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Análise Psicológica
versão impressa ISSN 0870-8231
Aná. Psicológica vol.30 no.4 Lisboa out. 2012
Interacção terapêutica em momentos de ambivalência: Um estudo exploratório de um caso de insucesso
Miguel M. Gonçalves*; Joana Loura*; António P. Ribeiro*; Eugénia Ribeiro*; Anita Santos**; Marlene Matos*
* Universidade do Minho, Braga
** Universidade do Minho, Braga, ISMAI, Maia
RESUMO
No processo psicoterapêutico a mudança constrói-se através da emergência e expansão de excepções ao funcionamento problemático do cliente. Contudo, o potencial de mudança destas excepções ou inovações pode ser abortado através da atenuação do seu significado quando o cliente as desvaloriza, trivializa ou nega. Quando este processo se repete ao longo da terapia estamos na presença de ambivalência, na medida em que ocorre uma oscilação recorrente entre duas posições opostas (inovação-retorno ao funcionamento problemático). O presente estudo exploratório tem como principal objectivo descrever a interacção terapêutica nestes momentos de ambivalência, num caso de insucesso psicoterapêutico, recorrendo ao Sistema de Codificação da Colaboração Terapêutica. Os resultados sugerem que a ambivalência emerge maioritariamente no seguimento de intervenções em que a terapeuta desafia a perspectiva habitual da cliente. Os resultados mostram ainda que a terapeuta tende a responder à ambivalência da cliente com um novo desafio, sendo que a cliente tende a expressar novamente ambivalência ou a discordar da terapeuta. Deste modo, quando a terapeuta persiste no desafio verifica-se frequentemente uma escalada no desconforto da cliente, que se manifesta na evolução de uma resposta de ambivalência para uma resposta de invalidação por parte da cliente.
Palavras-chave: Ambivalência, Colaboração terapêutica, Estudo de caso único, Insucesso terapêutico.
ABSTRACT
Change in psychotherapy occurs through the emergence and expansion of exceptions to the client’s problematic functioning. However, these exceptions’ potential to promote change may be aborted by the attenuation of their meaning, when the client devaluates, trivializes or denies them. When this process repeats itself throughout the therapeutic process, clients are facing ambivalence, since there is a recurrent oscillation between two opposite positions (innovation – return to the problematic functioning). The present exploratory study aims at describing the therapeutic interaction within moments in which ambivalence occurs in an unsuccessful case using the Therapeutic Collaboration Coding System. Results suggest that ambivalence emerges mainly as a response to an intervention in which the therapist challenges clients usual (i.e., problematic) perspective. Moreover, results suggest that the therapist tends to respond to client’s ambivalence with a new challenge intervention which is generally followed by ambivalence or even invalidation from the client. Hence, when the therapist persists in challenging the client there is usually an escalation in clients’ discomfort, expressed in the evolution of a ambivalence response towards an invalidation response.
Key-words: Ambivalence, Single case study, Therapeutic collaboration, Therapeutic failure.
Nos últimos 30 anos surgiu um movimento teórico na Psicologia que sugere que os seres humanos dão significado à sua experiência através da construção de auto-narrativas ou narrativas de vida. As auto-narrativas condensam significados acerca de nós próprios, dos outros, do passado recente ou remoto, mas também do futuro que antecipamos (Angus & McLeod, 2004; Gonçalves, Matos, & Santos, 2009; Hermans, 1996; McAdams, 1993; White & Epston, 1990). Esta concepção narrativa da significação humana tem também sido usada para dar sentido à mudança em psicoterapia (Angus & McLeod, 2004; Hermans & Hermans-Jansen, 1995; White, 2007; White & Epston, 1990). De acordo com esta perspectiva, quando os clientes mudam não se limitam a reduzir os seus sintomas, mas mudam também o modo como significam a sua realidade. Assim, coloca-se a hipótese de que a mudança sintomática em psicoterapia é tanto mais acentuada, quanto mais mudam as auto-narrativas dos clientes. De algum modo, todos os terapeutas sabem que as histórias são importantes em psicoterapia, dado que desde o começo da terapia os clientes contam histórias da sua vida aos terapeutas. E quando tal não acontece, como por exemplo quando os clientes se limitam a um discurso pobre, ou quando produzem um discurso descontextualizado dos acontecimentos (e.g., abstracto), os terapeutas esforçam-se por suscitar a memória autobiográfica e facilitar a elaboração de narrativas de vida.
Partindo destes pressupostos, uma questão pertinente, do ponto de vista teórico e clínico, é a de como mudam as auto-narrativas dos clientes em psicoterapia. Dito de outra forma, quando os clientes se encontram aprisionados numa narrativa de vida problemática (e.g., desvalorização pessoal), como ocorre a transformação desta forma disfuncional de significação? Gonçalves e colaboradores (e.g., Gonçalves et al., 2009; Gonçalves, Ribeiro, Mendes, Matos, & Santos, 2011), partindo de uma perspectiva narrativa da mudança em psicoterapia (e.g., White, 2007; White & Epston, 1990), sugerem que as auto-narrativas problemáticas são transformadas através da emergência e expansão de excepções. Dito de outro modo, o cliente envolve-se em novas formas de agir, pensar, sentir ou relacionar-se que progressivamente desafiam o padrão problemático prévio. Neste processo, à medida que o que é novo vai sendo assimilado, as excepções transformam-se no novo padrão (i.e., nova auto-narrativa).
Gonçalves e colaboradores (2009) designam estas excepções por momentos de inovação (MIs). A investigação empírica prévia (Gonçalves et al., 2011) permitiu discriminar cinco tipos de MIs: MIs de acção, de reflexão, de protesto, de reconceptualização e de desempenho da mudança (ver Tabela 1).
Os MIs de acção correspondem a comportamentos específicos que desafiam a narrativa problemática, isto é, a pessoa faz algo que não é congruente com a narrativa problemática. Os MIs de reflexão envolvem processos cognitivos que indicam a compreensão de algo novo que contraria a narrativa problemática. Os MIs de protesto correspondem a um desafio, oposição ou crítica ao problema, envolvendo algum tipo de confrontação ou recusa dos pressupostos da narrativa problemática. Os MIs de reconceptualização envolvem um processo meta-reflexivo, em que o cliente contrasta o passado (antes da mudança) com o presente e descreve o processo envolvido nessa transformação. Por fim, os MIs de desempenho da mudança ocorrem quando os clientes mencionam novos objectivos, experiências, projectos ou actividades em que aplicam novas competências adquiridas durante o processo de mudança (Gonçalves et al., 2011).
