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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.249 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023249.12 

Entrevista

“The Times, They Are a-Changing”, Entrevista com João Pina Cabral, por Maria Concetta Lo Bosco

Maria Concetta Lo Bosco1 
http://orcid.org/0000-0002-7220-8762

João Pina Cabral1 
http://orcid.org/0000-0002-7180-4407

1. Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa » Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal. maria.lobosco@ics.ulisboa.pt; pina.cabral@ics.ulisboa.pt


Ao entrar no seu gabinete, o professor João Pina-Cabral apresenta-me o número especial da Análise Social publicado em 2011 por ocasião da comemoração do número 200 da revista. Além da introdução escrita por ele próprio na qualidade de diretor da revista, a publicação inclui ainda a reedição de um artigo sobre o conceito de ideologia que o fundador da revista, o professor Adérito Sedas Nunes, publicou no primeiro número, em 1963.

MARIA CONCETTA LO BOSCO__Na introdução a este número especial, o João fala de três “épocas” da AS (Análise Social) e do percurso das ciências sociais em Portugal. Poderia reconstruir esta periodização através da sua própria experiência?

JOÃO PINA CABRAL__Essa pergunta é muito relevante porque eu acho que a AS acabou por acompanhar a evolução das ciências sociais portuguesas desde 1961. Esse foi um ano especial em muitos aspetos. Foi o ano da crise do Santa Maria, quando Henrique Galvão1 chamou a atenção internacional para o colonialismo português. De repente, toda a gente pelo mundo fora sabia que havia um problema em Portugal com o regime fascista/colonialista - na altura, as duas vertentes estavam associadas. Mais ainda, percebeu-se bem que havia muita gente em Portugal que se opunha a esse regime. Nesse ano ainda, Nehru decidiu pôr fim às colónias portuguesas na Índia.2 Em África, também, os sinais de mudança eram visíveis. A famosa carta-aberta de Amílcar Cabral ao governo português exigindo a libertação dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde é de 1961.

Contudo, o ditador não soube dar uma resposta criativa e com futuro a todos esses alertas. Nesse momento, a opinião pública portuguesa estava ainda muito dividida e é isso o que Adérito Sedas Nunes tenta endereçar ao discutir a questão das ideologias. Não nos esqueçamos das revoltas estudantis da época, que tanto radicalizaram a juventude. Apresentavam-se duas soluções: uma solução revolucionária autoritária e uma solução conservadora autoritária. Mas os intelectuais que, tal como ele, saíram do catolicismo social, não se sentiam bem com nenhuma dessas duas opções. Nos anos 60, o catolicismo dos fundadores das ciências sociais modernas em Portugal ecoava as mudanças que o Concílio Vaticano II iria promover.3 Eles eram cristãos-democratas - o que eles queriam era uma espécie de renovação ética, mas vinda de dentro, sem revoluções ou novas ditaduras. Os mais revolucionários à época, pelo contrário, não eram cristãos e estavam ligados principalmente ao Partido Comunista. Esses estavam a ser postos na prisão pelo regime ou fugiam para o estrangeiro.

Então, na década de 1960 e início da de 1970, a AS teve um papel importantíssimo ligado a esse grupo de gente que, a princípio, simpatizava com Marcello Caetano, mas foi depois percebendo que as intenções expressas do sucessor de Salazar não correspondiam aos seus atos. Eram renovadores, mas, nessa época, chamar-lhes de esquerda era ainda difícil. O próprio Adérito tinha sido membro da Câmara Corporativa.4 Com o tempo, ele e vários dos seus colegas tinham-se distanciado dessa opção, que parecia ter feito sentido nos anos 1940, mas que, 20 anos depois, estava esgotada.. Por isso até, ele sentia que era urgente refundar as ciências sociais no nosso país em novos termos, já que os modelos que os apoiantes da ditadura sustentavam não levavam a parte nenhuma.

A AS contribui para isso sobretudo em torno de duas questões centrais: a questão da habitação e a questão da universidade - e teve um papel muito importante nessa altura. Se, por um lado, no IScEf [hoje ISEG] havia professores de economia e história, como ele e os seus colegas, que queriam umas ciências sociais de estilo democrático, já os professores do ISCSPU, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, tinham uma fortíssima associação ao regime autoritário, tanto em Portugal como em África. Contrariamente aos seus colegas mais democráticos, estes últimos estavam a preparar-se para uma renovação segundo o tal modelo luso-tropicalista e os ideais do colonialismo tardio português. Na viragem dos anos 1960 para os anos 1970, porém, percebeu-se que a esperança de que pudesse haver uma mudança em continuidade, como acabou por acontecer em Espanha, tinha sido desperdiçada por Marcello Caetano, que não teve a coragem pessoal requerida.

Quem sabe, com distanciamento, podemos até pensar que foi a melhor solução, mas a coisa podia não ter ido naquele sentido. Nos anos que se seguiram à morte do ditador em 1970, Adérito Sedas Nunes e os seus colegas foram-se dirigindo para uma visão mais de esquerda. Há que não esquecer que, em Portugal, o ditador tinha um prestígio pessoal enorme resultante do facto de ter posto fim ao colapso da ordem social e das instituições que se tinha vivido no período republicano (1910-1928). Os jovens da geração de Jorge Sampaio, que se revoltaram nas universidades nos anos 1960, para serem enviados quase de imediato como carne para canhão para África, não sentiam isso, mas os mais velhos temiam a possibilidade de voltarmos aos tempos incertos da República.

Em suma, esse primeiro momento da AS até ao 25 de Abril foi um momento áureo em que a revista representava um caminho de refundação das ciências sociais, que se opunha a tudo o que o regime estava a fazer em Portugal e em África. Nas ciências sociais, o outro lado era representado por Mendes Corrêa e os professores mais jovens do ISCSPU, com Adriano Moreira à cabeça, que estavam presos a um discurso que, crescentemente, se revelava falso e até hipócrita, porque todos viam que as mudanças não poderiam continuar a ser adiadas. O período do caetanismo foi talvez o período de maior mudança no Portugal do século XX. Foi como que uma preparação para o que iríamos viver depois do amainar da revolução, a partir de 1976. E a AS teve um papel importantíssimo porque, quando veio o 25 de Abril, as novas instituições universitárias - por exemplo, o ISCTE e a Universidade Nova - assumiram uma liderança intelectual. Quando os jovens que tinham fugido ao serviço militar e estudado no estrangeiro voltaram, já não eram comunistas; eram predominantemente socialistas democráticos. São eles que vão fazer o caminho comum com os intelectuais de dentro, tal como Adérito Sedas Nunes e o primeiro grupo de investigadores do então chamado GIS (hoje ICS), que tinham acabado por perceber que não havia saída viável em continuidade. Portugal necessitava de uma nova via, um caminho de esquerda democrática.

