Na historiografia portuguesa, as chamadas propaganda e contra-propaganda no contexto do Estado Novo (1933-1974) têm sido sobretudo tratadas em estudos temáticos dedicados à história das instituições políticas do regime e das figuras e movimentos que se lhe opunham. No campo destes estudos, a propaganda escrita tem assumido um papel preponderante, ao veicular de forma mais clara as mensagens político-ideológicas muito desigualmente partilhadas pelos dois campos em oposição. A propaganda visual foi, assim, até há pouco tempo, deixada num plano secundário, servindo normalmente como mera ilustração anedótica do texto escrito, considerado o espaço privilegiado da expressão de ideias. Esta secundarização das fontes visuais é normalmente explicada pela falta de instrumentos metodológicos que os historiadores portugueses possuiriam para as analisar do ponto de vista conceptual. No entanto, há já vários anos que autores como António Sena - na sua História da Imagem Fotográfica em Portugal - reconheceram o papel fundamental que a fotografia e as artes gráficas tiveram na implantação da ditadura portuguesa.
A obra Projectos Editoriais e Propaganda: Imagens e Contra-Imagens no Estado Novo, organizada por Filomena Serra, Paula André e Sofia Leal Rodrigues, vem em parte preencher esta lacuna. Constituindo um dos outputs do projeto da FCT “Fotografia Impressa. Imagem e Propaganda em Portugal (1934-1974)” (PTDC/CPC-HAT/4533/2014), o livro aborda, através dos contributos de diversos investigadores e colaboradores do projeto, vários exemplos de projetos editoriais produzidos no período cronológico em causa. Apesar de nem todos estes projetos fazerem um uso amplo da imagem, podemos dizer que a obra confere um especial destaque à história da fotografia que, neste período, passa a ser entendida, do ponto de vista da produção editorial, como algo mais do que uma mera ilustração do texto - ela torna-se num elemento paralelo e complementar ao próprio texto, por vezes sobrepondo-se a ele pela sua dimensão, destaque e qualidade artística.
Esta inovação nas artes gráficas no contexto português da década de 1930 é salientada pelas organizadoras na introdução à obra, na qual explicitam as razões da escolha da expressão “ projetos editoriais” e refletem sobre o uso de conceitos como “arte impressa” e “montagem”. O texto faz ainda um enquadramento histórico acerca da forma como o Estado Novo, nomeadamente através do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) - a partir de 1944 designado Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) - instrumentalizou esta nova maneira de entender a imagem fotográfica. No entanto, questiona-se também o sucesso deste empreendimento, à luz de expressões usadas pelo próprio SPN/SNI como “revolução nas artes gráficas” e de conceitos como “indústria editorial”. O segundo capítulo introdutório, da autoria de Nuno Medeiros, segue um pouco a mesma linha ao analisar a política editorial (por vezes errática) deste organismo.
Além dos dois textos introdutórios já mencionados, a obra é composta por quinze capítulos distribuídos por quatro partes que abarcam temas diversos. As três primeiras partes reportam-se às imagens veiculadas pela propaganda do Estado Novo, enquanto a quarta é dedicada aos contradiscursos e contra-imagens - examinando projetos editoriais opostos ao regime. A primeira parte, intitulada “Fotolivros de propaganda”, enfoca, como o nome indica, vários fotolivros produzidos na “fase SPN” (1933-1944) da ditadura. As obras Portugal 1934 e Portugal 1940 assumem aqui um grande destaque (capítulos 1 e 2), pelos momentos políticos a que estão associadas (a fundação e a consolidação do regime). Há, todavia, incursões por outras publicações, como as produzidas no contexto das visitas presidenciais às colónias em 1938 (capítulo 3) e da exposição “Arte Moderna Alemã” de 1941 (capítulo 4). Os autores parecem seguir a máxima do fotógrafo holandês Ralph Prins, segundo o qual o fotolivro, tal como uma escultura ou um filme, deve ser entendido como uma forma de arte autónoma na qual as fotografias perdem o seu carácter de objetos artísticos per se e se tornam parte de uma narrativa maior. São de especial importância os dois primeiros capítulos, de Javier Ortiz-Echagüe e Natasha Revez, que se debruçam sobre a influência soviética ao nível da nova linguagem visual do fotolivro, nomeadamente no que concerne à importância da montagem fotográfica como veículo de transmissão de ideias políticas.