A partir da análise de diversas amostras de psicoterapia, com diferentes modelos terapêuticos (e.g., Gonçalves, Mendes, Ribeiro, Angus, & Greenberg, 2010; Matos, Santos, Gonçalves, & Martins, 2009; Mendes, Ribeiro, Angus, Greenberg, & Gonçalves, 2010), e tendo em conta o que emerge de comum na evolução dos MIs ao longo do processo terapêutico, foi construído um modelo heurístico de mudança em psicoterapia. De acordo com este modelo, nas primeiras sessões ocorrem, essencialmente, MIs de acção e de reflexão, sendo estes os primeiros indícios de que a mudança está a ocorrer. Subsequentemente, surgem MIs de protesto, embora em alguns casos este tipo de MIs possa surgir logo desde o começo da terapia. Estes MIs representam uma forte atitude de desafio da narrativa problemática, que pode emergir sob o formato de crítica ou expressão de assertividade e empowerment. Os MIs de reconceptualização emergem, principalmente, a partir do meio do tratamento e articulam o self passado (fortemente dominado pela narrativa problemática) com o self presente (que contém mudanças significativas), explicitando ainda como foi possível esta mudança. Enfatizámos anteriormente (e.g., Gonçalves & Ribeiro, 2012; Gonçalves et al., 2009) que estes MIs colocam o cliente numa posição de autoria da própria mudança. Depois da emergência dos primeiros MIs de reconceptualização, novos MIs de acção, reflexão e protesto ocorrem, validando deste modo as mudanças em curso. Os MIs de desempenho da mudança representam uma expansão para o futuro da mudança que está a ocorrer (ver Figura 1) (Gonçalves et al., 2009).
Um resultado claro da investigação empírica desenvolvida até ao momento é o de que a mera presença de MIs não é suficiente para que a mudança ocorra. Nos casos de insucesso, os MIs de acção, reflexão e protesto tendem a manter-se dominantes até ao término do processo terapêutico e os MIs de reconceptualização e desempenho da mudança têm uma presença muito reduzida, ou não existem de todo (Gonçalves et al., 2010; Matos et al., 2009; Mendes et al., 2010). Um outro estudo (Gonçalves, Ribeiro, Stiles, et al., 2011) sugere que, para além das diferenças já referidas, nos casos de insucesso os MIs são frequentemente alvo de processos de atenuação do seu potencial de mudança. Estes processos podem envolver a trivialização, negação ou minimização do MI por parte do cliente, verificando-se assim um abortamento do potencial inovador do MI, em que depois da emergência do MI, o cliente volta a enfatizar o poder da narrativa problemática na sua vida. Os clínicos conhecem bem este fenómeno, presente, por exemplo, nas respostas contra-fóbicas dos ansiosos ou nos desejos irrealistas de felicidade sem constrangimentos dos deprimidos (e.g., Watzlawick, Fisch, & Weakland, 1974). Sugerimos anteriormente (Gonçalves, Ribeiro, Stiles, et al., 2011) que nos casos de insucesso os MIs poderiam funcionar como uma espécie de válvula de escape para a opressão criada pela auto-narrativa problemática, criando uma expectativa de mudança no cliente. Contudo, logo que estes MIs emergem são atenuados, reduzindo-se assim a ameaça provocada pela novidade (Gonçalves & Ribeiro, 2012; Ribeiro & Gonçalves, 2010)1. Esta oscilação entre os MIs e a sua atenuação é obviamente um processo de ambivalência. Arkovitz e Engle (2007) descrevem um processo semelhante, designado por ambivalência resistente. Tal corresponde a comportamentos, normalmente acompanhados por afecto negativo, em que o cliente “(...) express some desire to change, believe that change will improve their lives, believe that effective strategies are available, have adequate information about executing those strategies, but nonetheless do not employ them sufficiently for change” (p. 172) (ver Figura 2).
Sendo o processo de ambivalência face à emergência de novidade narrativa um processo intrapessoal, quando ocorre no contexto terapêutico ele não está desligado da qualidade do processo interactivo que se desenvolve entre o terapeuta e o cliente. Assim, importa olhar para o processo de ambivalência no contexto intersubjectivo em que o mesmo ocorre – a interacção terapêutica. Ribeiro, Ribeiro, Gonçalves, Horvath e Stiles (2011) sugerem que as respostas de ambivalência por parte dos clientes podem indicar que a intervenção terapêutica excedeu a capacidade do cliente para integrar novidade, que apesar de começar por validá-la, acabou por se proteger, invalidando posteriormente a mesma intervenção.
O presente estudo procura responder a duas questões centrais: (1) de que modo responde o terapeuta à emergência de ambivalência e; (2) de que modo esta resposta dificulta ou, pelo contrário, facilita a resolução da ambivalência. Recorremos ao Sistema de Codificação de Colaboração Terapêutica (SCCT; Ribeiro, Ribeiro, Gonçalves, Horvath, & Stiles, in press) para analisar um caso de insucesso de terapia narrativa (White & Epston, 1990), seleccionado de uma amostra de um estudo anterior (Matos et al., 2009), que apresenta uma reduzida presença de MIs e um elevado número de MIs com atenuação. O SCCT é uma metodologia de análise qualitativa que permite micro-analisar a interacção terapêutica, momento-a-momento. Ribeiro e colaboradores conceptualizam a intervenção terapêutica como envolvendo duas componentes: compreensão da perspectiva adoptada pelo cliente num dado momento (podendo, pois, centrar-se no problema ou num MI) e desafio da mesma. Este sistema de codificação atende, ainda, à resposta do cliente, propondo três categorias: validação (quando o cliente aceita a intervenção do terapeuta), invalidação (quando o cliente rejeita a intervenção do terapeuta) e ambivalência (quando o cliente aceita a intervenção, rejeitando-a posteriormente na mesma fala, ou vice-versa). O SCCT permite, assim, perceber se na sequência de um MI seguido de atenuação, o terapeuta responde com compreensão ou desafio, aferindo o impacto destas intervenções, a partir da resposta do cliente (i.e., validação, invalidação ou ambivalência).