Tudo isto, nos anos 1980, leva a uma mudança na AS, que acompanha a crescente institucionalização do Instituto de Ciências Sociais e do ISCTE, escolas onde os membros do GIS/ICS, agora separados do ISE, tiveram um papel fundamental. Também as outras instituições começaram a mudar paulatinamente. Nesse momento, a AS passa a ser vista de outra forma, como uma revista nos moldes das revistas das instituições científicas de investigação de todo o mundo. Eram revistas que refletiam o trabalho das instituições que as promoviam. Por exemplo, o Journal of the Royal Anthropologial Institute era o jornal do instituto enquanto centro de investigação, onde os investigadores publicavam as suas obras. A American Anthropologist era a revista dessa associação (que, na altura, não tinha o tamanho que tem hoje). A mesma coisa se aplicava às publicações do International African Institute de Londres. Enfim, por todo o lado, estes centros de investigação encontravam a sua voz através das suas revistas. É nesse regime que a AS dos anos 1980 assume a sua relevância, sobretudo através da organização de grandes conferências que a revista publicava sobre forma de números duplos.

Para nós, que chegávamos a Portugal naquela altura vindos do estrangeiro onde tínhamos estudado (eu cheguei em 1982), a AS era o nosso meio de publicação preferencial. O Adérito insistia sempre: “Já publicou um artigo este ano na Análise Social?” Porque ele via a revista como uma espécie de vitrine da investigação que estava a ser feita no ICS, justificando a sua existência. Para mim (e para todos nós da minha geração - a geração que agora se está a reformar) isso foi muito importante. À época, a carreira de investigação começava a emergir. Sedas Nunes estava a gerir um instituto de investigação que tinha postos de investigador, coisa raríssima em Portugal. Ele contratava quem ele muito bem entendia. Era muito sistemático na forma como o fazia; investigava os nossos curricula, mas decidia só depois de ter largas conversas connosco. Lia atentamente o que nós publicávamos e, se gostava, contratava-nos. A certa altura, em 1984, mandou chamar-me. Ouviu-me e pediu-me uma cópia da minha tese; leu, gostou e chamou-me para o ICS. Fez isso com todos nós. Por exemplo, o João Ferrão ou o Nuno Monteiro também entraram dessa forma: tínhamos publicado algo que ele achava importante e era o que o fazia decidir. A ideia dele é que esse projeto institucional tivesse a sua visibilidade através da AS.

MARIA CONCETTA LO BOSCO É através deste projeto coletivo que foi possível não só lançar, mas consolidar o papel das ciências sociais em Portugal

JOÃO PINA CABRAL Sim, mas o percurso foi complexo. Já nos anos 1980, houve um desencontro entre ele [Sedas Nunes] e as pessoas ligadas ao ensino de gestão no ISCTE. Mudou-se para a NOVA, onde dava aulas. Isso levou-o ainda mais a querer manter o ICS independente das universidades, como uma espécie de órgão autossustentável. O ideal de transformar o ICS num órgão próprio com investigadores de carreira era o seu sonho de sempre. Quando morreu, no início dos anos 1990, o ICS já tinha o estatuto de faculdade da Universidade de Lisboa. Fomos nós que consolidámos esse processo. À época, a relação com o ISCTE era um pouco ambígua, porque muitos de nós éramos professores lá (eu fui até 1996) e o ISCTE via o ICS como um polo de investigação muito importante. Não queria que nos afastássemos. A relação era criativa, mas sempre um pouco competitiva.

A mudança dos anos 1990 foi fundamental para as ciências sociais em todo o mundo porque foi o fim da Guerra Fria e implicou o assumir de uma nova posição das ciências sociais acerca do seu papel político a nível global. Aqui em Portugal, esses anos estão ligados à figura de José Mariano Gago, que fundou a FCT e que, mais tarde, no princípio dos anos 1990, se tornou ministro das Ciências. José Mariano Gago era um físico nuclear, mas com uma visão muito decidida sobre a natureza das ciências sociais: ele sempre nos tratou como um ramo da ciência, apesar de haver muitas vozes no sentido contrário. A história pessoal disso - que ele conta na entrevista que publiquei na AS (Pina-Cabral, 2011) - é interessante. Quando veio a revolução do 25 de Abril, José Mariano Gago estava em Paris a acabar o seu doutoramento; não podia voltar. Decidiu participar na revolução à distância, dando aulas noturnas de alfabetização e de introdução às ciências a emigrantes portugueses analfabetos que viviam nos famosos bidonvilles. Isso teve um enorme impacto sobre ele, influenciando essa conceção humanista da ciência que o movia e cuja herança ainda vivemos hoje. Deve-se também à influência que teve sobre ele um outro intelectual de grande gabarito - o filósofo Fernando Gil.

A partir da fundação da FCT, passou a haver bolsas de doutoramento, lançaram-se mestrados e doutoramentos, começou a haver subsídios para projetos de investigação. Mais tarde, fundaram-se os laboratórios associados - sendo o ICS um dos primeiros. Na altura, eu era presidente do conselho científico e empenhei-me muito em fazer o ICS acompanhar essa mudança que estava a ocorrer no sistema científico nacional.

MARIA CONCETTA LO BOSCO As condições políticas foram importantes para dar espaço a este projeto coletivo. Qual foi o desafio depois?

JOÃO PINA CABRAL Houve uma mudança. Esse papel que a AS tinha tido como a voz de um grupo de investigação, como a voz de toda uma geração que estava a relançar as ciências sociais em Portugal em novos moldes, acabou por terminar. As mudanças estavam a ser feitas, o desafio agora era outro e prendia-se com as relações internacionais - tanto dentro da lusofonia como em relação às ciências sociais em inglês. Tinha havido uma mudança, porque todos nós éramos principalmente francófonos, mas isso mudou nos anos 1980 e, com isso, mudou também o estilo das práticas científicas, nomeadamente o regime de publicação.

A AS acabou por se tornar uma revista genérica de ciências sociais, onde qualquer pessoa, fosse qual fosse a disciplina, podia mandar um artigo. Durante esse tempo, tinham-se fundado associações disciplinares, revistas disciplinares e o papel de uma revista abrangente e interdisciplinar como a AS tinha sido posto em causa. Mais tarde o António Barreto fundou a Imprensa de Ciências Sociais, uma obra notável. Acontece que tudo isso contribuiu para enfraquecer a revista. O espaço como lugar de edição dos resultados de grandes conferências e/ou de colectâneas temáticas que a revista tinha tido passou para a Imprensa de Ciências Sociais. A AS passou a ser a mais prestigiada revista interdisciplinar e internacional em português, mas essa ligação com o ICS foi-se perdendo.

