1. INTRODUÇÃO
A compreensão que eu desenvolvo da narrativa do outro se inscreve em um jogo de inter-relações que faz dessa narrativa não um objeto unicamente e identicamente descodificável, mas um ‘em-jogo’ entre o outro e eu e entre mim e eu mesmo. Somente posso reconstruir o mundo da experiência que eu recebo, relacionando-o com a minha própria biografia da experiência e me apropriando dessa narrativa, compreendendo-a nas relações de ressonância e de inteligibilidade com minhas próprias experiências. (Delory-Momberger, 2014, p. 155)3
Os pressupostos teóricos, metodológicos e os procedimentos necessários para a obtenção de bons resultados são geralmente dimensões focalizadas em artigos sobre a pesquisa em educação. Certamente esses aspectos merecem atenção, em especial quando se trata das especificidades da pesquisa biográfica, que se funda numa perspectiva antropológica, na busca de apreender como os indivíduos se constituem como sujeitos singulares/sociais.
Esse artigo tem como objetivo focalizar um aspecto menos abordado nas pesquisas em educação. Propõe uma reflexão sobre processos de heterobiografização, como dimensão importante da pesquisa biográfica e como fonte de aprendizagens para o pesquisador. A pesquisa biográfica parte do pressuposto de que as experiências são fontes de aprendizagens. Ela estuda como os indivíduos constroem sentidos aos acontecimentos vividos no espaço social, mediante a escuta e interpretação de suas narrativas, tendo em vista a produção de conhecimentos4. Tais narrativas não são apenas sistemas simbólicos nos quais cada um exprime sua existência. Elas são o lugar no qual os indivíduos tomam forma, onde eles experimentam e elaboram sua história de vida, o que é denominado por Delory-Momberger (2014) como processo de biografização (p. 166). A heterobiografização se refere “ao trabalho de escuta ou de leitura de textos biográficos e dos efeitos de compreensão e de formação de si” (Delory-Momberger, 2019, p. 89) que é produzido. Em outras palavras, é “o processo de apropriação, de tornar próprias as experiências dos outros, e de poder ter acesso às situações e experiências novas” (Delory-Momberger, 2014, p. 156). A realização de entrevista de pesquisa biográfica é um momento privilegiado de heterobiografização.
Para analisar os processos de heterobiografização na pesquisa biográfica e suas implicações para as aprendizagens do/a pesquisador/a recorro às interpretações de uma investigação realizada em 2017, com estudantes de uma universidade parisiense, como parte dos estudos pós-doutorais5. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que se fundamenta numa análise sócio-histórica-antropológica da relação dos sujeitos com o mundo (Ferrarotti, 2014), com a perspectiva da hermenêutica (Delory-Momberger, 2004, 2014; Ricœur, 1983) mediante entrevistas biográficas. Tal pesquisa tem como objetivo identificar os sentidos que jovens estudantes de uma universidade parisiense atribuem às “perspectivas de futuro” e aos “projetos de si”, tendo como referência seus percursos de formação. Participaram das entrevistas dois homens, um de Master I6 e outro de Master II, e três mulheres, uma de Master II, outra do Master I e uma doutoranda7. Nesse artigo recorro aos aspectos dos achados obtidos em quatro entrevistas (de dois entrevistados, um do Master I e outro do Master II e de duas entrevistadas, uma do Master II e outra, doutoranda).
Parte-se do pressuposto de que as sociedades modernas ocidentais passam por transformações, com a mundialização e a globalização, que produzem mudanças nas relações entre os indivíduos e as instituições na sociedade, e consequentemente transformações na sua relação com o futuro, o que Delory-Momberger (2009) denomina como “modernidade avançada” (p. 19). Estas mutações resultam, por exemplo, na flexibilização dos direitos trabalhistas, com a precarização do trabalho e com a generalização do desemprego (Delory-Momberger, 2009, p. 19). As grandes instituições de socialização enfraquecem e há uma exacerbação do indivíduo como objeto do mercado e o centro da sociedade, o que coloca em evidência para os indivíduos uma percepção de que eles teriam um poder individual sobre suas vidas e, ao mesmo tempo, um sentimento de culpa por seus sucessos e fracassos (Beck, 2003, Bauman, 2008; Delory-Momberger, 2009, 2012; Dubet, 1995). A tendência é a percepção do vivido de maneira fracionada e sem continuidade, o que altera a ideia de possibilidade de antecipar o futuro. A pesquisa se interessa em compreender, neste contexto da modernidade avançada, como jovens/estudantes de uma universidade parisiense expressam os sentidos de suas perspectivas de futuro.
