Introdução
A Internet tem vindo a incorporar uma nova realidade nas atividades diárias dos cidadãos e nas suas relações familiares, principalmente, ao possibilitar diferentes formas de interação e participação social para aqueles que têm acesso e competência para utilizar a Internet (Recuero, 2012; Baquero e Morais, 2020). Tal cenário deu a oportunidade a esses cidadãos de expressarem publicamente as suas opiniões sobre política, uma vez que se criou mais espaço para falarem e discutirem por meio das redes sociais. Isto pode ter impacto na socialização política, que é a internalização das normas, tradições e valores políticos da sociedade (Almond e Verba, 1963; Baquero e Baquero, 2014). Sabemos que os principais agentes socializadores são a família, os amigos, os grupos associativos, a escola, os meios de comunicação e, atualmente, a Internet (Schmidt, 2001; Baquero, 2017; Morais, 2017). A materialização da Internet como um novo agente de socialização gera alterações, principalmente, na internalização de valores dos jovens, que ficam conectados muitas horas por dia, passando a ter no seu ambiente familiar dois agentes socializadores: os pais e as redes sociais (Owen, 2008; Parente, Swinarski e Noce, 2009; Morais, 2017).
A esse respeito, Wilhelm (2000, 2004) destaca que nível de rendimento salarial, educação, raça, etnia, idade, género, localização geográfica e composição familiar continuam a exercer papéis significativos na presença das pessoas online. Na mesma linha de análise, Putnam (2015), num estudo qualitativo, realizado com jovens norte-americanos, argumenta que ter igual acesso à Internet não significa que todos obtenham os mesmos benefícios. Ao estabelecer uma relação entre desigualdade de acesso e envolvimento político motivados pela Internet, Putnam (2015) identificou que, comparados aos mais pobres, os jovens de classes mais altas (e seus pais) são mais propensos a utilizar a Internet quando se trata de empregos, educação, política e relações sociais, saúde e pesquisas gerais, e menos para entretenimento e lazer (Putnam, 2015). Assim, a Internet sozinha não seria capaz de aumentar a participação ou a filiação política, pois, segundo Putnam (2015), o ambiente familiar e os valores e crenças transmitidos pelos pais influenciam a forma como os jovens utilizam a Internet.
Nesse sentido, este artigo orienta-se pela seguinte pergunta de pesquisa: de que forma a família e a Internet contribuem para uma cultura política juvenil no Sul do Brasil? Assim, o objetivo é analisar, no caso brasileiro, a contribuição da família1 e da utilização da Internet e de redes sociais para a internalização de valores democráticos por parte dos jovens. Inicialmente, em pesquisa anterior, argumentamos que as interpretações sobre o papel das novas tecnologias no estabelecimento de uma nova cultura política juvenil, mais ativa e assertiva, não estão consolidadas (Morais e Baquero, 2020). Pelo contrário, postulamos que ainda existe um caminho a percorrer para entender mais profundamente os efeitos dessas tecnologias nas atitudes e no comportamento político dos jovens no Brasil. Vamos mais longe e defendemos que a estruturação de uma cultura política da juventude depende, em grande parte, do contexto no qual essa questão é analisada - especialmente da materialização de uma estrutura que possibilite o pleno desenvolvimento do jovem -, geralmente, obtida dentro do ambiente familiar. A hipótese é a de que há uma reprodução de padrões de comportamento político tradicionais entre os jovens que continua muito semelhante ao das suas famílias, conforme o nível económico (Putnam, 2015).
Este trabalho baseia-se em metodologia quantitativa para sistematizar tanto as teorias da cultura política e da socialização política, quanto os dados. Estes são resultado de inquérito por questionário, num estudo desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisa sobre a América Latina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NUPESAL/UFRGS) nos anos 2015-2016, e foi aplicado a 2035 jovens entre 13 e 24 anos2 nas três capitais do Sul do Brasil, de escolas públicas e privadas do ensino médio. Dos jovens, 690 pertenciam à cidade de Porto Alegre/Rio Grande do Sul (2015), 571 à cidade de Florianópolis/Santa Catarina (2016) e 774 à cidade de Curitiba/Paraná (2016). O questionário continha 69 questões, no total, entre perguntas abertas e fechadas.