Ocorreu algo de inesperado para nós. Fomos nós que contribuímos para isso, mas quando estamos no meio das coisas nem sempre é fácil vê-las à distância. Em Portugal, as modas vindas de fora são um perigo, porque somos muito pequenos e temos dificuldade em resistir ao efeito destrutivo das modas, que funcionam entre nós como se fossem tempestades: chegam tarde mas abalam muito. Com a vitória do neoliberalismo como ideologia hegemónica nos anos 1990 chegou a nós a bibliometria. Isso significava que havia revistas mais “chiques” que outras; que elas não eram portuguesas; que publicar em inglês era absolutamente melhor do que publicar em português ou em francês; que se tu tinhas um bom artigo não o enviavas à AS, mas ias à procura duma revista internacional qualquer onde o pudesses publicar. Esse foi o principal desafio para a revista na viragem dos anos 1990 para 2000. Os principais investigadores do ICS, e sobretudo os mais internacionalizados, publicavam muito pouco cá. A partir de 2004 foi-nos mesmo explicitamente indicado que não devíamos publicar em Portugal, porque os índices bibliométricos das revistas internacionais eram incomparavelmente maiores.

No meu caso, eu sempre tive uma obra em português e uma obra em inglês. Elas tocam-se, claro, mas sempre corresponderam a estilos largamente distintos, porque os públicos leitores são totalmente díspares. Na altura, estava a publicar muito no Brasil, porque estava a fazer investigação lá. Foi nessa época, no decorrer da década de 2000, que começaram a surgir campos de encontro entre esses dois mundos de publicação. Ao mesmo tempo, o ICS cresceu muito e diversificou-se disciplinarmente. A revista começou a não ser suficientemente especializada para muitos de nós: aquele projeto de uma revista que mostrava o lado mais avançado das ciências sociais em Portugal começou a perder a sua força.

No entanto, o prestígio da revista também aumentava e até o público leitor, porque as ciências sociais cresciam. Era preciso mudar o projeto e fazer da AS um fórum de encontro interdisciplinar e internacional das ciências sociais em Portugal. Era preciso separá-la das gerações anteriores e abrir ali caminho para uma forma mais pós-moderna de fazer sociologia e antropologia que era, num certo sentido, menos institucional, mais engajada e mais transversal.

Quando a revista fez os 50 anos e eu me tornei diretor, escolhi um coletivo editorial de cientistas sociais jovens representando as disciplinas que existiam predominantemente no ICS. A maioria do coletivo de editores não era membro de pleno direito do ICS, mas sim ligado ao ICS por virtude de laços intelectuais e de orientação. Estávamos convencidos de que a revista podia vir a perder a sua força se não se ajustasse ao novo mundo editorial que estava a emergir. Havia dois fatores que tivemos em conta: por um lado, o surgimento da publicação online e, por outro lado, transformar a revista numa plataforma de interação mais abrangente. A nossa ideia é que, a partir do momento em que já havia revistas sectoriais nas ciências sociais em pleno funcionamento - e que competiam connosco com sucesso ao nível de cada disciplina -, a AS devia assumir-se como um ponto de encontro e de debate. Contrariamente ao que pensámos na altura, o primeiro objetivo foi relativamente fácil de alcançar, o segundo muito mais difícil.

Foi isso que propusemos na altura, mas talvez tenhamos avançado rápido de mais. O que se propunha era mudar o estilo da revista, até graficamente, recuperando algum do sentido de polémica que tinha feito a revista tão importante nos anos 1960 e 1970. O nosso primeiro número [número 200, comemorativo dos 50 anos da revista] correspondeu a uma tentativa de fazer um balanço das grandes figuras da geração dos anos 1960, que estavam a reformar-se na altura. O problema foi quando decidimos que não podíamos deixar de fora Boaventura de Sousa Santos, porque é um dos cientistas sociais portugueses mais importantes dessa geração. Se muitos de nós nem sempre concordam com o que ele escreve e afirma, isso tudo faz parte do funcionamento normal das ciências! No entanto, a sua obra não pode ser esquecida, nem ao nível substantivo nem ao nível institucional. Então, de repente, reemergiram as velhas zangas. Abriu-se um fosso geracional. A nova geração que estava a surgir nas ciências sociais em Portugal - e que estava maioritariamente representada no nosso coletivo editorial -não via as coisas da mesma forma que os da geração anterior. Eram mais internacionalizados, mais arrojados e, sobretudo, faziam parte da geração dos que sentiram a crise de 2008 diretamente na pele.

Enquanto a velha geração, entre eles eu próprio, tinha tido um emprego seguro a partir do momento em que se doutorara (ou até antes, em alguns casos), a nova geração era gente que recebia o seu salário a título precário nos novos centros de investigação criados pelo José Mariano Gago. Não tinham contratos permanentes, tinham feito doutoramentos mais rápidos, tinham de publicar sob muito mais pressão e sentiam a crise violenta que Portugal viveu entre 2008 e 2014 com muito mais agrura. Vivíamos uma mudança ideológica muito profunda em Portugal, ligada à descoberta de que, afinal, o projeto da União Europeia poderia não ser tão simples como tinha parecido.

O momento estava a ser um momento de mudança brutal. Ainda por cima estava a acontecer algo que não tínhamos esperado. Portugal, e o ICS em particular, tinha-se tornado um local apetecível para jovens investigadores como tu, vindos de toda a Europa e da América Latina. As velhas instituições fundadas nos anos 1980 estavam a ter dificuldade em responder a essa mudança geracional. Nós queríamos que a revista funcionasse como uma espécie de charneira para essas mudanças. E isso podia acontecer de várias maneiras. Uma delas era usar o formato do “fórum” - isto é, publicar não só “artigos científicos” como chamar cientistas sociais e os seus entrevistados a dar depoimentos mais informais sobre assuntos contemporâneos. Ao mesmo tempo, as pessoas interagiam crescentemente em tertúlias online. Os temas estavam a mudar muito rapidamente, assim como as formas de fazer ciência. Queríamos captar essa mudança através de uma mudança de registo. O lado académico da revista era sempre o dominante, mas muitos de nós continuávamos a publicar o melhor da nossa produção em revistas internacionais (em inglês, sobretudo). Fazia sentido dar à AS um aspeto menos formal e mais de newsletter. Isto é, virar a revista mais na direção de ser um reflexo do que estava a acontecer nas ciências sociais lusófonas e no ICS em particular. Foi assim que decidimos abrir a revista a um dossiê fotográfico, até porque estava tudo a mudar e o lado visual do depoimento científico estava a tornar-se muito mais importante como, entretanto, se verificou.