MÉTODO
Cliente
Maria (nome fictício) pertence a uma amostra de mulheres vítimas de violência conjugal (Matos et al., 2009; cf. Santos, Gonçalves, & Matos, 2010, para uma descrição detalhadas deste caso), tendo sido recomendada para terapia por uma instituição de vítimas de crime. Era uma operária reformada com 47 anos de idade que provinha de uma família de nível socioeconómico baixo. A mãe morreu quando tinha 6 anos e o pai maltratou-a fisicamente durante a infância. A cliente encontrava-se casada há 20 anos, tendo dois filhos rapazes, de 10 e de 16 anos. A cliente não mantinha uma boa relação com o filho mais velho, o que a levava a sentir-se “má mãe”. O marido de Maria, Luís, estava fisicamente debilitado, mas desde os primeiros anos do casamento tinha-a violentado sexual e psicologicamente. Este caso foi considerado um insucesso dado que o sofrimento psicológico, avaliado através do BSI (Brief Symptom Inventory, Derogatis, 1993; versão Portuguesa de Canavarro, 2007), se manteve elevado ao longo do tratamento. Para além disso, não houve mudanças significativas no padrão de vitimação.
Terapeuta e a terapia
A Maria foi atendida por uma terapeuta, Mestre em Psicologia, especialidade em Psicologia da Justiça, que se encontrava a frequentar o Doutoramento em Psicologia, especialidade em Psicologia da Justiça, e tinha cinco anos de experiência em psicoterapia com mulheres vítimas de violência. A Maria frequentou terapia individual durante 15 sessões (sendo as 4 primeiras semanais e as restantes quinzenais) e e uma de follow-up após 6 meses, disponibilizadas gratuitamente num serviço de atendimento universitário. O tipo de terapia utilizada foi desenvolvido a partir do modelo narrativo de White e Epston (1990), tendo as sessões psicoterapêuticas sido supervisionadas, para facilitar a adesão aos princípios da terapia narrativa (Matos et al., 2009). O referido modelo envolve (cf. Gonçalves, 2008; White, 2007) a externalização do problema (o que implica convidar o cliente a imaginar os problemas como sendo algo separado de si mesmo), a identificação e questionamento dos pressupostos culturais e sociais que suportam o abuso conjugal; a identificação e expansão de resultados únicos (equivalente ao que acima designamos por MIs), com o objectivo de criar novidade face ao problema previamente externalizado; e a consolidação da narrativa alternativa através da validação social, tornando a mudança mais visível e alicerçada.
Medidas
Sistema de Codificação dos Momentos de Inovação. O Sistema de Codificação dos Momentos de Inovação (SCMI; Gonçalves, Ribeiro, Mendes, et al., 2011) é um método qualitativo de análise de dados aplicável a estudos que pretendem compreender o processo de mudança, por recurso ao conceito de MI. Aplica-se ao discurso terapêutico gravado em vídeo/áudio ou através da transcrição das sessões (Gonçalves, Ribeiro, Mendes, et al., 2011).
O SCMI exige que a codificação seja realizada por dois juízes que tenham previamente sido treinados no sistema de codificação. No fim deste processo de treino, que dura várias semanas e implica a codificação de sessões terapêuticas, a fidelidade dos juízes é estabelecida através do Kappa de Cohen. Quando este é superior a .75, o juiz é considerado apto para codificar novos materiais de investigação. De seguida, os codificadores familiarizam-se com os dados que irão analisar, através da leitura, visualização/audição do material. Posteriormente, os juízes definem consensualmente as dimensões da narrativa problemática para cada caso específico (e.g., desvalorização pessoal, reduzida assertividade), o mais próximo possível do discurso do cliente. Esta definição da narrativa problemática vai permitir identificar posteriormente os MIs por contraste (e.g., momentos em que o cliente recusa a auto-desvalorização ou é assertivo).
Após esta análise, é possível calcular a saliência dos MIs da sessão, que corresponde à propor ção de palavras que cada MI ocupa em relação ao total de palavras da sessão. Em cada sessão, é calculada a saliência dos cinco tipos de MIs, assim como a saliência total dos MIs, através da soma das saliências dos cinco tipos de MI para aquela sessão. Finalmente, a saliência do caso em análise é obtida pela média das saliências de todas as sessões (Gonçalves, Ribeiro, Mendes, et al., 2011).
Uma vez que o material é codificado independentemente, permite o cálculo da fidelidade. A fidelidade da saliência global é calculada através da percentagem de acordo, enquanto a fidelidade em relação aos cinco tipos de MIs é calculada através do Kappa de Cohen. De notar que a codificação independente de cada sessão é seguida de uma reunião para avaliar a fidelidade do procedimento de codificação e as diferenças na codificação, que são resolvidas por consenso e sujeitas a um processo de auditoria (Ribeiro, Ribeiro, & Gonçalves, 2010).
Sistema de Codificação do Retorno ao Problema. O processo de atenuação dos MIs previamente descrito pode ser identificado empiricamente através da presença de Marcadores de Retorno ao Problema (MRP). Estes marcadores emergem logo a seguir a um MI e sugerem que o MI foi desvalorizado, trivializado ou negado pelo cliente. Se, por exemplo, o cliente refere “Eu sinto-me muito mais capaz de lidar com as dificuldades (MI), mas na verdade não acredito que consiga mudar”, o mas indica que o cliente de algum modo negou o MI previamente elaborado, corres pondendo a última parte da frase a um MRP. A codificação dos MRP exige a codificação prévia com o SCMI, de modo a que os MIs estejam claramente identificados. Assim, a tarefa do juiz é somente decidir se cada MI apresenta ou não um MRP.
Da mesma forma que o SCMI, a codificação dos MRP exige dois juízes treinados, que codificam os materiais de modo independente. O processo de treino é análogo ao atrás descrito para o SCMI. Do mesmo modo, a fidelidade (do juiz e de cada caso) é calculada através do Kappa de Cohen. Importa clarificar que a codificação independente de cada sessão é seguida de uma reunião para avaliar a fidelidade do procedimento de codificação e as diferenças na codificação, que são resolvidas por consenso e sujeitas a um processo de auditoria.