A amostra de escolas e turmas desta pesquisa foi feita por estágios múltiplos3. Para determinar o tamanho da amostra, em escolas públicas e privadas nas três capitais do Sul do Brasil, foram seguidas as seguintes etapas: 1) Verificou-se junto das Secretarias de Educação das três cidades a listagem das Escolas Estaduais, Municipais, Federais e Privadas de Ensino Médio; 2) Determinou-se que seria aplicado um mínimo de 40 inquéritos por questionário por escola; para uma amostra de 600 indivíduos, seriam, portanto, necessárias, em média, 15 escolas.
De entre os 2035 jovens entrevistados, a média de idade foi de 16,6 anos, sendo que 51,4% se autoidentificou com o sexo masculino e 48,6% com o sexo feminino. Destes, 64,5% frequentavam escolas públicas e 35,3% escolas privadas. Sobre os seus padrões de uso da Internet, 96,2% afirmou ter Internet em casa, fazendo uso dela, em média, 9h por dia (NUPESAL, 2015/16). Assim, procuraremos relacionar características da socialização política dos jovens e a sua participação política em questões descritas no questionário, por meio de técnicas descritivas, fazendo análise de frequências e cruzamentos.
O artigo está dividido em cinco secções, aonde se inclui também esta introdução. Na próxima secção, intitulada “Cultura política juvenil”, discutimos sobre o conceito de cultura política e faremos uma contextualização da juventude no Brasil. A seguir, falamos sobre “Socialização política e família”, discutindo o impacto desse fenómeno no desenvolvimento do jovem, tendo como principal agente socializador a família. Na secção “A Internet como agente socializador”, analisamos se a apropriação da Internet e das redes sociais tem impacto na constituição de atitudes e comportamentos políticos. Ao longo destes tópicos, procuramos aliar a discussão teórica a análises quantitativas da pesquisa de NUPESAL (2015/2016), elaborando interconexões sobre o papel da família e da Internet no processo de socialização dos jovens brasileiros. Por fim, apresentamos as nossas considerações finais e uma projeção de estudos futuros.
Cultura política juvenil
Percebe-se que o processo de democratização do Brasil, após o fim do regime autoritário, se caracteriza pela incongruência entre uma prática de democracia formal e a existência de desigualdade social (Baquero, 2001). Segundo o autor, frequentemente se constata, na bibliografia sobre a evolução do Estado no Brasil, “a influência de um passado de instabilidade política e econômica, bem como de um legado autoritário que tem obstaculizado a construção de uma cultura política verdadeiramente democrática no país” (Baquero, 2001, p. 75). Além disso, não se reestabeleceu uma sociedade civil participativa, ficando a cargo das regras do jogo político o bom desempenho institucional para garantir uma democracia de qualidade. Porém, o enfraquecimento das instituições políticas, como os partidos políticos e o próprio Estado, tem contribuído para a fragilidade da democracia no país, e também para o baixo interesse por assuntos políticos, para a baixa participação política dos cidadãos e para os baixos níveis de confiança nas instituições, fomentado o cinismo, o individualismo, a corrupção, o clientelismo, o personalismo e o patrimonialismo (Baquero, 2008).
Segundo Moisés (1995, p. 105), a cultura política brasileira tem sido descrita como um conjunto rígido de padrões político-culturais, dotado de forte capacidade de continuidade, “combinando traços herdados das raízes ‘ibéricas’ do país - isto é, um sistema de valores autoritários, hierárquicos e plebiscitários - com componentes ‘estadistas’ e antiliberais resultantes do processo de formação do Estado”. Para Moisés (1995) e Baquero (2013), essas tradições da cultura política são bem conhecidas: clientelismo, populismo, atitude deferencial diante das autoridades, manipulação, apatia política e, por último, antipartidismo e anti-institucionalismo.