Em 2012, porém, fui convidado a ser diretor da Escola de Antropologia e Conservação da Universidade de Kent (de onde me reformei para voltar ao ICS em 2020) e deixei de ter tempo para mais esse esforço. Foi então que deixei a direção da revista e o José Sobral a assumiu. Já só depois de ele se ter tornado diretor é que entendemos que as mudanças que tínhamos promovido se tinham revelado polémicas de mais. O número que deu azo a um grande debate foi organizado por nós, mas publicado já depois de eu ter saído e o debate,5 curiosamente, foi em torno de uma questão geracional: o surgimento de uma nova geração de grafiteiros nas paredes de Lisboa que traziam agora novos temas e um tom anti-neoliberal muito mais aguerrido.

MARIA CONCETTA LO BOSCO Esse debate foi também sobre como os cientistas sociais produzem conhecimento e como ele se partilha e reflete na sociedade…

JOÃO PINA CABRAL Sim. Sem que qualquer um dos dois lados da polémica tivesse previsto que isso se iria levantar, a questão da liberdade editorial acabou por ter um impacto decisivo.

MARIA CONCETTA LO BOSCO O ambiente académico português não estava preparado a esta mudança?

JOÃO PINA CABRAL É por isso que eu digo que avançámos rápido de mais. Mais tarde, como se viu, a opinião dominante acabou por nos dar razão. Tudo isso é hoje um tema do passado, se bem que essas mudanças vieram para ficar - tanto nas atitudes dos jovens cientistas sociais como nas suas carreiras. Na altura, porém, não tínhamos suficiente distanciamento. Muitos colegas pensavam que estávamos a pôr em causa o ICS, tinham dificuldade em ver o que se ia perfilando perante nós. E isto em várias frentes. Por um lado, sabíamos que a questão dos precários era determinante para a nova geração, por isso até, na minha entrevista ao José Mariano que a AS publicou, a última questão era sobre esse tema. Por outro lado, os desafios da publicação online não estavam para terminar. Isto tanto no aspeto do sentido de comunidade dos cientistas sociais (isto é, quem conta para quem nas nossas decisões profissionais) como no aspeto das formas de constituir argumento científico.

MARIA CONCETTA LO BOSCO Atualmente, há uma pressão enorme sobre os cientistas para publicar. O nosso curriculum é avaliado através de parâmetros quantitativos e ter um contrato num concurso público depende cada vez mais do número de publicações: podemos falar de uma subordinação também das mesmas revistas a esta produção quase massificada do conhecimento científico? E qual é o impacto desta política sobre uma revista como a AS?

JOÃO PINA CABRAL Acho que a tua pergunta inclui vários assuntos. Não te esqueças de que também eu só fiz carreira porque publiquei. Se não fosse eu ter publicado o meu primeiro livro em Oxford, se calhar não tinha feito uma carreira académica. Foi no ano em que recebi o contrato de publicação (1984) que me convidaram para entrar no ICS. A questão da pressão sobre publicações não é tão nova como pode parecer. O que é novo é a política do impact factor e do ranking das revistas, porque isso é uma coisa que está ligada à tal mudança que começou a emergir na viragem dos 1980 para os anos 1990, quando as empresas editoriais globais começaram a constituir-se. A maior parte das revistas que ainda hoje conhecemos nas ciências sociais foi fundada da mesma forma que a AS: uma instituição académica tinha um órgão que publicava aquilo que os seus investigadores faziam. Era uma coisa relativamente caseira. Mas isso acabou nos anos 1990, porque as grandes empresas editoriais americanas (Wiley, Elsevier, Springer, Taylor & Francis, etc.) começaram a comprar revista após revista. Muitas editoras compravam só para acabar com as revistas ou para as fundir com outras. Hoje, já são só quatro ou cinco (e são proprietárias umas das outras). É um sistema de monopólio global profundamente perturbante para uma sociedade onde a ciência já não é dispensável. A nossa sociedade não funciona sem ciência. Olha o que teria sido a Covid se não tivesse havido ciência? Portanto, o controlo sobre o produto da ciência é absolutamente poderosíssimo do ponto de vista financeiro e político. Apesar de, superficialmente, a coisa parecer irrelevante, o controlo dos direitos sobre o produto da ciência por agências financeiras transnacionais, sem cara nem imagem política, é um dos aspetos mais distópicos da sociedade em que vivemos.

Durante os anos 1990, todas essas pequenas editoras institucionais - ou até familiares no caso da publicação de livros - foram paulatinamente compradas por grandes editoras. Por exemplo, o meu livro Between China and Europe, saído em 2003 na coleção das monografias de antropologia da London School of Economics, até então publicada por uma editora familiar de Bloomsbury - a Athlone -, foi comprada duas vezes nos primeiros dois anos. Agora, francamente, já não te saberia dizer a quem pertence o resultado desse trabalho que fiz em Macau subsidiado pelo governo de Macau - recebo de vez em quando cartas de uma tal Bloomsbury Press, que eu sei que não existe mais do que como nome! Curiosamente, o processo continua; está longe de ter terminado. É que vão surgindo novas experiências. Os novos projetos editoriais emergentes, mal têm algum sucesso, são imediatamente comprados. Em antropologia, o primeiro sinal disso foi a compra agressiva da Berg à Marion Berghahn, que causou tanta celeuma. Mas todos os dias vemos novos casos.

Há todo um discurso neoliberal de subestimação das ciências sociais e das humanidades. É muito curioso, mas há por aí essa ideia de que as ciências sociais servem para pouco. Eu já ouvi, em seio de reuniões de organismos financiadores (tanto em Portugal como em Bruxelas), gente vinda das chamadas “ciências duras” (nem de propósito) afirmar convictamente e sem vergonha que subsidiar as ciências sociais é contra os interesses da ciência. Felizmente, o José Mariano Gago nunca comprou essas mentiras. Infelizmente, mais recentemente, não temos encontrado quem nos saiba proteger. Só que tudo isso é ideologicamente perverso. Eu quero saber como é que, se não tivesse havido ciências sociais, as sociedades democráticas contemporâneas funcionariam. As ciências sociais são parte indispensável do processo a que chamamos “desenvolvimento” e, ao subestimá-las, está realmente a tentar esconder-se o seu papel, não a dispensá-lo. E porquê? Porque esse papel é ideologicamente problemático, porque chama a atenção para o facto de que a sociedade se move com valores, não só com descobertas científicas e com interesses económicos supostamente neutros. Há valores em causa - tanto valores locais, como valores universais. E há escolhas a fazer que têm que ver com esses valores. Ora, isso é contrário aos interesses gananciosos que dominam o sistema financeiro internacional dentro do qual vivemos. Para esses, portanto, é preciso subalternizar as ciências sociais, apesar de eles serem, no fim de contas, os ganhadores do trabalho que fazemos - são eles os donos da Taylor & Francis, da Wiley, da Elsevier, etc.

