dizia respeito às apropriações quotidianas e ao fluxo de pessoas que alteraram a vida no lugar, os trajetos, os pontos de referência e as relações de vizinhança. Desse modo, as obras de infraestrura, principalmente na Avenida António Carlos, parecem ter criado um ambiente ainda mais favorável ao aumento de usuários de drogas, pessoas sem trabalho e transeuntes circulando no bairro. Ressalta-se, ainda, que à época desta pesquisa, havia imóveis devolutos para alargamento da via que se transformaram em lotes vagos, bem como intervenções que deixaram algumas ruas sem saída, as mesmas que eram usadas como pontos para tráfico e consumo do crack.
Assim, a desordem e a ausência de atuação do poder público agravam a situação de sociabilidade do bairro. Os entrevistados relataram furtos de fios elétricos na região, que são queimados para a extração de cobre e vendidos para ferro-velho e que se tornam importante fonte de renda para alguns usuários. Sobre a sensação de insegurança, um entrevistado afirma ser um “pesadelo” atravessar a passadeira da estação de metro Lagoinha, onde transita diariamente para acessar o trabalho:
Dá pra ver fezes humanas, urina… Tem assaltos, drogas… Isso tudo faz parte do ambiente no dia a dia daquela parte ali. Tem também os camelôs e drogados, que não respeitam as famílias que passam diariamente, minha esposa já foi desrespeitada verbalmente por estes indivíduos, e aí eu disse para eles respeitarem, caso contrário eu iria acionar a polícia, só que a resposta deles foi que ali quem manda são eles e que não tem medo de polícia. [Entrevistado C, morador do bairro]
Em entrevista ao dono de um comércio localizado dentro da rodoviária da cidade, que fica próximo do acesso da passadeira da estação de metro Lagoinha, o comerciante falou sobre a rotina do trabalho no turno da noite, onde é comum a presença de pedintes, alguns assaltos e pequenos furtos:
Os caras ficam hibernando na droga muito tempo, depois voltam com fome, aí sempre pedem comida ou tenta pegar alguma coisa de alguém distraído. [Entrevistado D, comerciante do bairro]
Durante a entrevista ao dono de um bar, alguns dos clientes presentes referiram que não era seguro andar pelo bairro durante a noite. Outro morador do bairro afirmou, como ponto negativo, a presença dos usuários de drogas e ladrões, a seu ver responsáveis pela instabilidade no bairro:
Essas ruas a noite ficam cheias de usuários de drogas. Vi outro dia até uma mulher nua usando droga na rua. Nos grupos de usuários de drogas, eles matam quase todo mês uma pessoa. [Entrevistado E, morador do bairro]
A observação do bairro estudado mostra que as intensas transformações pelas quais passou desencadearam um processo de degradação visível. São muitas construções antigas, tombadas pelo património histórico da cidade, que estão abandonadas ou em mau estado de conservação, ao lado de novas construções mais modernas, que mostram resquícios de renovação do lugar. Quanto às condições de preservação do património imobiliário, muitos edifícios históricos passam por processos de descaracterização, com o uso indevido de letreiros ou painéis de propaganda, reformas que interferem no estilo arquitetónico dos prédios, situações especulativas ou de abandono, onde se observam vários edifícios em ruínas.
Com isso, a partir das investigações realizadas, confirmou-se que acontecem deslocamentos dos usuários de crack pelos circuitos do território das drogas e esse processo acontece de acordo com as ações públicas no espaço, seja através de operações policiais, circuitos de câmeras de segurança ou por intervenções urbanísticas. Essa realidade corrobora os estudos de Frúgoli Jr. e Spaggiari (2010) sobre a cracolândia do bairro da Luz em São Paulo, onde propõem o entendimento deste espaço como uma modalidade de territorialidade itinerante dentro de um contexto multifacetado e marcado por inúmeras variações situacionais.