Sistema de Codificação da Colaboração Terapêutica. O Sistema de Codificação de Colabora ção Terapêutica (SCCT; Ribeiro, Ribeiro, & Gonçalves, 2010; Ribeiro, Ribeiro, et al., 2011) resulta da aplicação da noção de Zona de Desenvol vimento Proximal2 de Vygotsky (1978) à co-construção da mudança em psicoterapia (cf. Leiman & Stiles, 2001, para uma primeira aplicação deste conceito à psicoterapia). A zona de desenvol vimento proximal terapêutica (ZPD-T) é definida como o intervalo entre o nível de desenvolvi mento actual do cliente (i.e., a sua perspectiva habitual acerca da realidade) e o seu nível de desenvolvimento potencial, definido como a possibilidade de transformar esta perspectiva em colaboração com o terapeuta. Os autores concebem a mudança em psicoterapia como ocorrendo ao longo deste continuum desenvolvimental. À medida que as mudanças vão ocorrendo, a ZDP-T evolui, na medida em que o que antes se situava no nível potencial se situa agora no nível actual, i.e., as novidades outrora desafiadoras são acomodadas (Ribeiro, Ribeiro, et al., 2011; ver Figura 3).
O SCCT (Ribeiro, Ribeiro, & Gonçalves, 2010) é um método qualitativo de análise da colaboração terapêutica a partir de transcrições. A codificação de cada sessão com o SCCT deve ser realizada por dois juízes independentes, sem qualquer conhecimento sobre o resultado do caso (sucesso ou insucesso). A codificação independente de cada sessão é seguida de uma reunião para avaliar a fidelidade do procedimento de codificação (Kappa de Cohen) e as diferenças na codificação, que são resolvidas por consenso e sujeitas a um processo de auditoria (Ribeiro, Ribeiro, & Gonçalves, 2010).
A unidade de análise do SCCT corresponde a cada fala do cliente ou do terapeuta. O investigador deve avaliar a presença de um marcador de (a) compreensão (e.g., reflexão, confirmação) ou de (b) desafio (e.g., confrontação, interpretação) em cada fala do terapeuta (ver Tabela 2):
a) Na compreensão, o terapeuta procura perceber e explorar a perspectiva do cliente (pode ser centrada na narrativa problemática ou num MI).
b) No desafio, o terapeuta tenta reconstruir com o cliente formas alternativas e mais adaptativas de funcionamento, desafiando, para isso, a perspectiva habitual do cliente (Ribeiro, Ribeiro, & Gonçalves, 2010).
Para a resposta do cliente, o investigador tem que avaliar, em cada fala, marcadores de validação, de invalidação ou de ambivalência (ver Tabela 3):
a) A validação verifica-se quando o cliente aceita a intervenção do terapeuta, o que indica que ambos se encontram na ZDP-T. Se o cliente confirmar ou der informação, significa que está a responder com segurança. Se o cliente reformular a sua perspectiva ou a expandir, significa que está a responder com risco tolerável, uma vez que não só valida a intervenção do terapeuta, como acrescenta ou elabora um MI. A resposta de validação pode significar que o cliente e o terapeuta estão no mesmo nível da ZDP-T ou que um deles está num nível à frente do outro, mas ambos estão dentro da ZDP-T.
b) A invalidação verifica-se quando o cliente não concorda com a intervenção do terapeuta, transmitindo-o de forma mais ou menos directa. Isto é, pode fazê-lo dizendo “Não concordo” ou adoptando um discurso vago ou circunstancial, entre outras possibilidades. Caso o cliente tenha invalidado a intervenção do terapeuta, o codificador tem de analisar se o cliente respondeu com desinteresse ou risco intolerável. A resposta de desinteresse ocorre quando o terapeuta trabalha atrás da ZDP-T, uma vez que o cliente demonstra que a abordagem do terapeuta acerca de um assunto é redundante, podendo demonstrar-se aborrecido e desinteressado. A resposta de risco intolerável à intervenção terapêutica ocorre quando as significações partilhadas pelo terapeuta ultrapassam a ZDP-T e atingem uma zona onde o cliente terá tendência a resistir à novidade para manter a sua coerência interna (Ribeiro, Ribeiro, & Gonçalves, 2010) (ver Tabela 2).
c) A ambivalência verifica-se quando o cliente dá uma resposta que inclui simultaneamente marcadores de validação e invalidação. Este tipo de resposta sinaliza que a intervenção do terapeuta se encontra no limite da ZDP-T. Como se pode ver na Figura 3, este sistema pressupõe a existência de duas formas distintas de ambivalência, uma que corresponde ao processo de atenuação de MIs, atrás descrito, e uma outra em que o processo oposto ocorre, isto é, o cliente começa por se centrar no problema e depois acaba por elaborar um MI. Neste estudo, analisamos unicamente o primeiro tipo de ambivalência que indica que a intervenção do terapeuta está no limite da tolerância do cliente para integrar novidade.
A partir desta codificação, é possível dividir a sessão em diferentes tipos de interacção terapêutica: dentro da ZPD-T (em que o cliente valida a intervenção do terapeuta), fora da ZPD-T (em que o cliente invalida a intervenção do terapeuta) ou no limite da ZPD-T (em que o cliente demonstra ambivalência) (ver Anexo 1 para exemplos de intervenções do terapeuta e de respostas do cliente).
Procedimentos dos estudos anteriores
Codificação dos MIs com os SCMI. Este caso foi previamente codificado com o SCMI (ver Anexo 2) no estudo de Matos et al. (2009). Descrevemos aqui parte desse procedimento e remetemos o leitor para a descrição original do estudo para obtenção de mais detalhes. Dois codificadores independentes visualizaram as gravações do presente caso e definiram, consensual mente, as dimensões da narrativa problemática da Maria. Na Tabela 4 encontra-se a definição dos problemas e exemplos de MIs apresentados pela Maria ao longo das sessões.
Seguidamente, os MIs presentes nas transcrições das sessões da Maria (excepto as sessões 8 e 9 que, devido a problemas técnicos na gravação, não foram transcritas) foram identificados de forma independente e sequencial, por dois juízes treinados no SCMI. O juiz A não conhecia o resultado terapêutico e codificou todas as sessões. O juiz B apenas codificou 30% das sessões (sessões 1, 4, 8, 12,15e a de follow-up), para efeito de cálculo da fidelidade inter-juízes. A percen tagem de acordo na saliência total dos MIs foi de 80%. A fidelidade relativamente à distinção dos diferentes tipos de MIs, calculado pelo Kappa de Cohen foi elevada (.81), pelo que a análise foi baseada na codificação do juiz A.