Por muitos esforços que tenham vindo a ser feitos ao nível de procurar a liberdade de acesso (open access), a verdade é que todos os dias estamos mais longe desse ideal. Há muito nisso do que os franceses chamam langue de bois. Isto tudo, apesar de sabermos que a ciência é paga maioritariamente pela “coisa pública” (a contribuição privada para o subsídio das ciências é quase negligenciável em todas as áreas) e que todos contribuímos enormemente para os proveitos extraordinários que estes agentes financeiros têm com o nosso trabalho. Mais ainda, enquanto na geração anterior éramos predominantemente trabalhadores permanentes com contratos profissionais que nos permitiam fazer parte confortável da classe média, os novos trabalhadores científicos são cada vez mais trabalhadores precários e as suas remunerações têm vindo a descer radicalmente em termos comparativos. E nada disto implica que os jovens possam dar-se ao luxo de publicar menos. Têm de continuar a publicar em revistas que, no fim, pertencem aos interesses financeiros que contribuem para esta proletarização crescente das classes intelectuais.

MARIA CONCETTA LO BOSCO Através da escolha dos temas a debater, a AS comprometeu-se de alguma maneira a tornar mais visíveis as questões sociais que a sociedade enfrentava e que ainda enfrenta. Alguns temas, por exemplo, são propostos novamente nos números coletivos…

JOÃO PINA CABRAL Eu acho que, para a primeira geração, de 1961 a 1974, isso foi muito claro! Os problemas da habitação e da universidade em Portugal eram absolutamente candentes na época. Estávamos a assistir à fundação de uma inteligência internacionalizada que, em Portugal, não existia, porque o Salazar tinha proibido tudo isso. Durante os anos 1980, a AS publicou vários números duplos ligados a conferências que tiveram um enorme impacto intelectual na cena portuguesa. O ICS vai tentando a cada novo momento dar resposta aos grandes problemas sociais que vão surgindo.

Só que, por ocasião da crise de 2008-2012, as questões contemporâneas dividiram outra vez violentamente as ciências sociais. Estávamos mais divididos então do que há muitas décadas: o projeto europeu parecia ter falhado, o imperialismo americano estava visivelmente em colapso, as guerras no Médio Oriente estavam a revelar-se intermináveis e absurdas, os autoritarismos na Rússia, na China e na Turquia estavam crescentemente a isolar o mundo democrático, a emergência climática era cada vez mais patente. No entanto, havia muito quem não fizesse este diagnóstico. Nos próprios Estados Unidos, o Partido Republicano iniciava um percurso, que ainda não terminou, de confronto frontal com os valores democráticos que tinham sido o suporte da política ocidentalista no período do pós-Guerra. Em 2012, mais uma vez, tal como em 1961, havia duas opções: uma mais conservadora e uma mais progressista. Só que, enquanto em 61 as fronteiras eram bem visíveis entre o IScEf e o ISCSPU, em 2012 estávamos todos no mesmo barco e essa polarização era menos clara institucionalmente.

MARIA CONCETTA LO BOSCO Será que, quando se fundou a AS em 1961, havia um maior engajamento coletivo sobre os temas sociais? Ou havia uma visão diferente do mundo académico?

JOÃO PINA CABRAL Eu acho que, em cada momento, nós pensamos isso sobre o momento em que estamos. Temos dificuldade em ver como as posições se contrastam. Mais ainda: como, nos dias que passam, o sistema democrático permite às pessoas que se expressem livremente, as opiniões pluralizam-se. Em sistemas não-democráticos as opiniões polarizam-se mais facilmente. Paradoxalmente, os sistemas democráticos tornam-se menos transparentes, porque não é preciso polarizar o debate, porque somos livres de investir nas pequenas diferenças. As pessoas permitem-se posições intermédias.

Para mim, a questão geracional voltou hoje a ser central como o era nos anos 1960 e antes ainda nos anos 1920 - “times are a-changing” outra vez, como dizia o Bob Dylan. Por isso eu e o Dimitrios Theodossopolous acabámos de publicar na Sociological Review um artigo revisitando analiticamente o tema das gerações (Pina-Cabral e Theodossopoulos, 2022). Eu creio que, com esta mudança geracional que está agora a ocorrer (isto é, com a reforma da geração que renovou as ciências sociais nos anos 1980), vai ter de haver um processo de reestruturação muito profundo nas instituições das ciências sociais em Portugal e na forma de fazer ciência. Ainda é cedo demais para saber onde é que isso vai dar, mas vai acontecer necessariamente, é inevitável.

MARIA CONCETTA LO BOSCO A sua formação como antropólogo teve um impacto sobre a sua maneira de ser diretor da revista. Depois desta sua experiência, de que maneira mudou o seu olhar sobre as dinâmicas da produção do pensamento científico?

JOÃO PINA CABRAL Quando tu és obrigado a tomar opções sobre um objeto particular, tu vais informar-te e vais tentar criar uma opinião sobre a natureza do tal objeto. A natureza das mudanças que estavam a acontecer nas formas de publicar tornou-se muito patente para mim na altura em que era diretor da AS. O ter lidado com este debate em torno do que poderíamos fazer para melhorar a revista (sobretudo a relação com a publicação online) foi algo que me radicalizou, porque chamou a minha atenção para aquilo que estava a acontecer à minha volta, e que eu não tinha notado até lá.

Eu sou essencialmente um ensaísta. Tenho publicado livros, está claro, mas eles são realmente coletâneas de ensaios. O modelo do artigo científico é a forma que exprime melhor a minha maneira de pensar. Nessa altura, eu já não tinha grande dificuldade em publicar os meus artigos. Mas este problema das publicações estava a surgir ao nível das novas carreiras; carreiras muito conflituadas, por essa necessidade de publicar rápido. Acontece que há um efeito mimético nesta forma de produzir ciência que é muito perturbador.

Se queres publicar numa revista americana, onde os colegas que avaliam são de uma certa sensibilidade científica, vais ter de dizer certo tipo de coisas, de citar certas pessoas, de assumir certas posições éticas; se vais querer publicar noutras revistas doutro género, vais ter de dizer outras coisas, fazer outras leituras, vais ter outros leitores. O que se está a passar desde há duas décadas a esta parte é que há jovens italianos, portugueses, moçambicanos, cabo-verdianos, holandeses, eslovenos, brasileiros, colombianos, russos, etc., desesperados por publicar os seus artigos nas mesmas revistas americanas às quais as grandes empresas editoriais atribuem as cotas mais elevadas. Sem isso, serão investigadores precários para o resto da sua vida. A mim, custa-me muito vê-los a esforçar-se desesperadamente por dizer as coisas que eles acham que os colegas que controlam os coletivos editoriais dessas revistas nos Estados Unidos gostariam de ouvir. Perturba-me muito porque, no processo, acabam por aceitar essas formas de ver o mundo que, em muitos casos, realmente não se coadunam melhor aos mundos sociais dentro dos quais eles vivem (na Holanda, Portugal, Eslováquia, Brasil, Moçambique, etc.) nem aos materiais que estudam.

