1. INTRODUÇÃO
O texto tem como objetivo analisar a relação entre o investigador e os sujeitos participantes, a partir de uma investigação biográfica, realizada em Portugal. Esta investigação biográfica, enquadrada no domínio científico das Ciências da Educação, visou compreender o processo de formação de adultos não escolarizados, a partir dos seus percursos de vida, dos seus saberes, das suas estratégias de aprendizagem, da sua relação com o saber, e da sua visão da escola e do mundo. Nesta investigação reconheceu-se que os adultos não escolarizados, apesar de não possuírem competências de leitura e escrita, são portadores de saberes adquiridos ao longo do percurso de vida, resultantes de um processo de formação experiencial (Cavaco, 2002). O processo de formação está ancorado na história de vida dos sujeitos, o que justificou o recurso à investigação biográfica para o estudo da formação experiencial de adultos não escolarizados.
A formação experiencial é um processo contínuo e global, realizado ao longo da vida, resultante da atribuição de sentido e da apropriação de experiências realizadas na interação com o meio, com os outros e consigo próprio. A formação experiencial opera uma “transformação silenciosa” (Jullien, 2009) no sujeito, resultante da realização de múltiplas aprendizagens ao longo da vida, no âmbito do saber, do saber-fazer e do saber-ser. Estas aprendizagens, de natureza heterogénea, podem ser pragmáticas, quando norteadas para a resolução de problemas e para o desempenho de papéis familiares, sociais e profissionais, ou existenciais, quando alteram a forma de pensar, de agir e de sentir do sujeito.
A investigação, realizada com o recurso à entrevista biográfica, contou com a participação de oito adultos não escolarizados. A análise apresentada adveio de uma reflexão suscitada no decurso da investigação quando a investigadora se deparou com dificuldades na realização das entrevistas biográficas. Pretendia-se que o momento de realização da entrevista biográfica fosse significativo, em simultâneo, para os sujeitos participantes e para o investigador. A análise apresentada neste texto elucida a dimensão formativa da investigação biográfica para a investigadora, pois os desafios com os quais foi sendo confrontada exigiram-lhe um processo de reflexão, pesquisa, atribuição de sentido e de apropriação da experiência vivenciada. A entrevista biográfica focada no processo formativo permitiu aos adultos pouco escolarizados a explicitação, a (re)elaboração e a socialização da experiência e dos saberes, o que tem um potencial formativo e de reconhecimento (Ricœur, 2004). Esta investigação alicerçou-se em princípios éticos, assentes no comprometimento da investigadora em estabelecer relações de respeito, de empatia, de valorização, de reconhecimento, de honestidade e de diálogo com os participantes (All European Academies [ALLEA], 2017; Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação [SPCE], 2014).
A investigação estruturou-se em torno de quatro pressupostos orientadores. O primeiro pressuposto baseou-se na ideia de que a experiência tem um potencial formativo (Dominicé, 2006, 2019; Freire, 1972; Illich, 1985; Pineau, 1988, 2008; Rogers, 1970), o que justifica a realização de aprendizagens e a aquisição de saberes, ao longo da vida, em todos os tempos e espaços. O segundo pressuposto filiou-se no reconhecimento da importância da formação experiencial, porquanto esta se apresenta decisiva na vida das pessoas, nomeadamente, quando não frequentaram a escola ou o fizeram durante um período temporal curto. O terceiro pressuposto, decorrente dos anteriores, consistiu na ideia de que os adultos não escolarizados têm saberes (Freire, 2000; Lahire, 1999), que adquiriram ao longo da sua vida, através da experiência e da formação experiencial, contrariando-se o discurso social e científico dominante sobre os analfabetos. O processo de formação experiencial, à semelhança da vida, “é um caminho de humanização, composto por progressivas metamorfoses” (Magalhães, 2018, p. 232). Por último, o quarto pressuposto estruturou-se em torno da ideia de que a forma mais adequada para estudar a formação experiencial, que ocorre de uma forma difusa e contínua, em todos os tempos e espaços de vida, é através da investigação biográfica. A investigação biográfica promove, de uma forma intencional, o processo de biografização (Alheit, 2011, 2018; Delory-Momberger, 2014, 2019), que consiste num conjunto de operações cognitivas, linguísticas e comportamentais, que permitem ao sujeito inscrever, continuamente, a “sua experiência e a sua ação em esquemas temporais orientados e finalizados” (Delory-Momberger, 2014, p. 76).