Identificação dos MIs com MRP durante as sessões. Num segundo estudo (Gonçalves, Ribeiro, Stiles, et al., 2011), foram identificados os MRP na amostra de que faz parte este caso. Remetemos de novo o leitor para este estudo para obtenção de todos os detalhes deste procedimento e aqui limitamo-nos a sumariar os aspectos mais importantes. A codificação dos RPM foi, à semelhança da codificação dos MIs, realizada independente e sequencialmente por dois codificadores treinados, de acordo com o Manual do Sistema de Codificação de Marcadores de Retorno ao Problema (Gonçalves, Ribeiro, Santos, Gonçalves, & Conde, 2009). Neste caso, contudo, os dois juízes codificaram 100% da amostra (i.e., ambos analisaram os 114 MIs previamente identificados). Após a codificação de cada sessão, os juízes reuniram-se, no sentido de verificar as diferenças na sua codificação (que eram resolvidas por consenso) e de calcular o acordo inter-juízes. A fidelidade na identificação dos MRP, avaliado através do Kappa de Cohen, foi de .93. A identificação dos MRP, realizada no estudo prévio, permite no actual estudo identificar as fases de ambivalência.
Procedimentos do presente estudo
Selecção das fases de ambivalência. Consideramos que as fases de ambivalência se iniciam com a intervenção prévia da terapeuta à emergência de um MIs com MRP e terminam com uma mudança de tópico. Para tal, seguimos as linhas de orientação propostas por Angus, Levitt e Hardtke (1999), que definem que uma mudança de tópico ocorre quando o assunto das falas anteriores muda durante a sessão. Tal pode implicar uma mudança de domínio (introdução de um assunto com conteúdo diferente do anterior) ou uma mudança de faceta (elaboração mais detalhada de diferentes aspectos de uma área de conteúdo mais geral). Assim, dois juízes começaram por ler todas as interacções terapeuta-cliente. Em seguida, foi identificado em conjunto sequencial mente o tópico do episódio de MI com MRP que dá início à fase de ambivalência, onde era definido um tópico para o MI e respectivo retorno (e.g., desejo/incapacidade de sair de casa). Finalmente, foi acordado onde devia acabar a fase de ambivalência pela mudança de tópico.
Micro-análise das fases de ambivalência. Para micro-analisar as fases de ambivalência, recorremos ao SCCT (Ribeiro, Ribeiro, & Gonçalves, 2010), codificando as intervenções da terapeuta durante cada fase de ambivalência e as respostas da cliente. A codificação das fases de ambivalência também foi realizada sequencialmente e de forma independente por dois juízes previamente treinados no SCCT.
Após a codificação de cada sessão com o SCCT, os juízes reuniram-se para verificar diferenças na codificação. Quando havia desacordos, os episódios eram definidos por consenso. Cada versão do consenso foi revista por um auditor externo, também co-autor do SCCT, que se reuniu com o par de juízes para discutir e dar feedback acerca da mesma. Procedeu-se também à verificação da fidelidade do SCCT, através do cálculo do Kappa de Cohen para a intervenção da terapeuta e para a resposta da cliente. A média dos valores do Kappa de Cohen é de .95, quer para as intervenções da terapeuta, quer para as respostas da cliente.
Análise do padrão da interacção terapeuta-cliente ao longo das fases de ambivalência. No sentido de analisarmos o padrão de interacção terapeuta-cliente durante as sessões, recorremos ao State Space Grids (SSG; Lewis, Lamey, & Douglas 1999; Lewis, Zimmerman, Hollenstein, & Lamey, 2004), um método de análise de dados utilizado na psicologia do desenvolvimento e que já foi usado para análise processual de sessões terapêuticas (e.g., Ribeiro, Bento, Salgado, Stiles, & Gonçalves, 2011). O SSG permite estudar duas sequências temporais sincronizadas de variáveis categoriais ou ordinais (Lewis et al., 1999, 2004), necessárias para representar um sistema dinâmico com um número limitado de estados possíveis. O estado de um sistema num determinado momento é definido pela posição das duas variáveis. O número total de estados possíveis do sistema designa-se de state space, que é representado por uma matriz onde as categorias das variáveis são representadas no eixo x e no eixo y. Assim, cada célula na matriz corresponde a um estado possível do sistema. Para produzirmos SSGs para as fases de ambivalência encontradas em cada sessão, recorremos ao GridWare, um software desenvolvido por Lamey, Hollenstein, Lewis e Granic (2004), que permite representar as interacções dinâmicas entre cliente e terapeuta. Para cada grelha, correspondente a cada sessão de terapia, foram introduzidas três variáveis. Duas delas eram categoriais e correspondem à intervenção da terapeuta, colocada no eixo y, e à resposta da cliente, colocada no eixo x. Assim, um estado no presente estudo corresponde a um episódio definido pelo SCCT. A terceira variável é contínua, correspondendo ao número de palavras de cada interacção terapêutica no contexto das fases de ambivalência por nós codificada e é representada pelo tamanho dos pontos presentes em cada célula (ver Figura 4). O ponto sem preenchimento representa a primeira interacção, que no presente estudo se encontrava sempre numa célula em que a resposta da cliente tenha sido ambivalente. Esses pontos são ligados por linhas com setas, que representam a evolução do diálogo terapêutico (Lewis et al., 1999).
Apesar de ser possível verificar uma grande quantidade de estados, os sistemas ocupam normalmente apenas um número limitado, num dado intervalo temporal. Os sistemas tendem a persistir e estabilizar em certos estados, designados atractores e que no presente estudo corres pondem às interacções terapêuticas do SCCT mais estáveis e salientes em cada fase de ambiva lência (Lamey et al., 2004). Para identificarmos os atractores, recorremos ao método winnowing (Lewis et al., 1999), que define o atractor como uma célula ou grupo de células responsáveis por 80% da heterogeneidade da grelha. A heterogeneidade é calculada, em primeiro lugar, para cada célula visitada (i.e., na qual exista um ou mais eventos) com a fórmula [d2/(D/n)], em que d corresponde ao número de palavras da célula, D ao total de palavras na grelha, e n ao número de células visitadas na grelha. Seguidamente, calcula-se o valor total da grelha com a fórmula [nΣ(c)/n], em que c equivale ao valor de heterogeneidade de cada célula, e n ao número de células visitadas. Este processo é repetido, começando a análise sempre a retirar o valor da célula com menor duração de toda a grelha. Esta análise termina quando o valor da heterogeneidade é igual ou menor a 20%, o que significa que as células que persistiram correspondem aos atractores.
