O número 249 da Análise Social fecha o ano de 2023, celebrando 60 anos de existência da mais antiga revista de ciências sociais em Portugal. Nestas seis décadas, ultrapassou muitos desafios e foi capaz, passo a passo, de se adaptar a tempos novos. Desde o seu nascimento, em 1963, atravessou a fase final do Estado Novo e a Guerra Colonial, a Revolução de Abril e a consolidação da democracia, a entrada de Portugal na CEE em 1986, a crise financeira internacional de 2008, e, recentemente, a pandemia da Covid-19. Nesta travessia feita de mudanças profundas, a Análise Social manteve um lugar de destaque. Tem sido, em todos os momentos, uma referência incontornável, tanto que a história das ciências sociais em Portugal é confundível com a da revista. Nas suas páginas, passadas e presentes, encontramos inúmeros exemplos de imaginação científico-social, rigor analítico e crítica aguçada. O legado destes 60 anos mantém-se presente. A missão fundadora da revista não foi esquecida. Este reconhecimento não implica, porém, que não indaguemos, mais a fundo, o que é hoje, 60 anos depois, a Análise Social.
O legado da AS é bem conhecido. Como sublinha José Luís Cardoso (veja-se o artigo neste número), a riqueza da história passada é absolutamente inegável.1 O escrutínio comparativo dos principais temas tratados na revista, década a década, mostrou-nos alguns pontos referenciais de coesão (ver artigo de Dantas et al. neste número). Ao longo do tempo, a AS deu sempre centralidade a temas fundamentais da realidade social portuguesa. É certo que desde a preocupação com o desenvolvimento português da década de 60, a AS mudou. A revista tem hoje maior pluralidade temática e mais alargada abrangência disciplinar (com a inclusão de áreas como a Antropologia, a Ciência Política, a Psicologia e a Geografia). As geografias de publicação amplificaram-se, com a recente viragem para contextos europeus e para o Brasil, muito em particular. Aquando da comemoração dos 200 números da revista, João de Pina Cabral2 (diretor da AS entre 2011 e 2014), alinhou os diferentes tempos da revista, identificando uma época fundadora (entre 1963 e 1988), uma época de consolidação (entre 1988 e 2011) e uma terceira fase que então se abria para uma nova geração e um novo modo de fazer ciências sociais (ver entrevista neste número).
Foram várias as fontes de mudança que até aí conduziram. Algumas das mais relevantes emanaram do próprio campo científico, com o aumento da competitividade e das pressões para a internacionalização. José Machado Pais (diretor da AS entre 2005 e 2007), em entrevista neste número, fala-nos do esforço de internacionalização. Pedro Lains (diretor da AS entre 2008 e 2010) enfatizava, em 2008,3 que, “ao abrir-se à colaboração externa de autores, referees, consultores e agora membros do conselho de redacção, a revista traz para as suas páginas uma maior concorrência de experiências e saberes.” Essa concorrência - acrescenta - “é fundamental para assegurar a crescente qualidade dos artigos que se publicam.” José Sobral (diretor da AS entre 2015 e 2020), em entrevista neste número, salienta os bons resultados obtidos do lado de lá do Atlântico, na classificação da revista na plataforma da CAPES/Sucupira.
Sem dúvida, a Análise Social adaptou-se às regras da publicação académica, aderindo a plataformas internacionais e adotando, de forma pioneira, a partir de 2008, uma política de acesso aberto (OA) diamante. Todos os artigos podem ser livremente partilhados, como propriedade, que são, dos seus autores e autoras. A revista está disponível desde 2007 na plataforma SciELO-Portugal, desde 2010 no JSTOR e na SCOPUS desde 2011. Os dados anuais destas plataformas mostram o aumento consistente da consulta dos artigos da revista, por meio digital. O impacto da AS tem aumentado, e em 2023 a revista passou a integrar o Quartil 2 (Q2) da Scopus CiteScore, um indicador de referência para medir as citações obtidas pelos artigos publicados numa revista. A AS tem sido capaz de marcar o seu lugar no mundo das métricas e das hierarquizações científicas que fazem parte do campo académico na atualidade. E tem sido capaz de marcar esse lugar continuando a publicar essencialmente em língua portuguesa, seja o português de Portugal ou, em particular, o do Brasil. Atualmente, parte significativa dos artigos publicados na AS (quase um quinto) são escritos a partir do Brasil. O número de artigos vindos de outros lugares no mundo é muito pequeno. Apenas um número restrito dos artigos publicados (cerca de 12% nos últimos 4 anos) foi escrito em inglês. A língua portuguesa continua a ser, por isso, largamente dominante, apontando para um papel importante da revista enquanto ponte e veículo das ciências sociais lusófonas. Num mundo em que predomina a anglofonia, a AS segue rotas de internacionalização que têm conquistado um espaço importante de partilha e diálogo científico.