O texto centra-se na análise do uso da entrevista biográfica, mais concretamente na problematização da relação social que ocorre entre o investigador e o sujeito participante na investigação (Delory-Momberger, 2008, 2014; Ferrarotti, 1990, 2013), por se considerar as especificidades e os desafios que lhe estão associados. Na entrevista biográfica a interação social materializa-se no diálogo, na troca, na partilha e na comunicação entre o investigador e os sujeitos implicados na investigação. A fundamentação epistemológica da investigação biográfica leva-nos a considerar que o conhecimento resultante da investigação “tem por base a subjetividade de uma interação, conhecimento que será tanto mais profundo e objetivo quanto mais subjetivo e íntimo se conseguir” (Ferrarotti, 1990, p. 56). A investigação biográfica, enquadrada no paradigma científico emergente (Sousa Santos, 1988), reconhece a importância da relação que se estabelece entre o investigador e os sujeitos participantes na investigação, ao contrário das abordagens científicas tradicionais, que visavam limitar essa relação (Allen, 2017). Porém, a relação que se estabelece na entrevista biográfica é um desafio complexo, que importa analisar e problematizar neste texto. A investigadora deparou-se com um conjunto de dificuldades na realização das entrevistas biográficas, o que lhe exigiu uma reflexão e análise sobre a especificidade da relação investigador-sujeito participante. O texto incide na análise dessa experiência e do processo de formação que a mesma proporcionou à investigadora.
O texto estrutura-se em três pontos. No primeiro ponto, identificam-se, brevemente, os fundamentos epistemológicos da investigação biográfica. Apresentam-se também alguns elementos de enquadramento sobre a biografização. No segundo ponto, identificam-se e analisam-se os procedimentos da entrevista biográfica, assim como as dificuldades e desafios que se colocam ao investigador. No terceiro ponto, analisa-se a relação entre o sujeito participante e o investigador.
2. INVESTIGAÇÃO BIOGRÁFICA – FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS E BIOGRAFIZAÇÃO
A investigação biográfica, no âmbito das Ciências da Educação, permite o estudo de fenómenos educativos e sociais complexos, que durante muito tempo estiveram ausentes na investigação científica, como é o caso da formação experiencial. A investigação biográfica, ao enquadrar-se em fundamentos epistemológicos que atribuem à subjetividade e à singularidade valor de conhecimento, permitiu a emergência de objetos de estudo, até então, ausentes e invisibilizados no meio científico. Neste caso, a investigação biográfica, baseada no paradigma científico emergente (Sousa Santos, 1988), tem contribuído para a superação da lógica da monocultura do saber e do rigor científicos, propondo e permitindo “a identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que operam credivelmente em contextos e práticas declarados não-existentes” (Sousa Santos, 2002, p. 250). O paradigma científico emergente, no qual incluímos a investigação biográfica, assume a importância de uma conceção humanista, defende a fusão das ciências naturais e das ciências sociais e humanas, e “coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento” (Sousa Santos, 1988, p. 44). A investigação biográfica, ao incidir no estudo do percurso de vida e do processo de formação, a partir da (re)interpretação dada pelos sujeitos implicados, permite o acesso à compreensão da complexidade e diversidade dos fenómenos pessoais, sociais e educativos, na sua interdependência.
Na investigação biográfica o investigador estimula, intencionalmente, a atividade biográfica dos sujeitos participantes. A atividade biográfica é um elemento determinante na dimensão existencial e identitária de cada sujeito, pelo que ocorre de múltiplas formas e em diferentes registos de intensidade, ao longo da vida, inscrevendo-se num processo de reapropriação da existência e de “apropriação da formação” (Pineau, 2019). Quando socializada, a atividade biográfica, permite que “a narrativa inscreva o acontecimento vivido na história de vida do narrador” (Dominicé, 2019, p. 381). Além disso, também permite a socialização da experiência e dos saberes, contribuindo para o reconhecimento dos sujeitos implicados e para a transmissão do saber produzido historicamente pela Humanidade, ao longo dos tempos (Vásquez & Arena, 2017). A investigação realizada, por meio do estímulo da atividade biográfica e da socialização da experiência e dos saberes, permitiu aos adultos pouco escolarizados a (re)apropriação do percurso de vida, da experiência e dos saberes, ou seja, a sua (re)apropriação do processo de formação e do poder de formação. Deste modo, a investigação biográfica contribuiu para o reconhecimento dos adultos pouco escolarizados, enquanto sujeitos com capacidade de pensar, agir e aprender.
Paul Ricoeur (2005), ao abordar a fenomenologia do homem capaz, definiu como capacidades intrínsecas e estruturantes do ser humano a capacidade de dizer, a capacidade de agir e a capacidade de narrar. O autor defendeu que “a capacidade de narrar ocupa um lugar eminente entre as capacidades, na medida em que os acontecimentos apenas se tornam compreensíveis e acessíveis quando contados em histórias” (Ricoeur, 2005, p. 126). Estes elementos são também corroborados na investigação em neurociências, quando se afirma que “contar histórias foi a solução” (Damásio, 2010, p. 359) que o ser humano encontrou para tornar a sabedoria construída socialmente, ao longo do tempo, compreensível e transmissível, por isso, “a narração de histórias é algo que o cérebro faz de forma natural e implícita” (Damásio, 2010, p. 359).