RESULTADOS
Resultados dos estudos anteriores
Saliência dos MIs nas sessões da Maria. Sumariamos, de seguida, os resultados da emergência dos MIs (cf. resultados completos em Matos, Santos, Gonçalves, & Martins, 2009). A análise da média da saliência dos MIs permitiu verificar que os MIs de Protesto (2,9%) e de Reflexão (1,7%) foram os que apresentaram maior saliência. Corresponderam também aos MIs presentes desde a primeira sessão, com uma tendência crescente ao longo da terapia. Os MIs de Reconceptualização (0,21%), Acção (0,14%) e Desempenho da Mudança (0,11%) foram os menos frequentes. O primeiro tipo ocorreu apenas na sessão 13 e na de follow-up, enquanto os últimos emergiram somente na de follow-up. Este padrão de emergência de MIs é típico do insucesso terapêutico, em que a saliência global é reduzida (nesta amostra o valor médio do insucesso é 5,38 (DP=1,79), o que contrasta com um valor médio de 10,76 (DP=4,84) no sucesso) e os MIs de reconceptualização e de desempenho da mudança estão quase ausentes.
MIs com Marcadores de Retorno ao Problema (RPM). De seguida, sumariamos os resultados do retorno ao problema (cf. Gonçalves, Ribeiro, Stiles, et al., 2011, para uma análise mais completa dos resultados). Dos 114 MIs identificados, 68 foram codificados com MRP, o que significa que em mais de metade dos MIs existe uma atenuação dos mesmos através do retorno ao problema. Esta quantidade de MIs com MRP durante as sessões é análoga ao verificado nos casos de insucesso previamente analisados (M=42.00; DP=21.76).
Resultados do presente estudo
Características gerais das fases de ambivalência. Nas sessões do presente caso, foram identificadas 25 fases de ambivalência, isto é, fases que começam numa intervenção da terapeuta à qual se segue um MI com retorno ao problema3. Em cada uma das fases de ambivalência, ocorreram em média 20 interacções entre cliente e terapeuta, sendo que no mínimo ocorreram duas interacções e no máximo 58 interacções. A saliência de cada uma dessas fases por sessão variou entre 0.7% e 90.5%, sendo a média em cada fase de ambivalência de 22.4% da sessão (DP=21.70) (Figura 5).
No que concerne o início das fases de ambivalência, verificámos que em 23 dos 25 episódios4 este ocorre no contexto de uma intervenção de desafio da terapeuta (os restantes dois ocorreram no seguimento de uma compreensão centrada na novidade). Deste modo, a terapeuta encontra-se nestes 25 episódios mais próximo do nível de desenvolvimento potencial, enquanto a cliente está mais próxima do actual.
Resposta da terapeuta à ambivalência. Para perceber como lida a terapeuta com a emergência de ambivalência e qual o impacto das suas intervenções, analisámos a interacção terapêutica subsequente à primeira interacção das fases de ambivalência (ver Figura 6). Verificou-se que em 19 das 25 fases de ambivalência, a intervenção terapêutica subsequente à primeira interacção foi o desafio. Em 14 das 19 intervenções de desafio, este foi seguido de uma resposta de risco intolerável, o que indica que a intervenção da terapeuta se situava fora ZDP-T. Em apenas 4 dos 25 episódios a terapeuta encontrava-se no mesmo nível da cliente na ZDP-T (ver Figura 7), com interacções de compreensão centrada no problema-segurança.
Interacções terapêuticas no final das fases de ambivalência. Verificámos que em 20 das 25 fases de ambivalência, na última interacção terapêutica a terapeuta encontrava-se à frente da cliente na ZDP-T (13 interacções de desafio-risco intolerável, 5 de desafio-ambivalência e 2 de desafiosegurança), e apenas em cinco destas ambas se encontravam dentro do mesmo nível na ZDP-T (ver Figura 8).
Atractores na interacção terapêutica. As interacções terapêuticas do SCCT identificadas nas fases de ambivalência que se afiguram como os mais centrais, estáveis e salientes correspondem, no presente estudo, aos atractores, calculados através do SSG (ver as grelhas do SSG com os atractores identificados em cada sessão no Anexo 2). Se considerarmos todos os atractores encontrados durante as fases de ambivalência presentes nas sessões da Maria, verificou-se que a maior concentração de atractores (69%) correspondia a interacções terapêuticas em que a terapeuta se situava à frente da cliente na ZDP-T (i.e., desafio-segurança, desafio-ambivalência e desafiorisco intolerável). Somente em 26% dos atractores a terapeuta e a cliente se encontravam no mesmo nível na ZDP-T (i.e., compreensão do problema-segurança, compreensão da novidadesegurança, desafio-risco tolerável). Finalmente, apenas em 5% dos atractores a terapeuta se encontrava atrás da cliente na ZDP-T (i.e., compreensão da novidade-risco tolerável, compreensão do problema-risco tolerável) (ver Tabela 5).
DISCUSSÃO
O caso da Maria caracteriza-se por uma baixa saliência de MIs e por uma elevada frequência de MRPs, o que vai de encontro aos resultados habitualmente obtidos com casos de insucesso (Gonçalves, Ribeiro, Stiles, et al., 2011). Isto significa que a Maria está fortemente ambivalente em relação à mudança: suscita novidades ao seu padrão de funcionamento habitual (MIs), mas regressa ao funcionamento habitual logo de seguida, provavelmente quando se apercebe das implicações das novidades na sua vida.