Se a internacionalização foi, durante as décadas mais recentes, uma questão premente, hoje alguns desses desafios têm sido ultrapassados e revistos. O grande desafio da AS será, hoje, de uma natureza diversa, bem para lá do universo das métricas e dos fatores de impacto. Se algum repto existe, esse desafio será sobretudo de cariz identitário. Num mundo digitalizado, onde a quantidade de informação se agiganta, as plataformas editoriais se multiplicam a uma velocidade nunca vista, e a especialização ganha vantagens de reconhecimento rápido, as virtudes da pluralidade e da abrangência temática podem ser questionadas ou incompreendidas. Manuel Villaverde Cabral (diretor da AS em 2004), em entrevista neste número, aponta soluções de foco disciplinar entre a sociologia e a história. Várias estratégias são possíveis e válidas, sejam disciplinares ou temáticas, de âmbito global ou regional. De uma forma ou de outra, a questão da identidade, aqui entendida como o carácter singular que permite uma apresentação clara e eficaz, atira-nos para o futuro.
A AS terá de reafirmar aspirações, com um projeto que mantenha a identidade, mas responda também a novos reptos - como, por exemplo, os desafios impostos por temas emergentes, pela globalização e a migração, pela revolução da inteligência artificial, pelas novas desigualdades que continuam a cavar fossos e precariedades, pela necessidade de repensarmos a história do colonialismo português e o trabalho de descolonização que temos pela frente. Esta é uma tarefa exigente. Trata-se de aliar o carácter multidisciplinar a um foco singular, que garanta à revista uma identidade futura. Trata-se de ocupar estrategicamente um espaço situado - ainda que aberto e plural - no cenário internacional. Por todas estas razões, a revista está hoje na viragem para uma quarta fase da sua vida útil, em que terá de aliar foco criativo, renovação e sustentabilidade na edificação da sua identidade própria. A mudança geracional da revista, já em curso, tem também de se traduzir em formas sustentáveis de fazer ciências sociais, capazes de dar lugar a novas gerações de autores/as e editores/as. Veja-se que o atual corpo editorial da revista é o primeiro em que nenhum dos seus membros (vários dos quais investigadores precários, que generosamente contribuíram para a continuidade da AS) teve a oportunidade de conhecer Adérito Sedas Nunes. O seu legado chegou-nos apenas pelas palavras e memórias partilhadas por terceiros. Os autores e as autoras jovens (doutorados há menos de 5 anos ou ainda estudantes) constituem já cerca de 40% do total, considerando os números publicados entre 2020 e 2022.
É, contudo, relembrando um dos mais famosos textos de Adérito Sedas Nunes, que o atual Conselho de Redação entendeu ser oportuno fazer um balanço destes 60 anos. Em 1964, Sedas Nunes publicava um artigo, ainda hoje fundamental, sobre o carácter dual da sociedade portuguesa.4 Pensamos ser oportuno homenagear o legado de Sedas Nunes, procurando avaliar a pertinência da perspetiva do Portugal dual para compreender e analisar a atualidade. Em face da crítica ao dualismo categorial nas ciências sociais e à complexificação da dicotomia tradicional/moderno, fará sentido continuar a falar de dualidades? Em que moldes? Este número apresenta um conjunto de reflexões que procuram respostas para este problema a partir da análise de vários temas centrais: as mudanças nas configurações socioterritoriais e as dinâmicas da “terceira espacialidade” (Renato Miguel do Carmo), os desafios relativos à questão territorial (Fabienne Wateau), as desigualdades e a recomposição social (Virgílio Borges Pereira), a memória histórica, a questão colonial e a mudança cultural (Rosa Cabecinhas), o sistema político e a democracia (Robert M. Fishman), a precariedade científica (Ana Ferreira), as desigualdades remuneratórias entre homens e mulheres vistas à luz da sociologia económica e das organizações (Sara Falcão Casaca).
A ideia de um volume comemorativo insere-se numa tradição da AS. No seu já longo percurso, as várias efemérides da revista têm sido motivo de reflexão conjunta, sempre envolvendo um alargado número de pessoas. Cada número publicado representa um trabalho persistente de todos os seus diretores, conselhos editoriais e consultivos, bem como das equipas técnicas, incluindo e destacando o apoio e gestão editorial da Marta Castelo Branco, que tem acompanhado a revista nas muitas aventuras dos últimos 15 anos. Esta é uma história com rostos e com braços, feita de ideias e de trabalho. Sem esses dois lados da mesma moeda, a revista não manteria intacta a sua vitalidade. A edição do presente número resultou do trabalho coletivo. Do lado editorial, o esforço foi entusiasmado e consciente da oportunidade que é podermos contribuir para o legado futuro da AS. Do lado dos autores e autoras, os contributos são inestimáveis, com abundância de respostas criativas ao nosso repto inicial. A palavra final é, assim, de agradecimento a todos e todas que contribuíram para este número comemorativo, seja com textos originais, entrevistas e ensaios, seja com trabalho de bastidores, revisão e edição.