A investigação biográfica desencadeia, intencionalmente, junto do sujeito participante um processo de (re)interpretação e de inteligibilidade do seu percurso de vida e do seu processo de formação, a partir da atividade do “eu-autobiográfico” (Damásio, 2010, p. 263). Deste modo, a construção biográfica ocorre através de um processo de biografização (Delory-Momberger, 2014), através do qual o sujeito participante na investigação efetua, com a orientação e o acompanhamento do investigador, um exercício de rememoração, de seleção, de reflexão e de explicitação, com vista a (re)configurar, no tempo e no espaço, as suas experiências de vida, atribuindo-lhes sentido, apropriando-se das mesmas e dando forma à sua história de vida. Através das entrevistas biográficas procurámos promover esse processo junto de adultos pouco escolarizados. A investigação biográfica beneficia desta apetência natural dos sujeitos para a biografização e estimula-a, dando-lhe uma maior intencionalidade e visibilidade, permitindo através da narrativa de si o acesso às dimensões antropológicas da experiência humana. Apesar da capacidade natural dos sujeitos para a biografização, este processo é complexo para os implicados, colocando o investigador perante dificuldades e desafios, como ocorreu na investigação realizada.
3. INVESTIGAÇÃO BIOGRÁFICA – PROCEDIMENTOS, DIFICULDADES E DESAFIOS
Nesta pesquisa com adultos não escolarizados procurámos assegurar coerência e adequação relativamente às orientações metodológicas e aos princípios epistemológicos da investigação biográfica. Nesse sentido, entendeu-se que para compreender o percurso de vida e o processo de formação seria fundamental reconhecer e valorizar a subjetividade e a especificidade dos sujeitos participantes. A entrevista biográfica afigurou-se adequada e pertinente, porque permitiu aceder à subjetividade e à especificidade dos sujeitos participantes, promovendo um processo de biografização, centrado nos seus percursos de vida e nos seus processos de formação. Por outro lado, ao longo da investigação assumimos a subjetividade decorrente da ação do investigador. Isto porque partimos do pressuposto que o processo de investigação, desde a construção do objeto de estudo à análise das entrevistas, é influenciado pela dimensão autobiográfica do investigador (Delory-Momberger, 2014; Ferrarotti, 2013; Sousa Santos, 1988). Ao longo da investigação considerámos que “todo o conhecimento é autoconhecimento” (Sousa Santos, 1988, p. 50), porque o investigador “é completamente implicado no campo do seu objeto” (Ferrarotti, 2013, p. 23). Deste modo, reconhecemos que as nossas trajetórias de vida, os nossos valores, as nossas crenças e quadros de referência “são a prova íntima do nosso conhecimento, sem o qual as nossas investigações […] constituiriam um emaranhado de diligências absurdas sem fio nem pavio” (Sousa Santos, 2000, p. 80).
Os procedimentos adotados na investigação filiaram-se nos princípios éticos definidos na Carta Ética da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE, 2014) e no Código Europeu de Conduta para a Integridade da Investigação (ALLEA, 2017), sendo de destacar a preocupação com a fidedignidade, a honestidade, o respeito e a responsabilização. De uma forma muito cuidada e atenta, procurámos assegurar a confidencialidade e o anonimato dos participantes, assim como o estabelecimento de relações significativas, que permitissem uma coconstrução, baseadas no respeito, no reconhecimento e na empatia. Estes princípios orientadores alicerçam-se também nos fundamentos epistemológicos da investigação biográfica, na medida em que se considera o conhecimento científico como o resultado de uma coconstrução entre o investigador e os sujeitos participantes. Ou seja, procurámos estabelecer relações de reciprocidade com os sujeitos participantes, porque partimos do princípio de que o conhecimento resulta de uma ecologia de saberes (Sousa Santos, 2007), pois é “um conhecimento a dois que se constrói na interação, numa intersubjectividade, [e numa] dialética relacional” (Ferrarotti, 2013, p. 23).
Na investigação realizaram-se entrevistas biográficas com oito adultos idosos não escolarizados, que não sabiam ler nem escrever, com idades compreendidas entre os 65 e os 86 anos, cinco mulheres e três homens. A investigadora conhecia os sujeitos participantes desde a sua infância e mantinha com estes uma relação de amizade, baseada no reconhecimento, na confiança e na estima. O principal critério na seleção dos sujeitos participantes foi o facto de serem adultos, idosos, não escolarizados, sem domínio das competências de leitura e escrita, e interessados em participar na investigação. Além disso, procurou-se assegurar a diversidade do ponto de vista do percurso profissional, nomeadamente, em termos de modalidades de trabalho (trabalhadores por conta de outrem e trabalhadores por conta própria), do tipo de atividade (agrícola, industrial, comercial, doméstica), e do contexto profissional (meio rural, meio urbano, em Portugal, no estrangeiro). Para concretizar o objetivo da investigação – compreender o processo de formação de adultos não escolarizados – pareceu-nos importante a realização de entrevistas biográficas a adultos analfabetos, com uma longa e diversificada experiência de vida.