MARIA CONCETTA LO BOSCO Não é por acaso que quando queremos publicar numa revista vamos ler os últimos números para ter uma ideia do que se publica. Regressamos à questão de uma certa massificação do conhecimento que se arrisca a ser moldado de acordo com o que é esperado pela equipa editorial daquela revista. Como é que o setor académico dentro do qual a AS se coloca afeta a maneira como o conhecimento é produzido e partilhado?

JOÃO PINA CABRAL É o efeito de hegemonia, que se tem tornado muito mais patente.

MARIA CONCETTA LO BOSCO Ser diretor editorial duma revista académica é uma responsabilidade também nesse sentido.

JOÃO PINA CABRAL Eu publiquei um artigo na AS no princípio dos anos 1990 anos sobre os novos meios online e o impacto da Internet na comunicação científica (Pina-Cabral, 1998). Já nessa altura essa questão se levantava. Portugal está numa posição particular, pois há gente a viver em outros países a falar português. Temos nas ciências sociais - e até no caso específico da antropologia - um público falante de português que é o segundo maior público de leitores depois do americano. Temos condições para internacionalizar uma ciência social em língua portuguesa e, ao fazê-lo, temos condições para criar uma negociação hegemónica… quer dizer, sub-hegemónica. Isto é, nós em português podemos dizer coisas que nas revistas onde nós publicamos em inglês não podemos dizer. Não é que alguém nos proíba de dizer seja o que for. A questão é mais subtil: é que não nos vem à mão dizer essas coisas dessa forma. Para mim, é essencial para as ciências sociais continuar a publicação de ciência social em línguas como o francês, o alemão, o português, até certo ponto também o italiano. Só assim é que se produzem discursos sub-hegemónicos.

Eu digo sub-hegemónicos porque só há sociedades com hegemonia. Portanto, não devemos imaginar que podemos abstrair-nos dos efeitos de poder. Mas é possível negociar. Uma das coisas que me levou a aceitar o desafio de ser diretor da AS - era um desafio complicado, como acabou por se provar - era a necessidade de tentar criar plataformas lusófonas, que permitissem o normal e natural desenvolvimento dessa negociação sub-hegemónica. Ela ocorre por assim dizer na sombra, sem que nós a vejamos. Nem sequer é muito claro quais é que são os temas específicos… realmente, em última instância, as grandes negociações de significado na teoria das ciências sociais não se fazem com o que nós afirmamos explicitamente, mas com o que subentendemos.

Muito do que está em causa é o cânone. Quando algumas revistas americanas recusam publicar os meus artigos, eu acabo por concluir que é uma questão de cânone. Quer dizer, aquilo do que se disse no passado que eu tomo como relevante. Eles têm um passado diferente do meu, com atitudes para com o que é uma pessoa e o que é a relação dos valores com a terra, que é diferente daquela que eu adoto. De tal maneira que o que eu lhes digo parece-lhes, por um lado, irrelevante e, por outro, estranho. Rio-me muito com os pareceres dos referees que recebo de colegas americanos: normalmente, rejeitam liminarmente o que eu escrevo. Senão, põem-se na posição tonta de querer ajudar a melhorar os disparates que acham que eu escrevo: insistem demagogicamente em explicar-me como é que eu deveria ter escrito o artigo; segundo aquilo que eles vêm, lá no mundo individualista e culturalista onde eles vivem!

O que está a ser negociado em revistas importantes de língua não-inglesa - em Portugal, no Brasil, em França, na Alemanha, em Itália - é um certo pano de fundo assumido. Ninguém sabe dizer com precisão em que é que ele se constitui, mas todos o sentimos como uma dinâmica que justifica e que dirige os nossos argumentos. É importante termos a nível internacional estes outros circuitos linguísticos, porque são circuitos que permitem a constituição de outros passados científicos. Isto aconteceu recentemente com a revista HAU. Quando a revista começou a tornar-se conhecida a nível global explodiu um escândalo: a direção foi acusada de ter comportamentos pouco éticos.6 Porque é que aquilo explodiu daquela maneira, levando algumas pessoas quase ao suicídio e destruindo as carreiras de alguns dos agentes mais importantes da antropologia da década de 2010? Porque a HAU estava a publicar Ernesto de Martino, estava a revisitar Marcel Mauss e Julian Pitt-Rivers, estava a publicar livros de pessoas como Carlo Severi ou eu próprio. A HAU estava a explodir o cânone, o que não convinha a muita gente. São antropologias com passados muito distintos e com implicações muito distintas. Tantas vezes nos esquecemos de que tudo o que se passa entre seres humanos é político, porque há poder nas palavras…

MARIA CONCETTA LO BOSCO Sobre este cânone diferente, a língua é veículo de uma maneira de pensar e de produzir o mundo de forma diferente. Mesmo assim, a antropologia feita em Portugal ou até no Brasil tem alguma dificuldade em se internacionalizar.

JOÃO PINA CABRAL A relação académica que as ciências sociais brasileiras tiveram com as portuguesas nos anos 1990 e 2000 foi muito importante para ambas. Isso vê-se patentemente nos nossos congressos respetivos. Não é tanto a ver com a língua em si, mas com os tais pressupostos por trás das implicações do que estamos a dizer e isso é difícil de medir. Por exemplo, estou neste momento a rever as provas de um artigo para a revista Social Analysis sobre o conceito de alienação e a sua ligação com a experiência de migração. Um dos referees mandou-me uma lista de cerca de sete autores americanos “importantíssimos” que eu não tinha citado. O meu artigo tem um tamanho máximo de 20 páginas, como citar essa gente toda? Mas ele sabe isso. Eu concluo, portanto, que o que ele queria dizer é que, em vez dos autores que eu tinha escolhido citar (Hegel, Goffman, Derrida, Bourdieu, Abdelmalek Sayad, etc.) e cuja obra eu tinha debatido, deveria ter citado e debatido os autores que ele conhece. Para ele, eu estava a desviar, não estava a ser propre, para usar o termo no sentido que lhe dá o Derrida. Chega a ser cómico. Felizmente, o editor percebeu o problema e foi para a frente na mesma com a edição do artigo.