No decorrer das entrevistas biográficas alguns participantes da pesquisa indagam sobre a possibilidade de uma resposta sobre suas perspectivas de futuro. A partir do processo de autorreflexão tais indagações produzem efeitos sobre as interpretações dos achados e uma reconfiguração sobre o modo como abordo a questão de perspectivas de futuro na pesquisa. Emerge um questionamento: - Será que o modo como conduzo a entrevista biográfica pode estar reforçando uma expectativa de trazer à tona um percurso linear e de construção de projeto de futuro definido de antemão, para atender as exigências sociais?
O foco desse artigo não é a apresentação dos resultados da pesquisa, mas colocar em evidência meus aprendizados como pesquisadora, a partir do processo de heterobiografização vivenciado, no diálogo estabelecido nas entrevistas, e da interpretação dos achados de cada narrativa de si.
O artigo se divide em três partes. No início aborda a pesquisa biográfica em educação como momento privilegiado para o processo de heterobiografização. Em seguida apresenta aspectos de minhas aprendizagens como pesquisadora a partir do estudo realizado e, para finalizar, evidencia implicações do processo de biografização e de heterobiografização na construção do “sujeito” enquanto pesquisador.
2. A PESQUISA BIOGRÁFICA NA EDUCAÇÃO COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO DE HETEROBIOGRAFIZAÇÃO
O método biográfico, como explica Ferrarotti (2013), permite ler a “sociedade através de uma biografia” (p. 58), compreendida não como o estudo do vivido, mas como a escrita da vida: enquanto conjunto de configurações e de práticas discursivas pelas quais os sujeitos atribuem forma e sentido a sua existência e inscrevem sua experiência no espaço social. Parte-se do pressuposto de que o indivíduo realiza uma “reapropriação singular do universal social e histórico que o rodeia porque filtra, interpreta, interfere nele ao projetá-lo para outra dimensão, a da subjectividade” (Ferrarotti, 2013, p. 58), reinventando-se incessantemente enquanto sujeito.
Conforme explica Delory-Momberger (2014), a apropriação de novas aprendizagens biográficas demanda um trabalho de interpretação pelo sujeito sobre o que aprende em diálogo com as aprendizagens anteriores (um quadro de referência sob forma de conhecimento disponível). A aprendizagem biográfica pressupõe uma reflexividade em relação às experiências vividas. O indivíduo, portanto, não tem uma relação direta com tais experiências. Ele precisa fazer um trabalho biográfico de representar o vivido e traduzir os sentidos de sua existência. Tal processo é apreendido de forma fraccionada e sem continuidade. Desse modo, os indivíduos cotidianamente, pelos diferentes modos de expressão, estão realizando o trabalho de biografização. Allait e Dausien (2019) explicam que a intensidade com a qual essa reserva de aprendizagens biográficas ou experienciais é mobilizada e o alcance de sua reflexibilidade para a formação de si depende das condições propiciadas pelo social (pp. 20-21).
Como salientam Niewiadomski e Delory-Momberger (2013), a pesquisa biográfica, por estudar esse processo de construção dos sujeitos no “espaço social para identificar como eles dão forma às suas experiências, como atribuem significados aos acontecimentos de sua existência, como agem e como se constroem nos meios históricos, sociais, culturais e políticos” (p. 17), pode ser, ao mesmo tempo, espaço de reflexão e de formação de si.