A investigadora informou os sujeitos participantes sobre o objetivo, os instrumentos da investigação, os pressupostos orientadores e os princípios éticos, através do consentimento informado oral. O consentimento informado visou assegurar a compreensão da investigação e do processo, assim como a autonomia dos participantes para decidirem, em função dos seus interesses e direitos, a participação e a possibilidade de desistência a qualquer momento. Nesta investigação entendeu-se o consentimento informado como um processo comunicacional, contínuo, flexível e participado, de modo a salvaguardar o interesse e a vontade dos sujeitos participantes. Nesse sentido, como forma de assegurar o processo comunicacional na entrevista biográfica, procurámos uma adequação no uso da linguagem, por parte do investigador, ao universo vocabular dos entrevistados. Por exemplo, evitou-se o recurso a termos que não eram usados no quotidiano dos sujeitos participantes, como por exemplo “entrevista”, “investigação”, optando-se pelos termos “conversa” e “trabalho”. Esta preocupação com o uso da linguagem corrente visava evitar problemas de comunicação e promover, tanto quanto possível, a horizontalidade e a “dialética relacional” (Ferrarotti, 2013).
Na tentativa de salvaguardar a vontade, os interesses e as especificidades dos sujeitos da pesquisa considerámos importante que fossem estes a definir o momento e o local da realização da entrevista. Alguns disponibilizaram-se de imediato para a entrevista, outros preferiram adiar alguns meses a sua realização. As entrevistas foram realizadas em casa dos sujeitos participantes, no local que estes elegeram para o efeito – na cozinha, na sala ou à porta de casa. A entrevista biográfica incidiu na biografização, o que exigiu uma implicação dos adultos não escolarizados na rememoração, seleção, reflexão, (re)elaboração e explicitação da experiência de vida. Estes processos implicam complexas operações mentais, comunicacionais e comportamentais, o que requer uma atitude de colaboração e de respeito, por parte do investigador, alicerçada no “saber esperar” o momento em que o sujeito participante se disponibiliza para (re)elaborar e socializar a sua construção biográfica.
Procurámos que a entrevista decorresse como uma conversa informal, o mais próxima possível do diálogo, sem recurso a suportes escritos (guiões, cadernos, blocos de notas), na tentativa de a aproximar, o mais possível, de uma interação do quotidiano. Contudo, usou-se o gravador de voz, para facilitar a transcrição da narrativa, resultante da entrevista biográfica. Apesar de termos consciência que o gravador de voz é um instrumento que contribui para a formalização da situação de entrevista e que, nesse sentido, a afasta de uma relação do quotidiano, assumiu-se esta opção por considerarmos que os benefícios para a construção do conhecimento superavam as dificuldades e os desafios. Este elemento foi objeto de reflexão antes e durante a realização das entrevistas biográficas. As entrevistas realizadas em casa dos sujeitos participantes decorreram num registo de conversa e de diálogo; inclusive, por vezes, participaram também familiares e vizinhos que estavam e/ou chegaram ao local, o que permitiu aumentar a profundidade da reflexão e da interação.
No momento inicial, realizámos uma entrevista biográfica exploratória, com o objetivo de testar e validar os procedimentos metodológicos. A primeira entrevista foi muito importante para identificarmos e refletirmos sobre as dificuldades e os desafios inerentes à investigação biográfica. A investigadora, depois de informar sobre os objetivos e os princípios éticos da investigação, colocou à entrevistada a seguinte questão: “Gostaria que falasse sobre a sua vida: o que aconteceu desde pequena até agora?”. O caráter abrangente da questão visava garantir abertura e espaço de flexibilidade para escutar e “seguir os sujeitos participantes” (Delory-Momberger, 2014) no seu processo de biografização. A investigadora possuía experiência na realização de entrevistas semidiretivas e conhecia bem a entrevistada, sabendo de antemão que se tratava de uma pessoa muito extrovertida e faladora. Todavia, a entrevistada respondeu rápida e sinteticamente, manifestando interesse em terminar o mais brevemente possível. Quando terminámos a entrevista, disse: “Desculpa! Eu não podia falar mais, porque depois as pessoas de Lisboa têm mais razões para gozar com os alentejanos” (Maria). Maria considerou que quanto maior fosse a sua narrativa, de mais elementos dispunham as outras pessoas para criticar a vida e o pensamento dos que vivem no Alentejo, nomeadamente, dos analfabetos. Por isso, optou por minimizar e silenciar o seu processo de biografização, remetendo-se ao silêncio e à invisibilidade. A atitude e a preocupação manifestada pela entrevistada suscitaram uma reflexão sobre a especificidade e os desafios da investigação biográfica, em geral, e, de um modo particular, da entrevista biográfica com adultos pouco escolarizados. Estes elementos reforçaram a ideia do caráter comunicacional da entrevista biográfica. Contudo, verificou-se que, apesar da tentativa de aproximar a situação de uma relação quotidiana, os sujeitos participantes sentiam uma diferença substancial, o que os inibia de falar.