No contexto do Sul do país, alguns trabalhos indicaram que a cultura política é de carácter apático, ou seja, a população apresenta baixo interesse pela política, baixos níveis de participação política e baixa confiança nas instituições políticas, o que se expressa em valores que não favorecem a consolidação da democracia (Baquero e Castro, 1996; Nazzari, 2005; Birkner, 2006; Baquero e Prá, 2007; Neuenfeld, 2008; Ribeiro e Borba, 2011).
Essas caraterísticas têm-se mantido nas gerações atuais por meio do processo de socialização política (Nazzari, 2005; Roballo, 2011; Bernardi, 2017; Morais, 2017; Morais e Baquero, 2018). Os jovens apresentam uma cultura política híbrida, conforme afirma Baquero (2008), capaz de apresentar valores favoráveis à democracia simultaneamente com a falta de interesse na política e a existência de valores autoritários, tais como preferência por um líder forte, intolerância para com os que pensam diferente e apoio difuso à democracia. Isso sugere que, apesar de em países desenvolvidos se assistir a um deslocamento de cidadãos leais para cidadãos assertivos (Dalton e Welzel, 2014), no Brasil, os jovens caminham ainda a passos lentos para essa realidade, na medida em que é evidente uma cultura política indiferente para com os valores democráticos, que não recebe incentivo para a formação de cidadãos mais críticos por parte das instituições.
Numa outra perspetiva sobre a participação política, autores apontam para o facto de que o não envolvimento da juventude em temas tradicionais da política, como partidos e manifestações, não a caracteriza como passiva, mas como agarrada politicamente a níveis menos latentes (Ekman e Amña, 2012), ou como alter-ativista (Juris e Players, 2009), seja através da discussão com pares, seja através do envolvimento em ações coletivas que não são necessariamente deliberativas ou diretamente políticas (Farthing, 2010). Dentro desse contexto, é importante pensar nos níveis de capital social4 que, segundo Putnam (1996, p. 177), são as “práticas sociais, normas e relações de confiança que existem entre cidadãos numa determinada sociedade, bem como sistemas de participação e associação que estimulam a cooperação”. Assim, a partir das definições de Putnam (1996) e Baquero (2008), que não se centram apenas nas relações intragrupo (bonding), como também no capital social que diz respeito ao esforço das comunidades para estabelecerem uma comunicação horizontal com vista à resolução do dilema da ação coletiva (bridging), os jovens do Sul do país revelam uma dificuldade de associação e de interesse político, pois apresentam baixos níveis de participação política nas instituições formais (Nazzari, 2005; Roballo, 2011; Morais, 2017), o que compromete a constituição de uma cultura política participativa. No sentido formal e institucional, a participação política dos jovens é baixa, o que não significa que isso se reproduza noutras ações ou espaços coletivos, como apontado por Ekman e Amña (2012).
A partir desta abordagem mais formal e institucional da participação política, percebe-se que os jovens revelam características da cultura política similares às de gerações anteriores, pois neles se verifica altos níveis de apatia e desinteresse políticos, disseminação de ódio e intolerância política, em conjunto com baixos níveis de confiança interpessoal, confiança institucional e participação política (Lucas, 2003; Keil, 2004; Silveira e Amorim, 2005; Baquero e Cunha, 2010; Roballo, 2011; Morais e Baquero, 2020). É nesse contexto que tanto a família, por ser o primeiro espaço de aprendizagem política, quanto o uso da Internet se tornam relevantes, uma vez que estes são os principais agentes socializadores dos jovens, conforme demonstrado no quadro 1.
Como se pode observar, a família permanece o principal agente socializador. No entanto, percebe-se que a escola vai sendo substituída pela Internet como segundo agente socializador, o que gera uma socialização política híbrida (Morais, 2017), pois os jovens reportam manter a família como principal agente tradicional enquanto se autossocializam pela Internet.
Socialização política e família
A constituição de atitudes e comportamentos políticos é o resultado das vivências dos indivíduos na dimensão cultural da sociedade, por meio da socialização, principalmente através dos agentes socializadores como família, escola, igreja e meios de comunicação (Easton e Dennis, 1969; Almond e Powell, 1972). Este processo ocorre de maneira mais intensa na infância, por influência da família (Dawson e Prewitt, 1969), mas também continua na adolescência e vida adulta (Jennings e Niemi, 1974; Powell, Dalton e Strom 2015).