A emergência de narrativas dos sujeitos por um trabalho pelo qual eles podem construir uma coerência ao momento presente e, também, favorecer a projeção do que desejam realizar no futuro, configura-se como uma via potente de reflexividade para aqueles que dele participam, graças ao reconhecimento da “vida como experiência formadora e da formação como a estrutura da existência” (Honoré, 1977 apud Delory-Momberger, 2006, pp. 365-366) 8 .
Na pesquisa biográfica as narrativas são mobilizadas por uma questão do presente posta pelo/a pesquisador/a. Ricœur (1983) explica que o motor da construção da narrativa pelo indivíduo é a busca de sentido no presente. Essa narrativa é uma história construída pelos indivíduos para dar sentido aos elementos diferentes, em direção a uma totalidade temporal. A composição dessa história está enraizada na pré-compreensão do mundo e da ação. Ele acrescenta que essa ação é construída como uma narrativa a partir da mediação do simbólico para articular signos, regras, normas. Conforme o autor, a história contada não é o passado, nem o futuro e nem mesmo o presente, mas um triplo presente, o que configura o aspecto intertemporal da construção da narrativa. Reitera que é a preocupação do indivíduo no presente que determina o sentido do tempo na construção da narrativa.
Ao procurar compreender e explicar o processo pelo qual o indivíduo interpreta suas experiências, tal pesquisa legitima a palavra do outro e permite o engajamento do sujeito como autor de seu percurso de formação. Portanto, a pesquisa biográfica se move em uma dupla e recíproca configuração sendo, ao mesmo tempo, momento de pesquisa e de formação para aqueles que dela fazem parte, inclusive para aquele que conduz a pesquisa, que se forma como pessoa, como pesquisador/a e formador/a. Conforme Christophe Niewiadomski (2013), seja por relatos orais, escritos, individuais ou coletivos, o material da pesquisa biográfica é “o processo permanente de acesso a uma dialética hermenêutica entre vida, relatos e contextos” (p. 21).
O ato de compreender é um ato ético (Ricœur, 1990, p. 222). Considero que a compreensão do discurso pelo diálogo, com respeito pelos saberes do outro, é um exercício ético de reponsabilidade, que somente pode vir à tona pela construção de um espaço de confiança entre os participantes da pesquisa. Na pesquisa biográfica o/a pesquisador/a realiza uma incessante interpretação hermenêutica, a partir da relação dialética por processos sucessivos e interligados de compreensão e de explicação. A compreensão que o/a pesquisador/a desenvolve do relato do “outro” tem efeitos sobre si e sobre a construção de conhecimentos. A problemática de pesquisa tem relação com questões produzidas na sua relação com o outro e com o mundo e está inserida em campo específico de produção de conhecimentos. Tal processo tem uma dupla entrada, que se inter-relaciona, para o sujeito pesquisador: o conhecimento de si e de sua questão de pesquisa. Pela autorreflexão da narrativa partilhada, o/a pesquisador/a enriquece seu campo de interpretação sobre suas aprendizagens biográficas em diferentes dimensões de sua vida e, especificamente, pode aprofundar sua compreensão da temática abordada, tendo em vista a produção de conhecimentos científicos.
No caso da pesquisa que apresento, o espaço de coconstrução do diálogo e o processo de heterobiografização, que é dele uma consequência, se evidenciam no momento da realização das entrevistas de pesquisa biográfica e nas diferentes etapas da interpretação (na escuta, nas transcrições, nos diferentes momentos de interpretação, na restituição das análises para os participantes, etc.), realizadas com estudantes de uma universidade parisiense9.
Apresento a seguir aspectos de minha heterobiografização em tal pesquisa. Como o processo de apreender os modos do “outro” atribuir sentidos ao vivido produz aprendizagens sobre mim? Como esse processo contribui para a minha formação pessoal e como pesquisadora? Estas são questões que serão tratadas a seguir.