Após uma reflexão, a investigadora percebeu que a situação relatada, anteriormente, poderia ter resultado de vários fatores: i) a relação estabelecida na entrevista biográfica difere das relações interpessoais que caracterizam o quotidiano dos sujeitos entrevistados; ii) a questão inicial era demasiado abrangente, dificultando a identificação das expectativas do investigador, por parte do sujeito participante; iii) a questão inicial poderia ter sido percecionada como demasiado intrusiva, com o risco de exposição da intimidade do sujeito participante; iv) a socialização do percurso de vida e dos saberes interfere na dimensão identitária e existencial, o que coloca a necessidades de cuidados acrescidos na informação a partilhar com os participantes e na realização da entrevista; v) as tensões e relações de poder entre a cultura letrada – hegemónica e difundida através da escrita – e a cultura dos analfabetos, resultante da tradição oral, com frequência menorizada, silenciada e invisibilizada; vi) a situação de entrevista era desconhecida para os sujeitos participantes, sendo também inédita na sua vida a socialização da sua experiência e do seu saber, de uma forma intencional; vii) a entrevista focava-se em dimensões não conscientes e pouco refletidas na sua vida – os saberes e as estratégias de aquisição – tornando-se difícil o acesso a estes elementos, e a sua enunciação; viii) os entrevistados não têm o hábito de falar de si, apresentaram uma grande capacidade de síntese e desvalorizavam a importância do seu percurso de vida e dos seus saberes.
Para contornarmos algumas destas dificuldades e desafios, optámos por focar a entrevista biográfica no percurso profissional dos sujeitos participantes, na medida em que se tratava de algo mais circunscrito e delimitado, sendo também uma dimensão socializada coletivamente (Bertaux, 1997). Por outro lado, assumimos que a entrevista seria uma conversa entre a investigadora e os sujeitos entrevistados, registando-se com frequência a sua intervenção, através do relançamento das questões. Optámos por formular questões do tipo descritivo, apoiando o sujeito participante na explicitação, passo a passo, da sequência da ação. As dificuldades sentidas permitiram à investigadora a compreensão da especificidade da entrevista biográfica e da condição dos adultos não escolarizados. Esta experiência deu visibilidade à relação social estabelecida durante a entrevista, caracterizada por relações de poder assimétricas entre o investigador e os sujeitos participantes. A assimetria nas relações de poder durante a entrevista biográfica com adultos não escolarizados, analfabetos, revelou a hegemonia da cultura letrada e impossibilitou uma relação horizontal, de acordo com a intenção inicial da investigadora. Atendendo às dificuldades e desafios registados na realização da entrevista biográfica, interessa-nos analisar, de uma forma particular, a relação entre o sujeito participante e o investigador.
4. ENTREVISTA BIOGRÁFICA – A RELAÇÃO ENTRE SUJEITO PARTICIPANTE E INVESTIGADOR
Desde o início da investigação, assumimos que a entrevista biográfica seria um tempo/espaço de partilha e diálogo entre o sujeito participante e a investigadora. Pretendíamos “estabelecer uma trama de relações” (Ferrarotti, 2013, p. 21) significativas com os sujeitos participantes, de modo a assegurar “uma perspectiva de co-investigação, [o] que implica uma posição paritária” (Ferrarotti, 2013, p.22). Deste modo, socorremo-nos do facto de conhecer e de ter uma relação de proximidade com os entrevistados para conduzir as entrevistas num registo de informalidade, que permitisse a interação, a reciprocidade e a coconstrução. Devido aos pressupostos orientadores da investigação considerámos, desde o início, essencial seguir a epistemologia da escuta e do conhecimento do outro, para assegurarmos a coconstrução do conhecimento, através da ecologia de saberes (Sousa Santos, 2007). Todavia, a entrevista biográfica com os adultos pouco escolarizados afigurou-se uma relação interpessoal complexa, desconhecida para os sujeitos participantes e para o investigador. Esta situação inesperada para a investigadora exigiu uma reflexão sobre a especificidade da entrevista biográfica, nomeadamente, quando realizada a adultos analfabetos.
As dificuldades e os desafios com os quais fomos confrontados na investigação permitiram a realização de um conjunto de aprendizagens, que identificaremos de seguida. A complexidade da relação interpessoal registada na entrevista biográfica exige um conhecimento prévio e uma relação de confiança, de respeito e de reconhecimento entre o investigador e os sujeitos participantes. Todavia, essas condições não garantem, necessariamente, uma relação semelhante às vividas nas relações interpessoais no quotidiano. A investigadora pretendia que a entrevista biográfica ocorresse num registo natural, semelhante às conversas quotidianas com os sujeitos participantes, porém não foi possível, o que lhe exigiu uma reflexão sobre a situação de entrevista. A entrevista biográfica baseia-se na construção de uma relação específica, por isso, diferente das relações de vizinhança e de amizade, que ocorrem na vida quotidiana. As conversas, no quotidiano, surgem de uma forma natural e desencadeada por ambos os intervenientes, os assuntos abordados resultam, com frequência, da imprevisibilidade gerada na própria interação, sem que se registe uma intencionalidade prévia.