Para este artigo, adota-se a perspetiva de Easton e Dennis (1969), segundo a qual as consequências da socialização política estão relacionadas com o sistema político como um todo. Assim, utiliza-se o conceito de socialização política aplicado aos indivíduos, em particular, e na forma como estes interiorizam valores, normas e crenças na constituição de uma cultura política juvenil.5
Ao tratar do agente socializador família, é importante destacar que o papel central deste agente na formação da personalidade política do indivíduo deriva do seu papel como principal fonte e locus para a satisfação de todas as suas necessidades básicas e inatas (Davies, 1965; Schmidt, 2001; Martinez et al., 2013). A criança tende, portanto, a identificar-se com os pais e a adotar a perspetiva destes em relação ao sistema político. Os pais tornam-se a figura prototípica de autoridade e, assim, inicia a visão da criança sobre autoridade política (Costa, Teixeira e Gomes, 2000). Dessa forma, se os pais conversam com os filhos sobre política, o jovem tende a desenvolver um maior interesse em compreender como esta funciona, quem faz parte e quais são as consequências das decisões políticas. Conforme a figura 1, podemos observar que apenas 23,5% dos jovens conversam frequentemente com os pais sobre estes assuntos.
A família é um importante agente de transmissão de normas e valores (Davies, 1965; Slomczynski e Shabad, 1998; Verba, Burns e Schlozman, 2003; Campbell, 2006; Van Ditmars, 2017), visto que ela colabora na preservação do sistema de valores e da cultura de uma determinada sociedade (Mehmood e Rauf, 2018). Mehmood e Rauf (2018) argumentam que, quando a família tem interesse por política e/ou participa de um partido político ou de outras instituições políticas, os jovens têm mais predisposição política para participar. De acordo com esses autores, as crianças e os jovens interiorizam uma boa imagem sobre os partidos políticos e os líderes que os pais seguem. A falta de uma conversa frequente com os pais sobre assuntos políticos pode estar a contribuir para a manutenção de um afastamento do jovem da política e dos partidos políticos, conforme apontado na secção anterior.
Além da família servir de exemplo ao jovem, também é importante destacar que existem estilos parentais diferentes6, gerando dimensões de responsividade7 e exigência8 parentais para com adolescentes (Darling e Steinberg 1993; Smetana, 1995). O que permite a classificação de quatro estilos de socialização parental, que são eles: autoritativo -alta exigência e responsividade; autoritário - alta exigência, baixa responsividade; indulgente - baixa exigência e alta responsividade; e negligente - baixa exigência e baixa responsividade (Costa, Teixeira e Gomes, 2000; Martínez et al., 2013). Costa, Teixeira e Gomes (2000), ao analisarem jovens da cidade de Porto Alegre, apontam a distribuição maioritária de estilos autoritativo (36,7%) e negligente (35,5%). Numa análise feita na cidade de Curitiba (Weber et al., 2004), encontraram resultados similares com um índice de 45,4% de estilo negligente e 32,2% autoritário.
A ausência de conversas frequentes sobre assuntos políticos com os pais e a apresentação por parte destes de estilos autoritativo e negligente levam à conclusão de que existe a reprodução de uma cultura política autoritária entre as gerações, marcada pelo afastamento do jovem da política, com baixo interesse e sem identificação partidária, conforme as figuras 2 e 3.
Mesmo os jovens que assumem que os seus pais possuem muito interesse por política (47,1%) ainda apresentam um baixo nível, apenas 21,8% tem muito interesse por assuntos políticos.
Na identificação partidária, os jovens reproduzem um padrão similar ao dos seus pais, pois em todos os casos mais de 72% não tem identificação partidária. Assim, segundo Mehmood e Rauf (2018), o jovem que não encontra na sua família participação política, e que de acordo com Costa, Teixeira e Gomes (2000) e Weber et al. (2004), parte de uma socialização autoritativa ou negligente, também reproduz este comportamento. Além disso, estes números também refletem os baixos índices de confiança dos jovens nos partidos políticos, que não chegam a 1%. Concomitantemente, cerca de 38% dos jovens concordam com a afirmação “pessoas como as de minha família não têm nenhuma influência nas ações do Governo”, o que reforça o sentimento de afastamento do ambiente político e perceção de baixa responsividade do Governo.