Em suma, a existência de uma revista como a AS é absolutamente essencial. Trata-se de uma revista antiga, consolidada e respeitada, com um passado forte com o qual se pode dialogar. Nós não planeamos o nosso tempo; nós construímo-lo sem saber que o fazemos. Há que ter uma certa coragem para experimentar, porque isso é o que poderá permitir que a revista tenha esse papel de negociação sub-hegemónica que deve ser o seu.

MARIA CONCETTA LO BOSCO Este número da AS, que visa comemorar os seus 60 anos de publicação, preocupa-se muito com a questão do que nós podemos esperar da revista e dos temas a ser debatidos no futuro. Os temas da habitação e do sistema universitário inauguraram a revista e continuam ainda a ser temas em debate.

JOÃO PINA CABRAL O que mudou é que o nosso conhecimento agora é muito mais mediatizado no sentido mais genérico da expressão, muito mais mediato. Hoje, não é possível fazer ciências sociais sem dialogar diretamente com os média que estão a acontecer à nossa volta: WhatsApp, Facebook, Twitter, The Guardian, El País, etc. Mesmo no princípio do século passado, pessoas como Frank Hamilton Cushing, o grande inspirador da antropologia americana, ou Rocha Peixoto, o grande inspirador das ciências sociais em Portugal, publicavam em revistas intelectuais generalistas da época. Só já no pós-Segunda Guerra é que houve uma espécie de separação entre os média em geral e os média científicos. Nos nossos dias, porém, há um novo encontro, não só porque é tudo muito mais rápido, mas também porque o encontro entre os debates científicos e os debates mediáticos está a acontecer constantemente. Há cada vez mais e mais gente, mais e mais educada. Isso significa que as revistas científicas têm de alterar a sua visão, têm de abrir-se mais a esses diálogos generalistas. Tem de haver uma maior abertura para podermos captar o que está a acontecer à nossa volta com alguma sofisticação.

Por exemplo, tenho a certeza de que recebes no teu e-mail as notícias ZAP 7 , de onde é que vêm aquelas notícias? O caminho daquelas notícias é muito complexo e muitas vezes começa com cientistas cujos artigos foram mediados através de várias publicações, que depois são lidas e republicadas por outras revistas online, que fazem resumos de argumentos científicos e que, enfim, através do Twitter, do Facebook ou do WhatsApp, acabam por ser apanhadas por jornalistas e assim por diante. Esta intermediação que está a acontecer de maneira constate vai-se tornar mais e mais importante. As revistas científicas têm de saber lidar com isso e participar ativamente. Viu-se agora muito com a resposta aos desafios da Covid ou da guerra de invasão russa - há uma crescente permeabilidade de meios.

Outro assunto é acerca da imagem: a manipulação da imagem é tão central nos dias digitais em que vivemos que as revistas científicas foram obrigadas a abrir-se ao uso de imagens. Por exemplo, há duas décadas, o Journal of the Royal Anthropological Institute não publicava nada que tivesse fotografias e muito menos a cores. Deixavam-nos incluir desenhos e mapas, talvez uma foto a preto e branco se tivesse suficiente contraste. Mas hoje são publicados artigos cujo tema principal é mediado através de imagens. Por outro lado, há muitas coisas que não nos permitem publicar - há patentes escondidas por todo o lado, o que significa que, por exemplo, eu descobri que não consigo usar citações de poemas da maioria dos poetas ingleses do século XX como epígrafes para os meus artigos. Se isto não é censura, que será?

As revistas têm de se abrir a novos formatos e a AS é uma revista privilegiada, porque o Instituto tem tido até hoje fundos para a sustentar; não é preciso vendermo-nos à Elsevier ou à University of Chicago Press, como aconteceu à HAU, depois de ter sido sujeita a uma exemplar campanha de “cancelamento”. Não temos problemas em publicar online porque, sendo que é o instituto que paga, a revista é aberta e, portanto, podemos pôr tudo em open access, acesso universal. Isto é um grande trunfo, porque significa que qualquer pessoa pode ter acesso imediato aos nossos artigos. Na altura, nós não quisemos abdicar da revista física, em papel, mas isso é um debate ainda inacabado. Eu creio que, em princípio, as revistas em papel virão a desaparecer, até por uma questão ambiental. Por isso, teremos de nos dirigir crescentemente ao leitor online e abrir-nos a modelos de escrita mais diversificados. Este modelo dos artigos à antiga, com o formato que conhecemos, e que herdámos do Iluminismo (foi, afinal, Montaigne quem inventou o molde), pode estar a acabar sem que estejamos atentos à coisa.

MARIA CONCETTA LO BOSCO Uma revista open access e online pode tornar-se com mais facilidade um ponto de referência também para leitores não académicos interessados nas questões sociais?

JOÃO PINA CABRAL Sim, mas a questão é: como é que as pessoas lá chegam? Isto é, o papel dos famosos search engines. Será que, se eu fizer uma pesquisa com a palavra “hegemonia” me vai sair um artigo da AS? Ou será que só me vai sair essa referência na 15.ª página da procura? Nos dias de hoje, as políticas de visibilidade passam não tanto pela natureza do conteúdo, mas pelos algoritmos internos dos motores de busca. Quando queres escrever sobre um autor qualquer, fazes uma procura Google e analisas o quê? Talvez as primeiras três páginas? Alguma vez chegaste à página 10? O problema com revistas como a AS, em línguas não-inglesas, é o motor de busca. A questão não é só teres resultados em português, mas também a ordem em que estes aparecem. Isto é, resultados que são considerados relevantes para o algoritmo do motor. Este é um desafio exatamente para o comité editorial; assegurarem-se de que realmente os motores de busca refletem o que a revista publica, porque é por aí que as pessoas lá chegam.

MARIA CONCETTA LO BOSCO Uma última pergunta acerca do balanço sobre os 60 anos da AS. Em que ponto estamos e como é que imagina a revista no futuro?

JOÃO PINA CABRAL Eu vejo a AS em relação a três públicos. O público lusófono das ciências sociais, sobretudo o brasileiro, mas que também inclui cada vez mais africanos e, cada vez mais, leitores para os quais a língua portuguesa é uma segunda língua. Na China, por exemplo, começa a haver um público leitor de português bastante grande (há mais de 30 licenciaturas de língua portuguesa a funcionar em pleno na China). Em França também começa a crescer o número de pessoas que sabe ler português. Para uma revista antiga como a AS, é importante sondar o que é que está a acontecer nesses campos.