3. ALGUNS ASPECTOS DA HETEROBIOGRAFIZAÇÃO NA PESQUISA REALIZADA
As “entrevistas de pesquisa biográfica” com estudantes das Ciências da Educação de uma universidade parisiense acontecem a partir de duas perguntas principais: 1) Quais são as interpretações dos/as jovens franceses/as de suas experiências de vida e perspectivas de futuro?; 2) Qual o significado que atribuem aos desafios objetivos e subjetivos vivenciados no seu percurso de vida e de formação e como constroem suas táticas, no sentido de Certeau (1980), para tentar superar tais desafios? Certeau (1980) denomina de tática um cálculo programado de modo fragmentado, sem a noção do todo, o que não permite realizar um distanciamento para a tomada de decisão. “Ela depende do tempo . . . É necessário jogar constantemente com os acontecimentos para aproveitar as oportunidades” (Certeau, 1980, p. 21).
Como já mencionei, nesse artigo o foco não é responder a essas questões, mas identificar alguns aspectos das narrativas de quatro estudantes para refletir sobre minhas aprendizagens decorrentes do processo de heterobiografização. Apresento sinteticamente aspectos do relato de Fred, Fátima, Jérôme e Laure10.
Fred nasce na Alemanha e vai para a França aos 10 anos de idade. No momento da entrevista tinha 25 anos e formação em técnica de acústica obtida em Nantes. Fez um curso no Instituto Universitário de Formação de Professores (Institut Universitaire de Formation des Maîtres – IUFM) e obteve um mestrado. Ele morou em Paris e, durante o segundo ano de mestrado profissional, desejava se inscrever no doutorado em Ciências da Educação11. A história de Fred é complexa. Sua narrativa é densa: a partir de várias leituras, dela identifico os seguintes temas: a) inserção nos códigos de outra cultura; b) o estudo para ser reconhecido na sociedade e sobreviver; c) a tensão entre o pragmatismo da vida e as perspectivas criativas de ser sujeito de sua história; d) crítica sobre a possibilidade de definir um projeto do futuro. A frase que predomina no seu relato é: “tenho dificuldade de me determinar”. Em relação a suas perspectivas de futuro, no fim do relato Fred explica que, em diferentes momentos da vida, vivencia a tensão entre as expectativas da família, que são de que ele obtenha uma profissão para sobreviver com tranquilidade, e suas “escolhas” para construir seu projeto de si, como, por exemplo, o movimento de mudar de uma formação mais técnica para a área das Artes, ou até mesmo quando se volta para o aprofundamento dos estudos acadêmicos, aspectos não compreendidos e nem valorizados por seus familiares.
Jérôme tinha 28 anos. Relata que era filho único até aos 7 anos, o que influencia o relacionamento dos pais com ele, pois era tratado como um pequeno rei em casa. Outro aspecto da família de Jérôme é que seu pai era policial e, por isso, a família mudava muito de lugar. Ele não gostava dessa situação, mas até atingir a maioridade precisava se adaptar às necessidades de sua família. Ele explica seu percurso de formação até ao mestrado, enfatizando sua relação com a escola e os desafios para ser reconhecido como sujeito de sua formação. Destaca as transformações em seu relacionamento com a escola e com os estudos. Depois de ter encontrado dificuldades na escola, encontra um lugar reconhecido na universidade, onde é um bom aluno. O sentimento de ser reconhecido como um sujeito de sucesso nos estudos é o tema dominante em sua história. Identifico as seguintes temáticas: a) desafios escolares; b) os reencontros e reconciliação com a escola como um projeto de si; c) a ideia de se formar por conta própria (autodidata). Em relação às perspectivas de futuro, Jérôme explica que não possui um projeto fixo. Para ele, seu caminho é marcado pela improvisação, pelas circunstâncias, pelas sugestões dos amigos. A frase central em seu relato é: “todo dia a vida é feita de encontros”. Ele coloca em evidência as ideias de que é necessário um trabalho de prestar atenção às oportunidades que aparecem e de que os amigos são fundamentais nesse processo.