É importante reforçar que, ao entrarem em idade escolar, a exposição aos familiares como principais agentes de socialização começa a diminuir, de forma que a escola9, amigos e Internet se tornam agentes muito importantes logo na infância e durante a maior parte da adolescência (Grossbart, Hughes e Yost, 2002; Anderson e McCabe, 2012). Por isso, a próxima secção trabalha com estre processo de interiorização de atitudes e comportamentos também pela Internet e redes sociais.
A internet como agente socializador
A perceção de que as novas tecnologias estão frequentemente associadas à mudança cultural, em especial, entre as crianças e os adolescentes, já era analisada desde o advento da televisão (Mead, 1970). Os jovens são inundados pelo desconhecido, por isso, os potenciais negativos e positivos desse contacto criam novas ambiguidades, complexidades, medos e expectativas que podem desencadear uma mudança social (Venkatesh e Vitalari, 1985). A revolução digital, a Internet e as redes sociais, além de provocarem essas mudanças, podem gerar também inversões significativas na hierarquia de conhecimento pai/mãe-filhos e professores-alunos. Pela primeira vez, em muitas famílias, os jovens podem ter mais experiência do que os pais sobre uma inovação central para a sociedade: os meios de comunicação digital (Grossbart et al., 2002; Anderson e McCabe, 2012).
Nesse sentido, Anderson e McCabe (2012) alertam para o facto de que a visão tradicional de socialização se encaixa no conceito de um mundo estruturado que socializa os que a ele vão chegando. No entanto, com a Internet, em vez de um mundo estruturado, um novo tipo de mundo se constrói, porque são os próprios jovens que se autossocializam (Anderson e McCabe, 2012). Na mesma direção, Paletz, Owen e Cook (2016) consideram a Internet um agente potencialmente poderoso de socialização política por causa da grande quantidade de informação política disponível online e por as pessoas se envolverem ativamente nas plataformas online. Os autores afirmam que os jovens usam os meios de comunicação social para criar comunidades online colaborativas que organizam as causas políticas, pressionam o Governo e fazem campanha para candidatos. Todas estas atividades contribuem para a socialização de cidadãos comprometidos (Paletz, Owen e Cook, 2016).
Para confirmar o que os autores acima afirmam, as figuras 4 e 5 demonstram que os jovens estão a utilizar a Internet como meio para se informarem sobre assuntos políticos, apresentando uma confiança moderada neste meio.
Conforme os dados acima, percebe-se que os jovens recorrem mais à Internet como fonte de informação política (57,2% indicam “sempre”) do que conversam sobre assuntos políticos com os pais (23,5% indicam “ frequentemente”), conforme visto na figura 1. Estes dados demonstram o processo de autossocialização das novas gerações, como apontado por Anderson e McCabe (2012). No entanto, apesar de procurarem informações políticas na Internet, os jovens não revelam muita confiança nestas: conforme a figura 5, apenas 13,6% indica confiar.
No entanto, mesmo não confiando nas informações veiculadas, os jovens confirmam que a Internet tem impacto na forma como agem (66,1% indica que isso se dá “sempre” ou “às vezes”) e pensam (83,6% indica “sempre” e “às vezes”), conforme a Figura 6.
Para Smith, Hewitt e Skrbiš (2015), essa socialização pela Internet envolve três processos relacionados: (1) os jovens internalizam valores específicos de status sobre o que constitui um uso benéfico e de aumento de capital de terceiros influentes (por exemplo, pais, irmãos, professores e colegas); (2) estes valores são reforçados por mecanismos (por exemplo, normas, regras e expectativas) que recompensam certas utilizações e marginalizam outras; e (3) isso diferencia ainda mais o acesso aos recursos económico, social, cultural e tecnológico esperados por parte dos jovens quando acedem à Internet. Com relação ao primeiro processo, algumas informações foram apresentadas na secção anterior sobre os pais, constando que os jovens estão a replicar atitudes e comportamentos dos pais.