A segunda parte, com o título “Revistas de propaganda”, foca-se sobretudo na revista Panorama (1941-1974) e noutros projetos editoriais do SPN/SNI de menor duração como o semanário Bandarra (1934-1936). No primeiro caso, esta famosa publicação é analisada do ponto de vista do contexto político da sua criação (capítulo 5), da evolução da sua orientação editorial (capítulo 6) e das representações da identidade nacional nela veiculadas (capítulo 7).
A terceira parte do livro, denominada “Meios de comunicação e estratégicas de propaganda”, abarca um conjunto de temas nos quais são visíveis novas formas de retratar os feitos do regime: o turismo (capítulo 8), a propaganda da arquitetura escolar (capítulo 9) e o ensino televisionado (capítulo 10).
Por fim, a quarta parte analisa vários meios de comunicação já abordados nas secções anteriores, mas numa perspetiva de oposição político-ideológica ou de não-submissão aos valores que regiam o Estado Novo: a fotografia (capítulo 11), os fotolivros (capítulo 12) e as revistas (capítulos 13 a 15). Saliente-se aqui os capítulos 11 e 12, respetivamente da autoria de Paul Melo e Castro e de Manuel Villaverde Cabral, que se debruçam, por um lado, sobre uma parte da obra do moçambicano Ricardo Rangel - um dos primeiros fotógrafos profissionais a denunciar a desumanização da situação colonial - e, por outro, sobre três importantes projetos editoriais produzidos entre o final da década de 1940 e o início da década de 1960: as obras Mulheres do Meu País, de Maria Lamas, Lisboa “Cidade Triste e Alegre”, de Costa Martins e Victor Palla, e Arquitectura Popular em Portugal, editada pelo Sindicato Nacional dos Arquitetos.
O caráter multitemático e interdisciplinar de Projectos Editoriais e Propaganda: Imagens e Contra-Imagens no Estado Novo é bem patente a partir de uma breve leitura do seu índice e da sua introdução. Na obra colaboraram investigadores de áreas tão diversas como a História da Arte, as Belas-Artes, o Design, a Comunicação, a Fotografia e os Media Studies, mostrando assim aos historiadores portugueses como é possível combinar, numa perspetiva informada, multidisciplinar e teoricamente fundamentada, o estudo de fontes visuais e escritas.
Um dos grandes méritos da obra é demonstrar como a produção editorial e a fotografia constituíram significativos campos de batalha ideológicos entre os apoiantes e os opositores do Estado Novo. Se, por um lado, eles foram - a par da escola, da Igreja, do exército, da rádio ou da televisão - meios através dos quais a propaganda do regime se disseminou, por outro lado, representaram também um espaço para a exposição de ideias contrárias, mesmo num contexto de forte controlo da liberdade de expressão marcado pela censura.
Outro importante contributo do livro é o de trazer para um lugar cimeiro temas que raramente eram abordados por aqueles que se dedicam à história da cultura portuguesa no século XX. A imagem fotográfica impressa é seguramente um deles, algo que se poderá explicar em grande medida pela impreparação, dificuldade ou resistência em incorporar metodologias de outras áreas do saber. Porém, em relação a alguns temas abordados pelo livro (o caso da Telescola e da Poesia Experimental Portuguesa), parece haver também um entrave cronológico que impossibilita que objetos culturais produzidos numa fase posterior do Estado Novo (décadas de 1960 e 1970) recebam a mesma atenção que outros identificados com a ação fundadora de António Ferro no SPN/SNI.
Não obstante os seus importantes contributos para a história da produção editorial em Portugal no século XX, a obra beneficiaria da incorporação de dois elementos. Por um lado, um maior enquadramento teórico: são poucos os capítulos (1, 3, 10 e 11 são honrosas exceções) que buscam referências bibliográficas dos temas em estudo, tornando assim difícil para o leitor menos entendido perceber, mais do que a relevância dos projetos analisados, a abordagem empregue pelos autores na análise destes. Por outro lado, deveria haver uma maior perspetiva comparativa em relação a contextos internacionais análogos, sobretudo em capítulos que abordam projetos de cariz nitidamente transnacional (por exemplo o 4 e o 8).
Apesar destas duas lacunas, Projectos Editoriais e Propaganda: Imagens e Contra-Imagens no Estado Novo é uma obra essencial para melhor compreender a história da produção editorial e da imagem fotográfica impressa no contexto da ditadura portuguesa. O seu enfoque em objetos de estudo e temas normalmente ignorados pela historiografia em Portugal faz dela um marco significativo na produção académica sobre estes temas.