Fátima é marroquina e berbere. Ela passa a infância em uma pequena cidade de Marrocos e deixa os pais aos 17 anos para estudar na Universidade de Rabat, a capital onde obteve o diploma de bacharel em Ciências da Educação. Rabat é uma cidade onde os códigos culturais são diferentes da sua cidade de origem. Depois, ela muda de país e parte para a França, em Pau, para continuar seus estudos. Ao longo da história, ela evoca a questão de ser confrontada com outras culturas, buscando entender a diversidade cultural e encontrar o seu lugar como mulher. Em sua narrativa podem-se identificar diferentes temas que estão ligados: a) estudar para encontrar um lugar no mundo e construir o projeto de si; b) desigualdade entre homens e mulheres e entre diferentes culturas; c) a relação entre o curso da vida e o trabalho com as mulheres em dificuldade. Fátima apresenta uma coerência em seu relato em relação aos argumentos de perspectivas de futuro e do projeto de si. Pouco a pouco, a partir dos estudos, a questão da defesa dos direitos das mulheres, contra as discriminações sociais e culturais, é central nas suas pesquisas e no seu trabalho na área social. Essa questão, enraizada na sua própria condição de mulher e nas discriminações que sofreu em sua vida, é tematizada em diferentes dimensões de seu relato.
Laure é uma doutoranda em Ciências da Educação. No início da entrevista ela explica que gosta de refletir sobre sua história e que se lembra muito do passado. Ela diz: “eu sou alguém que tem muitas memórias, eu gosto muito de pensar nas minhas lembranças”. Os temas de sua narrativa são: a) a relação com a escola; b) a influência de sua experiência profissional em seu doutorado em Ciências da Educação; c) o projeto de futuro como possibilidade do presente. Ao longo do relato Laure apresenta o que compreende sobre a questão do projeto de futuro. Ela questiona a validade do projeto de futuro linear, tendo como referência seu próprio percurso de estudante desde o Ensino Médio até sua inserção no mercado de trabalho. Seu argumento é: “as experiências de trabalho propiciam muitos saberes”. Ela acrescenta que as perspectivas de estudo e de trabalho são construídas pouco a pouco, que não há um projeto de futuro fixo e que é difícil se projetar em relação ao futuro incerto e repleto de mudanças. Ressalta a importância do projeto de si, explicando seu desejo de não ficar fechada em um só caminho. Ela quer ter o direito de mudar, de deixar espaço para outras possibilidades. A frase marcante em seu relato é: “a vida como um leque de proposições de atividades, e é o desejo de aprender que leva às possibilidades”. Seu projeto de si, portanto, é continuar a criar para não ser enquadrada em um projeto único.
De modo geral, ao interpretar as narrativas desses/as estudantes é possível evocar dois tipos de aprendizagens, enquanto processos de heterobiografização. Em primeiro lugar, as reflexões dos participantes ecoam em meus desafios enquanto estrangeira, na França, realizando os estudos pós-doutorais, confrontada com os desafios de adentrar ao modo de vida de outra cultura, com lógicas de aprender diferenciadas, outra língua, com demandas específicas em relação aos estudos.
As narrativas de Fred, Fátima e Jérôme, por exemplo, apresentam seu percurso de vida e de formação, colocando em evidência os efeitos dos desafios objetivos e subjetivos a superar a partir das mudanças de escola, cidade e país. Os novos códigos culturais, a língua, as regras não são dominadas, o que demanda um intenso trabalho de biografização. Como explica Fred:
É um período onde eu fui ao colégio e descobri também outra cultura francesa e como o francês vivia, em particular na região parisiense. Havia uma grande discrepância com a escola primária onde estudei na Alemanha. Eu vivia em uma pequena vila. Eu devia aprender um novo código cultural francês em um grande colégio na França. E para uma criança já é uma mudança passar da escola primária ao colégio, em outro país e em outro tamanho de cidade também. Se passou qualquer coisa de importante para minha formação.