Em relação aos valores reforçados, é importante destacar que os jovens também aprendem a avaliar os benefícios e os custos da utilização da Internet por meio da experimentação de diferentes usos, além de experimentarem os seus resultados em contextos variados. A natureza ubíqua e multifuncional da utilização da Internet torna difícil situar juízos de valor em relação a qualquer discurso ou contexto. Em vez disso, os utilizadores ajustam os seus pontos de vista sobre a “função” de uma tecnologia com base nas suas experiências de usos anteriores. O que contribui para este processo de autossocialização, a partir da procura de conteúdos e da adaptação a cada nova experiência.
Pelos dados da figura 7, é possível verificar que 83% dos jovens leem publicações e assistem a vídeos “sempre” ou “às vezes” sobre assuntos políticos, e 69,6% gosta de publicações sobre estes assuntos. No entanto, quando se trata de interagir de uma forma mais ativa, como comentar a publicação, compartilhar ou usar hashtag 10 , os jovens não o fazem: 54,9% indicou que nunca comenta, enquanto 62,7% respondeu nunca compartilhar, o que evidencia que mais de metade dos jovens não tem interesse nas ações sobre as quais precisam de emitir uma opinião ou compartilhá-la. Tal fica mais evidente quando 83,3% dos jovens respondem que nunca usam hashtag.
Nesse sentido, o processo de socialização estaria, presentemente, a ocorre num número de circunstâncias diferentes, nas quais a Internet aparece como mecanismo de um novo tipo de socialização política. Ao aumentar a comunicação, possibilitando a união de grupos e indivíduos diferentes que até ao momento talvez nunca tenham tido contacto, a Internet possibilita aos jovens assumir comportamentos de natureza social e política de seu interesse, constituindo-se como uma oportunidade de aumento da participação política dos jovens (Morais, 2017). Nesse sentido, conforme a Figura 8, mais de 90% dos jovens entrevistados indicam acreditar que as redes sociais podem ser instrumentos de participação política.
Percebe-se que a Internet está cada vez mais presente no dia-a-dia dos jovens, tornando-se um agente socializador igualmente muito presente no processo de interiorização de valores. Juntamente com a família, que é um agente socializador tradicional, a Internet tem vindo, mais do que a escola, a ocupar espaço nas aprendizagens dos jovens. A partir destes dois agentes, destaca-se o terceiro processo apontado por Smith, Hewitt e Skrbiš (2015), sobre recursos económicos.
Com o objetivo de diferenciar ainda mais o acesso aos recursos, duas pesquisas apontam a relação direta entre o poder económico da família e o uso da Internet por parte dos jovens (Angus, Snyder e Sutherland-Smith, 2004; Putnam, 2015). A primeira, uma pesquisa qualitativa com jovens australianos, permitiu a Angus, Snyder e Sutherland-Smith (2004) constatar que, em casa e na escola, o uso da Internet é reforçado pelos laços estreitos entre os pais com maior capital económico ou cultural.
A segunda pesquisa, também qualitativa, realizada com jovens norte-americanos, levou Putnam (2015) a argumentar que o acesso igual à Internet não garante que todos ganhem benefícios iguais, pois existe uma carência de conhecimento digital por parte das crianças de classes mais baixas, principalmente, no que diz respeito a mais oportunidades de estudo e de trabalho. Para Putnam (2015), pelo menos neste ponto da sua evolução, é mais provável que a Internet venha reforçar a falta de oportunidades do que diluí-la. Além disso, quando se estabelece a relação entre desigualdade de acesso e envolvimento político motivados pela Internet, Putnam (2015) identificou que o uso da Internet se dá de formas diferentes entre jovens de classe média, que a usam para se colocar no mercado de trabalho, e jovens de classe baixa, que a usam mais para entretenimento.