Na vida quotidiana, o processo de biografização dá-se de uma forma natural e espontânea, porém, são os sujeitos implicados que decidem a forma e o conteúdo da narrativa a socializar, assim como o momento apropriado. Estas situações, devidamente contextualizadas no tempo e no espaço, remetem os sujeitos para a socialização de pequenas histórias e acontecimentos, ou seja, para a socialização de fragmentos do seu percurso biográfico. Todavia, a situação de entrevista biográfica difere do quotidiano dos sujeitos, por se tratar de um momento intencionalmente orientado para o processo de biografização, associado a um objeto de estudo específico, definido pelo investigador. A entrevista biográfica coloca o investigador numa posição de autoridade face ao sujeito participante, porquanto é o investigador que decide o que fazer, como fazer, o que perguntar, como perguntar, o que interpretar e como interpretar, onde e como divulgar o conhecimento produzido. A assimetria de poder está presente e marca essa relação, o que é sentido, inevitavelmente, pelos sujeitos participantes, mesmo quando o investigador se esforça para a minimizar ou anular. Na investigação realizada os sujeitos participantes sentiram essa assimetria de poder e ajustaram o seu comportamento, adotando uma postura diferente do habitual, o que dificultou a realização da entrevista biográfica.
A entrevista biográfica permite que o sujeito participante na pesquisa interprete e socialize com o investigador as representações que tem do seu percurso de vida, através de formas narrativas, constituindo assim a sua história de vida. Neste caso, “a narração é o lugar no qual o indivíduo toma forma, no qual ele elabora e experimenta a história de sua vida” (Delory-Momberger, 2008, p. 56), (re)construindo-se biograficamente. Este processo pode ser significativo para o sujeito participante, mas é muito complexo e exigente, por vários motivos. A complexidade e exigência do processo de biografização também estiveram na origem das dificuldades sentidas pelos adultos não escolarizados, durante a entrevista biográfica. A biografização tem inerente um conjunto de operações mentais, verbais e comportamentais. As operações de rememoração, seleção, reflexão e explicitação revelam um intenso trabalho biográfico que o sujeito opera sobre o vivido, para promover a continuidade, coerência e sentido aos múltiplos acontecimentos da sua vida, marcados “pela dispersão, pela fragmentação” (Delory-Momberger, 2008, p. 140), pela aleatoriedade e pela imprevisibilidade.
A biografização presente na entrevista biográfica é uma (re)interpretação do vivido, socializada com o investigador, que conduz o sujeito participante a produzir conhecimento sobre si, a sua vida e o seu processo de formação. Este processo complexo exige motivação e mobilização do sujeito para refletir e (re)elaborar a sua experiência, através de uma narrativa compreensível para o investigador. O ritmo e o tempo necessários para a realização da biografização diferem entre os sujeitos participantes; por outro lado, os recursos linguísticos também podem constituir uma dificuldade, uma vez que a experiência é do domínio do vivido, do incorporado e do situado, tornando-se difícil explicitar e socializar os saberes decorrentes da ação. Para além dos desafios anteriormente indicados, na investigação realizada com os adultos não escolarizados acresceu ainda o problema da imagem social negativa do analfabeto, percecionado como alguém em situação de défice relativamente aos saberes. Este estereótipo social do analfabeto é gerador de discriminações que são incorporadas pelos próprios sujeitos analfabetos, que para se protegerem silenciam e invisibilizam a sua condição de analfabeto, interiorizando uma imagem negativa sobre o valor dos seus saberes. As falas dos entrevistados revelam essa situação: “Sou burra, pois não sei ler” (Ana); “[Se soubesse ler] era uma das melhores, assim não presto… Não tenho valor nenhum” (Maria). Os sujeitos entrevistados declararam com alguma frequência: “Não tenho nada para dizer!”. Durante a entrevista, e mesmo após o fim da investigação, afirmavam: “Serviu para alguma coisa a nossa conversa?”; “Isto serviu?”. A biografização é dificultada nas situações em que o sujeito participante sente que os seus saberes, no geral, não são reconhecidos, pelos outros, como tendo valor, o que aconteceu nesta investigação.
A biografização depende e, ao mesmo tempo, interfere no processo dialético de autorreconhecimento/heterorreconhecimento. Ou seja, a biografização ocorre em tempos e espaços em que o sujeito percebe que os seus saberes são reconhecidos pelos outros. Neste caso, desencadeia um processo de socialização dos saberes porque antecipa o heterorreconhecimento, por parte dos seus interlocutores. Por outro lado, os interlocutores, ao valorizarem os saberes partilhados, manifestam o heterorreconhecimento, que, por sua vez, reforça o autorreconhecimento do sujeito, que partilhou a sua experiência e o seu saber. Esta dinâmica é dificultada no caso dos adultos não escolarizados, pois o discurso social e científico, com frequência focado numa ideia de défice, leva-os a optar pelo silenciamento da sua experiência e dos seus saberes. Ou seja, como não ocorre o heterorreconhecimento compromete-se o autorreconhecimento. Nesta investigação a realização da entrevista biográfica foi difícil porque os adultos não escolarizados demonstraram relutância na socialização do seu percurso de vida e dos seus saberes, porquanto o autorreconhecimento estava fragilizado. A fragilidade do autorreconhecimento dificultou o processo de biografização e o heterorreconhecimento. A investigadora contornou este obstáculo porque conhecia o percurso de vida dos entrevistados; deste modo, promoveu o heterorreconhecimento e incentivou o autorreconhecimento.