Para Fred e para Jérôme, o sentimento de não pertencer ao novo espaço de vida e de não ser reconhecido pelos professores produz angústias nos seus períodos de transição e traz consequências em relação a seus projetos de si, a partir de um intenso processo de biografização. Schütz (2003) argumenta que, para um estrangeiro, “o modelo cultural do novo grupo não é um refúgio, mas um país aventureiro, não algo compreendido, mas uma questão a ser investigada, não uma ferramenta para lidar com situações problemáticas, mas uma situação problemática e difícil de dominar” (p. 36). Acrescenta o autor que quando um estrangeiro tenta interpretar seu novo espaço social, ele rapidamente descobre que todo o seu conceito de partida se torna inadequado para a compreensão de novas situações (Schütz, 2003, pp. 20-22).
Os desafios em relação às novas experiências são confrontados com uma reserva de conhecimento disponível, utilizada “para antecipar e interpretar novas experiências e transformá-las em experiências adquiridas na forma de conhecimento ou recursos biográficos” (Delory-Momberger, 2014, p. 137). Esses recursos são mobilizados pelos indivíduos para fornecer respostas às situações ou ações em contextos específicos, produzindo sucessos e fracassos. Certas experiências biográficas “são facilmente integradas e entram sem resistência em nosso capital biográfico, porque reproduzem experiências anteriores e podemos reconhecê-las” (Delory-Momberger, 2014, p. 139). Outras experiências “requerem um trabalho de interpretação e elaboração, porque não correspondem exatamente aos esquemas de construção que as experiências passadas tornaram possível nos apropriar” (Delory-Momberger, 2014, p. 139). Segundo Delory-Momberger (2014), o sujeito não se autoriza a iniciar um trabalho de interpretação e apropriação de novas experiências se as situações não corresponderem aos esquemas já apreendidos. Fátima, ao contrário de Fred e Jérôme, interpreta as experiências em relação às mudanças de cidade e país como recursos para construir seu projeto de si e suas questões de pesquisa.
Quando escuto e interpreto as histórias desses estudantes, suas aprendizagens biográficas, eu realizo um exercício, que é uma aprendizagem de uma postura ética de vigilância sobre como me relaciono com a singularidade do outro. Dois movimentos se inter-relacionam: me deparo com referências culturais dos/as participantes que em determinados aspectos diferem das minhas, com seus contextos específicos; ao mesmo tempo, me reconheço em seus relatos, ao identificar como meus, também, os desafios vividos como estudante/pesquisadora estrangeira, para aprender em outro contexto cultural, com novas exigências escolares, com tensões, com desafios de novas relações de amizade. É um trabalho intenso de biografização como mulher, mãe e pesquisadora. Preciso entrar no código de outro país e compreender melhor os pressupostos teóricos e metodológicos da pesquisa biográfica. Outra questão que emerge é o desafio como mãe: com um filho, tinha que entrar na nova cultura e vivenciava as dificuldades na experiência de sociabilidade e de escolarização. Identifico, portanto, a aprendizagem ética de compreender, respeitar e valorizar os saberes do “outro”. A pesquisa biográfica propicia uma coconstrução de sentido, mediante um diálogo intercultural.
Identifico, ainda, outro aspecto do meu processo de heterobiografização nas narrativas dos/as estudantes. A questão central de minha pesquisa era compreender o percurso de vida e de formação dos/as estudantes e suas perspectivas de futuro e minha questão inicial foi perguntar sobre tal percurso e sua relação com as perspectivas de futuro.
Fred e Laure, ao longo da entrevista, questionam a possibilidade de construir um projeto único para o futuro. Um exemplo desse questionamento é a frase várias vezes repetida por Fred no decorrer da entrevista: “Eu tenho dificuldade em me determinar”. Pode-se também apresentar o ponto de vista de Laure sobre a ideia de projeto de futuro. Ela explica que as perspectivas de estudos e de trabalho são construídas pouco a pouco, que ela não tem um projeto de futuro fixo. Ao longo de sua narrativa ela explica que deseja se permitir a aproveitar as chances. Ela prioriza seu projeto de si, explicando que não deseja se fechar em um caminho. Quer ter direito de mudar sua rota, deixar sempre espaço para outras possibilidades. Segundo ela, “o futuro é... eu não sei. É necessário que se tenha possibilidades, é tudo”. Para Laure o mais importante é pensar o futuro imediato. Considera que o projeto se forma a partir de uma demanda do presente. Jérôme também explica que não há um projeto de futuro fixo. A construção de seu caminho é feita pela improvisação, pelas circunstâncias, pelas sugestões dos amigos.