Conforme os dados do quadro 2, na qual apresentamos o cruzamento entre salário (como proxy de classe social) e motivação do uso da Internet (como proxy de apropriação do uso da Internet), temos de concordar com Putnam (2015): os jovens de famílias com rendimentos inferiores a 3 e 4 salários mínimos usam a Internet mais para entretenimento, enquanto os jovens de famílias com rendimentos superior a 5 salários mínimos a usam para ambos os fins. Além disso, o qui-quadrado é significativo, o que aponta para uma relação significativa entre rendimento salarial e motivação para usar a Internet.
Este resultado mostra o quanto a família e o contexto do jovem estão presentes na interiorização de atitudes e comportamentos, pois mesmo com o advento da Internet o jovem projeta o que adquire dos seus pais no uso da Internet. Mesmo assim, o processo de autossocialização pode ser considerado uma mudança positiva, por permitir que o jovem procure adquirir conhecimento de forma autónoma, como apontado por Paletz, Owen e Cook (2016), mas também negativa, visto que a Internet propicia uma seletividade dos conteúdos, podendo formar jovens mais intolerantes e sem conhecimento sobre os assuntos que não lhes interessam, como a própria política (Morais e Baquero, 2020). Por isso, são essenciais estudos sobre a socialização política na era digital, para que seja possível ter mais clareza quanto ao impacto do uso da Internet na constituição de uma cultura política.
Considerações finais
Os desafios que se colocam para os jovens nos tempos atuais configuram-se como inseguranças sobre as próximas etapas tanto no âmbito pessoal quanto no âmbito político. É neste contexto de incerteza sobre o futuro que os jovens estão a adquirir valores, crenças, atitudes e comportamentos políticos. A partir deste ponto, o artigo analisa, no caso brasileiro, a contribuição da família e da utilização das redes sociais para a construção de uma cultura política dos jovens do Sul do Brasil. Neste sentido, o trabalho revela dados inéditos sobre esta região.
Os dados apresentados indicam que a família permanece como principal agente socializador neste processo de socialização política. No entanto, a Internet está a ganhar terreno para ser o segundo agente socializador, tomando o lugar da escola neste processo. Neste sentido, a socialização política dos jovens é um processo híbrido, no qual o jovem interioriza valores através de um agente socializador tradicional, a família, e se autossocializa recorrendo a um novo agente, a Internet, em consonância com a pesquisa de Morais (2017).
Os resultados encontrados não são diferentes dos dados apresentados nas últimas duas décadas (Baquero, 1997; Nazzari, 2005; Roballo, 2011), segundo os quais o jovem permanece apático e desinteressado relativamente à política. Mesmo com o surgimento da Internet, esta realidade não teve muitas alterações. Com estes dados, é possível contradizer a perspetiva otimista de Norris (2001) de que a Internet seria um instrumento de captação da população. A Internet e as redes sociais, até ao momento, não estão a servir de motores de adesão, nem a destruir o capital social, como afirmou Putnam (2000). A Internet está a contribuir, sim, para que os os valores das gerações anteriores se mantenham, analisadas aqui através dos pais.
Os padrões de cultura política permanecem similares aos apresentados por Moisés (1995) e Baquero (1997), indicando que a transmissão de valores é feita pela família, em especial pelos pais, e também que a Internet ainda não alterou, nem positivamente nem negativamente, este processo de constituição de uma cultura política11. A literatura ainda apresenta uma lacuna sobre os efeitos deste processo de autossocialização dos jovens através da Internet, motivo pelo qual se encontra em curso mais uma fase da pesquisa realizada pelo NUPESAL, para que possa ser monitorada a constituição de cultura política nas gerações mais novas. Neste artigo, centramos a nossa análise num formato mais descritivo para expor o estado da arte da cultura política juvenil destes jovens, não nos detendo em estabelecer relações causais, mas sim em descrever os dados encontrados. Em trabalhos futuros, procuraremos avançar no estudo, de modo que possamos trazer maiores inferências sobre as relações dos jovens com a Internet e as suas famílias. Além disso, foi realizada, no final de 2019, mais uma fase desta pesquisa com jovens no Sul do Brasil, que nos ajudará a compreender mais aprofundadamente as suas atitudes e comportamentos.