A relação de apoio, de acompanhamento, de respeito, de empatia e, acima de tudo, de reconhecimento é essencial, para que a entrevista biográfica possa concretizar-se num momento de coconstrução do processo de biografização do sujeito implicado. A biografização resulta num conhecimento coproduzido entre o sujeito participante e o investigador, efetivado na narrativa biográfica, que, por sua vez, é interpretada pelo investigador, com o objetivo de produzir conhecimento científico. É nesse sentido que os sujeitos participam tanto na investigação quanto o investigador, sendo adequado falar-se em “coconstrução ou em construção partilhada” (Ferrarotti, 2013, p. 23). Neste caso, o investigador reconhece o seu desconhecimento e ignorância sobre os fenómenos em estudo, e reconhece também que a construção do saber, relativamente ao objeto de estudo, resulta da relação que estabelece com os sujeitos participantes, nomeadamente, da socialização da sua experiência e dos seus saberes, através das “conversas e das narrativas” (Ferrarotti, 2013, p. 23). Deste modo, o tipo de relação estabelecida com os sujeitos participantes interfere sobremaneira nos resultados da investigação, sendo, por isso, um elemento estruturante no processo. Como refere Franco Ferrarotti (2013), “o conhecimento não tem o outro por objeto, mas a interação recíproca entre investigador e o investigado” (p. 23), sendo que o conhecimento se constrói nessa interação intersubjetiva e nessa dialética relacional.
A entrevista biográfica tem lugar a partir de um relacionamento interpessoal entre o investigador e o sujeito participante na investigação, permeado pelas atitudes e expectativas de ambas as partes, mas também pelas formas de troca e de ação recíproca que têm lugar nesse tempo e espaço. Na entrevista biográfica o sujeito participante e o investigador estão “implicados num processo de investigação que supõe a sua colaboração” (Delory-Momberger, 2019, p. 342), isto porque a investigação depende da mobilização e de uma relação de reciprocidade entre ambos. O investigador não consegue aceder à construção biográfica, nomeadamente, à representação e (re)interpretação do sujeito sobre o vivido, sem o apoio e mobilização do ator-sujeito-investigador do seu percurso. Por outro lado, o investigador, ao promover intencionalmente a biografização, permite a socialização da experiência e dos saberes do sujeito participante, o que pode ter efeitos positivos no seu reconhecimento, com impacto na dimensão identitária e existencial. Esta dinâmica de implicação e de interdependência recíproca experienciada na entrevista biográfica com os adultos não escolarizados foi uma experiência significativa para a investigadora e para os sujeitos participantes.
Nesta investigação a relação investigador-sujeito participante visava promover a biografização, com efeito positivo no reconhecimento do processo de formação experiencial dos adultos pouco escolarizados. Todavia, ao longo da investigação percebemos que este processo também envolve alguns riscos. Ana, uma das mulheres entrevistadas, explicitou de uma forma clara a complexidade inerente à biografização, quando impôs o fim da entrevista, referindo: “Agora paramos por aqui! Sabes porque quis parar? Não te podia dizer mais nada, porque depois escreves isso e todos ficam a saber, e eu deixo de ter valor”. A fala de Ana remete-nos para a complexidade inerente à investigação biográfica, nomeadamente, o sentimento e o risco de espoliar os sujeitos do seu percurso de vida e dos seus saberes, pervertendo o processo de investigação. A formação é uma dimensão marcante na identidade e na existência humana, pelo que a socialização de saberes resultantes da experiência pode ter o efeito positivo de reconhecimento ou, pelo contrário, gerar sentimentos negativos, na sequência de uma espoliação ou apropriação indevida, sentida pelo sujeito, do que lhe pertencia e era tido como específico da sua pessoa. Estas dimensões têm de ser equacionadas e objeto de atenção ao longo do processo, para se assegurar que a investigação é benéfica e positiva para todos os implicados. Retomando o caso em análise, a Ana, alguns meses mais tarde, num encontro ocasional com a investigadora, disse-lhe: “Podes vir ter comigo outra vez, já tenho mais coisas para te contar”. A Ana sentia-se de novo preparada e pretendia socializar mais elementos do seu percurso de vida e dos seus saberes. Esta sua fala revela a importância de o investigador ouvir e respeitar os interesses e a vontade do sujeito participante, para assegurar uma menor assimetria de poder e uma coconstrução responsável e eticamente exemplar, o que constituem desafios da investigação biográfica, carecendo de uma vigilância reflexiva e crítica. A investigadora deparou-se com estes desafios ao longo da investigação.