Eu havia refletido sobre a necessidade de desconstrução de uma compreensão fixa e linear sobre o percurso de vida e projetos de futuro na sociedade atual, em relação à ideia de que as sociedades modernas passam por mutações e a respeito das transformações nas relações entre o indivíduo e o social na sociedade capitalista. É importante que, nesse processo, identificam-se transformações na relação com o tempo. Este não é mais apreendido como cíclico ou linear, mas apresenta-se como “fragmentado, ou mesmo pulverizado numa multiplicidade de instantes eternos . . . . A vida, seja individual ou social, não passa de uma sucessão de presentes, uma coleção de instantes experimentados com intensidade variada” (Bauman, 2008, p. 46). Como explica Bauman (2008), neste modo de compreender o mundo não se valoriza a noção de progresso, possibilitado pelos esforços humanos. “A ideia do tempo da necessidade foi substituída pelo conceito de tempo de possibilidades . . ., aberto em qualquer momento” (Bauman, 2008, p. 47) pela imprevisibilidade do novo. O que importa é o momento presente, não perder a oportunidade, pois não haverá nova chance. Essa pressa é em parte justificada pelo impulso em adquirir coisas e pela necessidade de substituí-las e descartá-las (Bauman, 2008, p. 50).
Essas mudanças, como explica Delory-Momberger (2009), não enfraquecem a normatividade que é imposta pela sociedade. Elas deixam de ser direcionadas pelas grandes “agências de socialização” (Delory-Momberger, 2009, p. 18). Se apresentam como formas menos centralizadas, mais difusas, mas elas continuam muito eficazes. Nesse processo, “o indivíduo está no centro da mutação societal que caracteriza a modernidade avançada” (Delory-Momberger, 2009a, p. 18); “ele se torna o objeto do mercado, não só como consumidor, mas como o bem, o valor supremo do mercado (Delory-Momberger, 2009, pp. 19-20). Nesse contexto de desigualdades sociais cada um é culpabilizado individualmente pelos fracassos e considerado responsável por seus sucessos, reforçando a ideia de uma autonomia absoluta do indivíduo em relação à sociedade. A ideia de construção de um projeto de futuro linear e fixo é substituída aos poucos pela ideia de projetos que mudam e que se adaptam continuamente às circunstâncias do presente.
Mesmo tendo como referências esses pressupostos, os diálogos com os participantes do estudo contribuem para uma reflexão sobre o modo como formulo a questão central, que deu o tom para as entrevistas e que, de certo modo, favorecia uma narrativa linear do percurso de vida e de formação e uma ideia de conceituar uma explicação unívoca sobre a perspectiva de futuro.
Com os questionamentos dos/as estudantes, eu passo a refletir sobre o modo como conduzo a entrevista, a refletir sobre minhas representações quanto à ideia de percurso de formação e projeto de futuro. Emergem elementos das narrativas que remetem à valorização das interpretações sobre como cada um constrói seu projeto de si, com seus matizes plurais, a partir das tensões e confrontos com as exigências sociais, da família, de sobrevivência na sociedade. O projeto de si toma destaque no estudo. Ele é compreendido na pesquisa como a busca de sentido do sujeito sobre sua vida e as estratégias construídas cotidianamente para exercer o papel, mesmo com restrições impostas pela sociedade, de protagonista da sua história. Portanto, o projeto de si está ligado às interpretações das experiências, ao processo de biografização e às articulações entre as aprendizagens biográficas apropriadas em diferentes dimensões da vida do sujeito. É construído pouco a pouco, em constante negociação com a realidade sócio-individual.
As interpretações se voltam para a compreensão sobre como os/as estudantes se conformam, se adaptam, desafiam ou negociam as decisões tomadas, no jogo de possíveis entre o que desejam realizar e no confronto com os desafios concretos vivenciados em cada momento de suas vidas.