O segundo é o público transnacional e, nesse aspeto, algum diálogo com Espanha e alguma publicação em espanhol não seria má ideia, porque o nosso diálogo com Espanha tenderá a crescer. No passado, há que confessar, nem sempre temos sido muito bem-sucedidos. Aliás, durante toda a minha vida profissional, eu sempre dialoguei com os espanhóis (catalães sobretudo), mas foi sempre através de revistas internacionais e porque falo espanhol. Para o futuro, o diálogo entre nós implica necessariamente trazer um certo aporte espanhol. Se eles quisessem, podiam ler português - que, para eles, seria tão fácil como para nós ler espanhol. Mas isso tem de se tornar um problema deles. Eu creio que, crescentemente, pelo menos nas ciências sociais, vão começando a vislumbrar que talvez Portugal exista para lá das praias.

E há um terceiro público que é o próprio ICS. A AS faz parte do Instituto e eu gostava que o nosso instituto revesse esse espírito que levou o Adérito em 1961 a fazer o que ele fez, isto é, que a revista refletisse realmente aquilo que se está a passar aqui dentro; que houvesse um esforço para usar a revista como vitrine do Instituto. Eu sei bem que é problemático, porque está a pedir-se a pessoas que publiquem coisas que poderiam publicar em revistas inglesas. Para isso, há que demonstrar alguma inventividade: fazer desafios que as pessoas tenham dificuldade em recusar, por serem tão interessantes.

O Instituto está a mudar porque a geração antiga está a sair. Essa nova geração vossa, que começou por ser precária, veio para ficar e é muito mais diversificada do que a nossa. A AS tem de mudar para criar conluios dentro da instituição. O movimento a favor da bibliometria foi muito forte no ICS e dominou o Instituto durante quase 12 anos. Os diretores do Instituto acreditavam muito nisso. Mas esse tempo passou. Creio que chegou o momento de voltar a usar a revista como uma maneira de dar substância ao Instituto, porque o problema neste momento é que o ICS não tem propriamente temáticas próprias, não tem um certo sentido de integração analítica, as disciplinas estão sempre a mudar, expandem-se. O velho problema das disciplinas está a mudar de cara. Há que saber captar temas transversais e marcar a atualidade através desses temas. Temos tido aqui alguns grandes projetos subsidiados pelo ERC que foram tendo esse papel.8

Eu acho que o ICS tem um grande futuro, para isso necessita de saber encontrar a sua posição no seio da Universidade de Lisboa e, mais em geral, por relação às instituições universitárias a nível nacional. A separação entre investigação e ensino - sempre soubemos - não é coisa saudável. É urgente reencontrarmos um elo que tem vindo a diminuir com o ensino de pós-graduação. Isso vai envolver algum sacrifício interno, mas se isso não for feito, o Instituto tornar-se-á impotente, vai perder a sua força criativa, porque também as maneiras como os intelectuais intervêm sobre a coisa pública mudou muito. Aquilo que o Adérito fez em 1961, ao publicar um número da revista sobre o estado das universidades em Portugal, não pode ser refeito. Há que encontrar as maneiras de fazer de hoje. O ICS teve um papel muito importante em vários momentos e vai ter no futuro também, mas é preciso encontrá-lo porque cada momento exige a sua própria receita.

Referências bibliográficas

PINA-CABRAL, J. (1998), “Redes informáticas - espaços, tempos, hegemonias”. Análise Social, 33 (148), pp. 861-870. http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1221844279L4wBP0xk0Gy04AN4.pdf. [ Links ]

PINA-CABRAL, J. (2011), “Entrevista a José Mariano Gago por João de Pina-Cabral”. Análise Social, 46 (200), pp. 388-413. https://www.jstor.org/stable/41336235. [ Links ]

PINA-CABRAL, J., THEODOSSOPOULOS, D. (2022), “Thinking about generations, conjuncturally: A toolkit”. The Sociological Review, 70 (3), pp. 455-473. https://doi.org/10.1177/00380261211062301. [ Links ]

Notas

1 Antigo oficial do exército e inspetor da administração colonial portuguesa que, tendo-se distanciado do regime salazarista por virtude da má gestão que estava a ser feita das colónias africanas, organizou e comandou o assalto ao navio Santa Maria, numa tentativa de provocar uma crise política contra o regime.

2 As forças militares indianas ocuparam Goa, Damão e Diu com pouca resistência, anexando à Índia esses enclaves coloniais, após 400 anos de domínio português.

3 O XXI Concílio Ecuménico da Igreja Católica, foi convocado no dia 25 de dezembro de 1961, através da bula papal Humanae salutis, pelo Papa João XXIII, como momento de reflexão global da Igreja sobre si mesma e sobre as suas relações com as grandes mudanças do mundo contemporâneo.

4 Órgão consultivo que durante o Estado Novo representava os interesses dos organismos corporativos.

5 Refere-se aqui a suspensão preventiva e cautelar da distribuição do n.º 212 da revista AS (2014), determinada pelo então diretor do ICS, por causa do ensaio visual do sociólogo Ricardo Campos. Este ensaio estava ilustrado com graffiti críticos das políticas do governo. Sucessivamente, o conselho científico do ICS deliberou por unanimidade fazer cessar a suspensão e pôr a revista em circulação, em versão impressa e digital.

6HAU Journal of Ethnographic Theory é uma revista académica fundada em 2011 por Giovanni da Col e Justin Shaffner e publicada pela Society for Ethnographic Theory. Em 2018, alegações de abusos no ambiente de trabalho foram levantadas por David Graeber (https://davidgraeber.org/articles/hau-apology/) e por ex-membros da HAU (https://footnotesblogcom.wordpress.com/2018/06/13/guest-post-an-open-letter-from-the-former-hau-staff-7/). O acontecimento e o subsequente escândalo interessaram a comunidade antropológica mais ampla e levou a pensar criticamente os desequilíbrios de poder sistémico dentro da disciplina (https://allegralaboratory.net/hautalk-the-tyranny-of-structurelessness-and-no-end-in-sight/).

7 Serviço de informação distribuído em tempo real em formato eletrónico que oferece notícias sobre temas da atualidade, de economia, do mundo, da ciência e da sociedade.

8 Nos últimos anos, o ICS recebeu vários projetos financiados pela ERC, a principal entidade europeia de financiamento para a investigação de excelência. Citamos aqui, o projeto TRANSRIGHTS - Gender Citizenship and Sexual Rights in Europe: Transgender Lives From a Transnational Perspective (Consolidator Grant n.º 615594), coordenado pela investigadora Sofia Aboim; o projeto MAPLE - Measuring and Analysing the Politicisation of Europe before and after the Eurozone Crisis (Consolidator Grant n.º 682125), sob a coordenação da investigadora Marina Costa Lobo; o projeto COLOUR - The Colour of Labour: the Racialized Lives of Migrants (Advanced Grant n.º 695573), coordenado pela investigadora Cristiana Bastos; e o projeto ABIDE - Animal Abidings: Recovering From Disasters in More-Than-Human Communities (Consolidator Grant, n.º101043231), sob a coordenação de Verónica Policarpo.

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