O sujeito participante socializa a sua biografia através de uma narrativa, sendo que o conteúdo e a forma de comunicação “variam consoante o interlocutor e dependem do tipo de interação que se estabelece entre ambos” (Ferrarotti, 1990, p. 52). Na entrevista biográfica “a maneira como é recebido o discurso do outro não pode ser abstraída do horizonte de expectativas, de projetos e de interesses de quem o recebe” (Delory-Momberger, 2008, p.60). Neste caso, a investigadora, além de manter relações de vizinhança e de amizade com os sujeitos participantes, reconhecia a importância destes na família e na comunidade, reconhecia também a diversidade e a riqueza dos saberes que possuíam, que desde a infância despertaram a sua curiosidade e interesse. Contudo, no decorrer da entrevista percebeu que os sujeitos participantes a entendiam como um elemento da cultura escolar, o que dificultou a realização da entrevista biográfica e lhe exigiu um maior investimento na superação dos desafios. A entrevista biográfica opera-se no quadro de uma ação social, no qual existe uma relação recíproca entre sujeito participante e investigador, tratando-se de um par, no qual os dois parceiros assumem “papéis alternados” (Ferrarotti, 2013, p. 55). É nesse sentido que ocorre um “duplo espaço heurístico que interfere um no outro, o do investigado em posição de investigador de si próprio, e o do investigador cujo objeto é criar as condições e compreender o trabalho do investigado sobre si próprio” (Delory-Momberger, 2014, p. 79). Os elementos anteriormente identificados reforçam a importância da relação entre o investigador e o sujeito participante na investigação biográfica. Apesar das dificuldades relatadas, a investigadora conseguiu contornar os desafios e concretizar o objetivo da investigação, o que ficou a dever-se, essencialmente, à relação de confiança, de empatia, de reconhecimento e de diálogo entre si e os sujeitos participantes.
5. CONCLUSÃO
A análise apresentada resultou de uma reflexão da investigadora sobre os procedimentos metodológicos da entrevista biográfica, no decurso de uma investigação biográfica sobre o processo de formação de adultos não escolarizados. Esta investigação permitiu confirmar que a entrevista biográfica é uma técnica adequada no estudo do processo de formação experiencial, porque permite aceder à interpretação dos sujeitos sobre as suas experiências de vida, os seus saberes e modos de aprendizagem. Porém, a realização da entrevista biográfica é complexa (Ferrarotti, 2013), porquanto requer um processo de biografização pelos sujeitos participantes. Na investigação realizada percebeu-se que, embora a biografização seja um elemento natural na vida social, ao ser promovida pelo investigador apresenta características específicas, diferenciando-se das situações quotidianas, o que está na base de um conjunto de dificuldades e de desafios na realização da entrevista biográfica. Deste modo, a análise exposta pode ser um contributo para a compreensão da complexidade e da especificidade da investigação biográfica, nomeadamente, a relação entre o investigador e o sujeito participante na entrevista biográfica, sobretudo quando os sujeitos, por diversos motivos, revelam dificuldades de autorreconhecimento.
A relação entre o investigador e o sujeito participante condiciona a realização da entrevista biográfica de uma forma decisiva, nomeadamente, o processo de biografização e a coconstrução do conhecimento. Conforme se verificou na investigação realizada, embora o investigador adote estratégias para assegurar a empatia, o respeito, a colaboração, a implicação e o reconhecimento, isso nem sempre é suficiente para garantir uma relação facilitadora do processo de biografização. Na entrevista biográfica o investigador depara-se com a especificidade e a complexidade do ser humano, o que reforça a importância de refletir sobre a adequação da sua ação, designadamente, sobre a relação que estabelece com o sujeito participante. A entrevista biográfica origina uma relação social inédita entre duas pessoas, diferente das relações da vida quotidiana. Estes elementos revelam a importância de uma vigilância crítica relativamente à assimetria de poder e às dimensões éticas relevantes a salvaguardar, porquanto se trata de um processo de biografização, centrado na vida do sujeito participante, mas despoletado pelo investigador, de acordo com o seu projeto de investigação.
Com esta investigação percebeu-se a singularidade da entrevista biográfica, o que exige ao investigador um cuidado acrescido com a adaptação às especificidades de cada situação e coloca em evidência a importância de uma formação sólida no domínio metodológico. A supervisão e o acompanhamento por parte de investigadores com experiência na realização de entrevistas biográficas podem ser um relevante contributo para o investigador sem experiência neste domínio. Em síntese, esta investigação corroborou que um dos principais desafios da investigação biográfica é a promoção da vigilância crítica necessária para se assegurar a coerência entre os fundamentos epistemológicos e os procedimentos metodológicos (Delory-Momberger, 2014; Ferrarotti, 2013) seguidos pelo investigador na entrevista biográfica.