Analiso cada narrativa de modo exaustivo, para compreender os significados atribuídos a esse processo e para identificar as táticas construídas diariamente, que aproximam ou distanciam os/as estudantes do sentimento de serem mais ou menos sujeitos de suas histórias. Portanto, minhas reflexões sobre os questionamentos dos/as estudantes permitem focalizar mais seus projetos de si do que definições sobre projetos de futuro.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A HETEROBIOGRAFIZAÇÃO COMO PARTE DA PESQUISA BIOGRÁFICA
Para concluir é importante remarcar que na pesquisa biográfica a dimensão das aprendizagens heterobiográficas do/a pesquisador/a faz parte dos achados da pesquisa. Geralmente quando se apresenta a pesquisa biográfica são sublinhados os processos de biografização dos participantes do estudo. Considero igualmente importante a relação entre biografização e heterobiografização daquele/a que conduz a pesquisa, pois ele/a faz parte do processo, se forma como pessoa e como pesquisador/a. Tomar consciência sobre essa dimensão é fundamental e apresenta implicações para o processo de análise dos resultados. Em relação à pesquisa realizada, duas aprendizagens podem ser identificadas:
a- A construção da postura ética de valorização dos saberes do “outro”:
Quando eu entro em diálogo com o/a entrevistado/a, escutando seu processo intenso de biografização, as narrativas construídas ecoam em minhas questões. Identifico uma aprendizagem mais pessoal sobre os desafios para entrar no código de outra cultura, de entrar em outras lógicas escolares, o que dialoga com meu intenso processo de biografização em outro país. No entanto, essa aprendizagem não é apenas pessoal, ela contribui na minha formação como pesquisadora, especialmente para a edificação de uma postura ética com os/as entrevistados/as. Reconheço e valorizo a experiência do “outro” na sua diversidade, complexidade de saberes, de sentimentos, dos sentidos produzidos para fazer frente aos desafios.
b- Reflexividade para o pesquisador sobre a pertinência da questão de pesquisa:
A questão colocada no início da pesquisa biográfica traduz a maneira como o pesquisador constrói seu objeto de pesquisa. Portanto, ela produz também efeitos sobre as narrativas produzidas.
Portanto, considero que a questão formulada pelo/a pesquisador/a na pesquisa biográfica influencia no modo como os/as entrevistados/as produzem suas narrativas, mobilizando-os a construir suas histórias para responder a essa questão inicial a partir de suas inquietações no presente. Desse modo, o processo de heterobiografização vivido pelo/a pesquisador/a permite sua reflexão sobre as referências que está mobilizando para realizar o estudo. Passo por esse processo como pesquisadora. Os modos como os/as entrevistados/as respondem a minha questão me levam a questionar possíveis contradições entre meus referenciais teóricos e metodológicos e os modos como formulo a questão de pesquisa.
Esse processo remete a um questionamento sobre a pertinência de focalizar no estudo as perspectivas de futuro dos/as jovens. Interrogo se não estou priorizando a apreensão de definições sobre projetos de futuro a partir das exigências dominantes, que se pautam na busca de resposta às pressões da modernidade avançada de definir o que os/as estudantes farão no futuro. Eu começo a priorizar a análise da construção dos projetos de si de cada estudante, compreendida como apropriação reflexiva dos percursos vivenciados, num intenso trabalho para serem reconhecidos em suas singularidades, no confronto com exigências e pressões da sociedade. Passo a ter como foco a compreensão do confronto entre os desejos dos/as estudantes de serem reconhecidos/as, de serem protagonistas de suas histórias, e os desafios objetivos e subjetivos que precisam enfrentar nesse contexto.
Pode-se afirmar, portanto, que o processo de heterobiografização vivenciado na pesquisa contribui para a biografização do/a pesquisador/a, como também que o movimento entre heterobiografização e biografização possibilita a emergência de uma dimensão formativa e de produção de conhecimentos importantes no âmbito da pesquisa biográfica em educação.