Um dos resultados mais interessantes deste caso é o facto das fases de ambivalência começarem com uma intervenção de desafio por parte da terapeuta. Os resultados sugerem ainda que a interacção terapêutica que mais frequentemente se segue à emergência de ambivalência é o desafio, com subsequente invalidação por parte da cliente. Temos, assim, em mais de metade dos episódios, uma transição de desafio-ambivalência para desafio-risco intolerável; o que sugere que a permanência do desafio aumenta a discrepância na ZPD-T entre a terapeuta (mais próximo do desenvolvimento potencial) e a cliente (mais próxima do desenvolvimento actual), com subsequente aumento de mal-estar na cliente. Finalmente, a postura de desafio da terapeuta manifesta-se mesmo na finalização das fases de ambivalência, emergindo mais uma vez desafio ao qual a cliente responde de novo com invalidação. Ou seja, aparentemente a díade encontra-se rigidificada em duas posições extremas, o desafio do lado da terapeuta e a ambivalência e a invalidação da parte da cliente. Este posicionamento de ambos é patente na análise dos atractores.
É claro que várias interpretações podem ser formuladas para estes resultados, dependendo do modo como é hipotetizada a causalidade. Podemos sugerir que é o facto de a terapeuta se colocar sistematicamente numa posição de desafio que gera o aumento da invalidação por parte da cliente e que se a terapeuta tivesse sido mais empática e compreensiva a ambivalência teria sido mais reduzida. Podemos assim especular sobre o que teria acontecido se a terapeuta tivesse respondido com compreensão. Ribeiro, Ribeiro, et al. (2011) sugerem que face à ambivalência a resposta correcta é o aumento da compreensão empática, mas até ao momento não há estudos empíricos que comprovem que esta estratégia é a mais produtiva. Esta possibilidade interpretativa vai de encontro ao conceito de responsividade, tal como é proposto por Stiles, Honos-Webb e Surko (1998). De acordo com Stiles, responsividade significa que o terapeuta ajusta as suas intervenções às necessidades evidentes do cliente. No presente caso, a resposta de invalidação da cliente poderia ser uma pista para a terapeuta de que a cliente necessita de maior compreensão, antes de produzir novidade. Também os modelos experienciais e centrados nas emoções (e.g., Elliott,Watson, Goldman, & Greenberg, 2004; Greenberg, Rice, & Elliot, 1993) reforçam esta necessidade de a empatia ser a condição central que organiza todo o processo terapêutico. Desta perspectiva podemos especular que a terapeuta no presente estudo sacrifica a empatia ao esforço de desafio, produzindo assim invalidação na cliente e dificultando a mudança.
Uma leitura alternativa a estas propostas é de natureza interaccional. Ou seja, podemos especular que a interacção terapêutica é fruto de um padrão interaccional em que terapeuta e cliente são co-responsáveis. Neste sentido, apesar de obviamente o terapeuta ter mais poder na relação terapêutica (Guilfoyle, 2003), não tem o poder de mudar o cliente contra a sua vontade. Como sugere Bohart (2000), o cliente é a dimensão mais vital da mudança em psicoterapia. O cliente é activo no processo de mudança e pode usar a terapia para mudar ou não. A cliente pode ter convidado a terapeuta a partir de pistas subtis a ser desafiadora, apesar de responder com ambivalência ou invalidação. Deste ponto de vista, o que externamente pode parecer como uma falha na empatia, internamente, do ponto de vista dos participantes, pode ser visto como uma reacção empática. Dito de outro modo, é possível que esta cliente só estivesse preparada para a ambivalência, e não para a resolver produzindo mudanças mais profundas na sua vida. Assim, face à não mudança da cliente a terapeuta procura suscitar novidade através do desafio e, deste ponto de vista, sugerimos que se a terapeuta tivesse suscitado mais compreensão a cliente poderia ter suscitado ainda menos MIs, considerando o processo terapêutico desinteressante. Importa ter em conta que esta cliente avaliou, no fim do tratamento, a terapia como positiva e não desistiu do processo terapêutico, apesar de este caso ter sido categorizado como um insucesso terapêutico. Com o presente plano de investigação não é possível inferir qual é a interpretação mais correta para estes dados. De qualquer modo, o nosso esforço é descritivo e parece evidente, a partir destes dados, que o desafio da terapeuta é sistematicamente invalidado pela cliente. Que impacto futuro este desafio poderia ter tido, se, o caso tivesse tido mais continuidade é difícil de saber, dado que temos somente 16 sessões e é possível que a Maria necessitasse de um processo terapêutico mais intensivo. Sugerimos em estudos anteriores (e.g., Gonçalves, Ribeiro, Stiles, et al., 2011), congruentemente com diversos modelos desenvolvi mentais da mudança em psicoterapia (Proachaska & DiClemente, 1982; Stiles et al., 1990), que uma das dimensões mais características do insucesso terapêutico é um menor grau de preparação para a mudança. Esta menor preparação para a mudança pode explicar, pelo menos parcialmente, a emergência sistemática da ambivalência.
O tipo de plano de investigação aqui apresentado não permite determinar qual destas hipóteses é a mais adequada, ou até se outras hipóteses deverão ser consideradas. Estudos futuros, com planos experimentais de estudo de caso (Kazdin, 1992), poderão analisar em tempo real as interacções terapêuticas e fazer variar a resposta do terapeuta à ambivalência, procurando assim determinar qual é, e em que circunstâncias, a resposta mais adequada do terapeuta aos episódios em que o cliente reage com ambivalência.
LIMITAÇÕES
Algumas limitações do presente estudo prendem-se com o facto de termos recorrido a um estudo de caso que, apesar dos benefícios anteriormente descritos para a investigação processual, faz com que as conclusões sejam limitadas ao presente caso e que a generalização se afigure restrita. O facto de nunca ter sido realizado outro estudo com a mesma metodologia impede também que possamos fazer comparações, pelo que não sabemos se os resultados encontrados neste estudo irão ser verificados noutros casos de insucesso de terapia narrativa ou de outras abordagens terapêuticas. Como não estudamos nenhum caso de sucesso, uma vez que estes têm habitualmente uma frequência reduzida de MIs com MRP, torna-se inviável realizar qualquer comparação entre o sucesso e o insucesso terapêutico e perceber como pode ser ultrapassada a ambivalência.
O facto de termos tido conhecimento prévio de que o caso era de insucesso pode ter influenciado a codificação, apesar de esse aspecto poder ser minorado pelo elevado acordo inter-juízes. Este conjunto de limitações leva-nos a sugerir que os resultados desta investigação devem ser interpretados com alguma precaução.