Considerações finais
Este estudo teve por objetivo discutir o uso do crack em cenas abertas - a cracolândia. A dinâmica de fatores ambientais na distribuição de desvios e crimes nos espaços das cidades tem sido cada vez mais utilizada tanto para reflexão da atividade criminosa, como para o desenvolvimento de estratégias de prevenção situacional. No contexto brasileiro trata-se de uma inovação conceptual e teórica.
Um ponto importante foi o entendimento, que corrobora a proposta inicial, sobre a construção social das condições ecológicas ideais para o surgimento de espaços urbanos do uso de crack, como no bairro da Lagoinha em Belo Horizonte. Condições relativas às dimensões de degradação social e física, dos mecanismos de controlo social informal debilitados, além de intervenções urbanas ou processos urbanísticos territoriais que alteraram a sua conformação, atuaram no sentido de remodelar as sociabilidades locais, criando novas dinâmicas, novas apropriações, e também novos usos, entre os quais o fenómeno das cracolândias. Por isso, são espaços recorrentemente descritos como áreas barulhentas, degradadas e desvalorizadas, cercadas por prédios que abrigam atividades como casas de prostituição e hotéis baratos. O que nos permite refletir então, na tese de que espaços provisórios, que ocupam os interstícios de territorialidades em processo de reacomodação espacial, simbólica e quotidiana, como os escombros de grandes obras de remodelação urbana, constituem locais férteis para a constituição ou a consolidação de práticas e rotinas associadas ao uso do crack (Raupp e Adorno, 2015).
Chama a atenção, também, o facto de que tais territorialidades, embora proscritas, são estigmatizadas e alvo de uma série de práticas disciplinares, sendo que não constituem propriamente um mundo isolado, mas envolvem uma série de relações, interações e conexões, nas quais os usuários de crack têm um papel proeminente, mas articulado a uma série de outros sujeitos, cujos arranjos dialogam com cada contexto particular e são marcados por variações situacionais (Frúgoli Jr. e Cavalcanti, 2013). Nessa perspetiva, o espaço da cracolândia é entendido como um “campo de relações”, pois tornou-se um espaço de referência da degradação, dos conflitos, da criminalidade urbana, da presença dos atores sociais excluídos, associados simbolicamente a uma série de estigmas como a sujidade, o perigo, a ameaça, as drogas, a encrenca ou a vergonha. Estes aspetos geraram ações relacionadas tanto com a sua repressão quanto com a sua mediação.
A pesquisa sobre o bairro da Lagoinha demonstrou uma naturalização do fenómeno do uso de drogas em espaços públicos, assim como as condições em que se formou uma cracolândia no seu território. Isso permitiu evidenciar um bairro que mudou com o tempo, passando a vivenciar consequências do processo de desorganização social. Corroborando os dados estudados, as entrevistas também reafirmam a existência de novas referências na modernidade para a região da Lagoinha: um lugar de trânsito, de passagem, de embarque e desembarque, ligação para os diversos pontos da cidade, espaço da estação, dos trilhos do metro, dos viadutos, das avenidas e dos automóveis, do crack e da cracolândia.
Por fim, este estudo traz à tona o debate relevante na criminologia, que afirma que o desvio e o crime tendem a emergir em locais onde há uma alta vulnerabilidade baseada nas influências espaciais combinadas com vários recursos socioambientais. As análises espaciais aqui apresentadas demonstram que as ocorrências criminais não estão dispersas aleatoriamente no espaço e ocorrem geralmente em áreas que têm características espaciais vinculadas às localidades mais propícias ao fenómeno - indubitavelmente sem negar a importante influência de fatores socioeconómicos macroestruturais como pobreza e desemprego sobre a criminalidade. As oportunidades proporcionadas pelos ambientes é o que nos chama aqui à atenção, e constituem o elemento desencadeador do desvio estudado. Antes de esgotar o debate em torno desta questão sobre os territórios de “cracolândia”, espera-se com o trabalho aqui apresentado alcançar um diálogo mais profundo e consistente que ultrapasse o campo académico e encontre no poder público sensibilidade para lidar com o problema.