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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Miguel M. Gonçalves, Escola de Psicologia, Universidade do Minho, 4710 Braga. E-mail: mgoncalves@psi.uminho.pt
Este estudo teve o apoio da Fundação para a Ciência e para a Tecnologia, Portugal (FCT), com a bolsa PTDC/PSI/72846/2006 (Processos Narrativos em Psicoterapia, 2007-2011) e pela bolsa de doutoramento SFRH/BD/46189/2008.
NOTAS
1 Valsiner (2002) designa este processo, de um ponto de vista dialógico, por mutual in-feeding.
2 Segundo Vygotsky (1978), apesar de certas tarefas serem difíceis para uma criança realizar sozinha, podem ser aprendidas com a ajuda e assistência de adultos ou de crianças com mais competências. Neste sentido, ZDP define-se pela distância entre o nível de competência que uma criança atinge de forma independente e o nível de aptidão adicional que pode atingir quando auxiliada por uma pessoa mais capaz (Vygotsky, 1978).
3 Na sessão 15, não foi identificado nenhum MI com MRP, pelo que não será considerada na análise que se segue.
4 No sentido de tornar perceptível a análise processual dos episódios da fase de retorno ao problema com o SCCT, apresenta-se no Anexo 1 uma ilustração clínica dos episódios identificados na sessão 1.
Na seguinte ilustração clínica, o MI que origina a fase de ambivalência e à qual o exemplo pertence encontrase assinalado a itálico e o respectivo MRP a sublinhado. Em parênteses rectos, a negrito, encontram-se informações relevantes para uma melhor compreensão do exemplo dado.
Ilustração clínica (sessão 1)
(Terapeuta e cliente falam da existência de uma voz que leva a Maria a submeter-se ao marido, tendo a cliente referido que essa voz apenas aparece “Em parte”)
Desafio – Ambivalência
Terapeuta (T): E diz numa parte porquê? Há outra voz? [Terapeuta desafia perspectiva habitual da cliente, procurando evidência de novidade]
Cliente (C): Sim, há outra parte em que parece que eu consigo, [expande perspectiva da terapeuta] mas de repente (...) tudo cai. Como umas cartas ali todas certinhas (...). [persiste na perspectiva habitual]
Compreensão centrada no problema – Segurança
T: E essas duas vozes era aquilo que me falava no início, em que uma é 1 e a outra é 10? (...) Na percentagem? (...) Portanto, há uma voz que neste momento, ou no presente, é 10. (...) É aquela que tínhamos caracterizado como não se valorizar, certo? [Terapeuta compreende o problema, confirmando se a sua visão do mesmo está correcta]
C: Sim, sim. [Cliente confirma, sem acrescentar novidade]
Desafio – Ambivalência
T: E a outra voz que está a 1? (...) Eu sei que é baixinha, é pequenina, mas como são estes momentos? [Terapeuta procura evidência de novidade].
C: Nestes momentos parece que consigo fazer tudo e consigo “vou modificar, isto vai ser...” [Cliente expande desafio da terapeuta] mas pronto... aquilo é como acender um fósforo. Faz uma labareda muito bonita e forte mas apaga-se se a gente não lutar para o manter aceso. [persiste na narrativa dominante]
Desafio – Segurança
T: Olhe, vamos conhecer melhor a voz do 10. É nessa que nós vamos tentar mexer um bocadinho, para ver se reduz, não é? Porque é essa que causa mal estar, não? (...) É essa voz que nós temos que reduzir do 10 para trás, (...) para que estas dificuldades que eu apontei agora também acabem por se desvanecer. [Terapeuta desafia, propondo uma nova acção face ao problema]
C: Pois não... [Cliente confirma, mas sem expandir a intervenção da terapeuta]
Compreensão centrada no problema – Segurança
T: E tem a ver com isto, com estas dificuldades que eu acabei de descrever? [Terapeuta compreende o problema, confirmando se entendeu a cliente]
C: Sim, sim, sim. [Confirma, sem acrescentar nada]
T: Sentir o cérebro doente, para usar as suas palavras? [Idem]
C: Mesmo muito doente... [Idem]
Desafio – Segurança
T: Provavelmente é o reflexo desta voz 10... [Terapeuta desafia, convidando a cliente a adoptar uma nova perspectiva]
C: Sim, sim. [Cliente confirma]
T: É isso, não é? Acha que o seu cérebro estaria doente se aquele 1 da Maria, que “vou fazer, vou tentar, vou esforçar-me, vou mudar...”, acha que o seu cérebro estaria doente se essa ocupasse 10 e a outra 1? [Terapeuta convida a imaginar cenários hipotéticos]
C: Não, claro que não. [Cliente confirma]
Desafio – Ambivalência
T: Pois, é um bocado o resultado desta voz... [Terapeuta desafia, convidando a cliente a adoptar uma nova perspectiva]
C: Estaria menos doente se uma fosse 5 e a outra, outro 5 e contrabalançava. [Cliente expande perspectiva da terapeuta], (...) mas o outro é tão pequenino, tão pequenino que não contrabalança... E o meu marido tem feito com que eu me dê mal com toda a gente, inclusive com os poucos familiares que tenho. Que
a g o r a
é única e exclusivamente a minha irmã... ele quer destruir, ele destrói, (...) ele mina tudo. [Persiste na perspectiva habitual]
Desafio – Risco intolerável
T: É importante isso mas, repare... Por muito que o outro queira, se nós estivermos preparados, para o combater a este nível, neste sentido de não vou deixar que isto aconteça. (...) Tem que haver também da sua parte, barreiras defensivas... [Terapeuta desafia a cliente, confrontando]
C: Já não posso, que ele tem muito poder e para ele sair... não posso, não vale a pena... (...) Ele tem... embora agora haja um pouco quem diga – a doença, a maldade é tão grande... Mas não consigo mesmo... [Cliente responde com desesperança]
As seguintes grelhas do SSG correspondem à representação gráfica da evolução dos actratores (episódios do SCCT mais frequentes e estáveis) identificados durante as fases de ambivalência identificadas em cada sessão. O título indica o número da sessão e o(s) quadrado(s) vermelho(s) indica(m) o(s) atractor(es) identificado(s) na(s) fase(s) de ambivalência da sessão correspondente.