INTRODUÇÃO
A 2 de março de 2020 foi confirmado o primeiro caso de infeção por SARS-CoV-2 em Portugal1. Nove dias mais tarde foi declarada a pandemia Covid-19 pela Organização Mundial de Saúde2.
A situação epidemiológica associada à Covid-19 modificou a prestação de cuidados de saúde em Portugal, em particular na doença respiratória. Durante os primeiros três meses de pandemia observou-se uma diminuição no número de primeiras consultas externas, foram suspensos meios complementares de diagnóstico, como espirometria e prova de metacolina, e terapêutica, como a imunoterapia específica subcutânea3.
A asma é uma doença crónica caracterizada por inflamação das vias aéreas, definida pela ocorrência de sintomas respiratórios e pela presença de limitação variável do fluxo expiratório4. As exacerbações de asma, que podem ser definidas como uma alteração dos sintomas e função pulmonar do doente em relação ao seu estado basal, podem ser despoletadas por infeções respiratórias víricas (desencadeadas mais frequente), exposição a aerolergénios, exposição a alergénios alimentares, exposição a fármacos, exposição a poluentes, mudança de estação do ano, má adesão ao tratamento ou ocorrer sem exposição a nenhum fator de risco conhecido4,5.
Doentes com asma não parecem ter risco acrescido de doença Covid-19 grave em comparação com indivíduos saudáveis. O risco de morte por Covid-19 parece, no entanto, aumentado em doentes asmáticos com utilização crónica ou recente de corticoterapia oral5-7. Assim, foi reforçada a importância da adesão à terapêutica de manutenção dos doentes durante o período pandémico de forma a controlar os seus sintomas e a evitar exacerbações4.
Por outro lado, vários estudos apontam para uma diminuição no número de admissões no serviço de urgência e hospitalizações por asma durante o confinamento8-10. Este estudo teve como objetivo primário caracterizar os doentes internados por asma, num hospital universitário, Centro Hospitalar de São João, no primeiro ano da pandemia, comparando-os com os doentes internados por asma no período homólogo prévio. Como objetivo secundário, visamos identificar possíveis fatores associados a uma pior evolução clínica durante o internamento por asma.
MATERIAL E MÉTODOS
Recorreu-se à análise retrospetiva dos processos clínicos dos doentes internados por asma no Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) durante os primeiros 12 meses de pandemia (março 2020 a fevereiro 2021), comparativamente ao período homólogo pré-pandemia (março 2019 a fevereiro 2020). Foram utilizados os códigos ICD10 associados a “asma” atribuídos ao diagnóstico principal (J4521, J4532, J4541, J4542, J4551, J45901, J45902, J45909, J4552, J45991) para identificar os doentes internados por asma nos dois períodos considerados.
Foram excluídos os doentes em que se considerou que o diagnóstico principal do internamento estava erradamente codificado como exacerbação de asma ou quando os registos eram insuficientes para recolher informação considerada relevante.
Em relação a cada internamento foram recolhidos dados demográficos do doente e dados clínicos, como o motivo de exacerbação da asma, terapêutica prévia (step de classificação GINA(4), utilização ou não de terapêutica broncodilatadora em exclusivo, tipo de inalador e utilização de oxigenoterapia), seguimento prévio em consulta de especialidade, presença de atopia e/ou de outras doenças alérgicas, hábitos tabágicos, ACOS (síndrome de sobreposição asma - doença pulmonar obstrutiva crónica) e outras comorbilidades (doença respiratória crónica, cardiovascular, endocrinológica, hematológica, oncológica, psiquiátrica, neurológica e patologia do sono).
Foram analisados dados relativos ao episódio de internamento como duração (em dias), estação do ano, serviço responsável, necessidade de admissão em sala de emergência (SE), internamento em unidade de cuidados intensivos (UCI), colaboração ou não de Imunoalergologia e se se tratava ou não de um episódio inaugural. Em relação à data de alta, foram registadas a orientação subsequente e a terapêutica instituída. Os grupos pandemia e pré-pandemia foram comparados relativamente às variáveis descritas.
As características dos doentes com necessidade de internamento em UCI foram analisadas, comparando-as com as dos doentes não admitidos em UCI. Foram comparadas as características dos doentes com e sem seguimento prévio por especialidade hospitalar. Os doentes com tratamento exclusivo com broncodilatador foram também analisados, comparando-os com os que não utilizavam apenas terapêutica broncodilatadora. Os doentes em step 5 de GINA foram comparados com os restantes doentes.
A análise estatística foi efetuada com o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 27.0. A análise envolveu medidas de estatística descritiva (frequências absolutas e relativas, médias e respetivos desvios-padrão) e estatística inferencial. O nível de significância para rejeitar a hipótese nula foi fixado em ≤ 0,05.
A normalidade de distribuição dos valores das variáveis foi analisada com o teste de Shapiro-Wilk e pela observação do histograma. Utilizou-se o Teste de Qui-quadrado, o teste de Fisher, o teste t de Student para amostras independentes e o teste de Mann-Whitney. O pressuposto do Teste de Qui-quadrado de que não deve haver mais do que 20% das células com frequências esperadas inferiores a 5 foi analisado. Nas situações em que este pressuposto não estava satisfeito usou-se o Teste de Qui-quadrado por simulação de Monte Carlo e o teste de Fisher.
RESULTADOS
Identificaram-se 66 internamentos com o diagnóstico principal de asma nos dois períodos considerados. Destes, 10 internamentos foram excluídos da análise, dois por falta de informação e oito porque o motivo principal de internamento não era exacerbação de asma. Assim, foram incluídos 56 internamentos, correspondente a 53 doentes, 81,1% do sexo feminino e 18,9% do sexo masculino, com uma média de idades de 47 anos [± 21 anos; 8-93 anos].
No período de pandemia analisado verificaram-se 17 internamentos e no período pré-pandemia 39, com uma redução significativa dos internamentos por asma em contexto de pandemia (30,4% versus 69,6%, p < 0,001).
Quando comparamos as características dos dois grupos de doentes (pandemia vs pré-pandemia) (Tabela 1), não se verificaram diferenças estatisticamente significativas, nomeadamente em termos de idade (47 vs 47 anos, p=0,972), tempo de internamento (5,82 dias vs 5,67 dias, p=0,9), sexo (82,4% vs 79,5% feminino, p=1,0), estação do ano (p=0,064), seguimento prévio em consulta (p=0,535) presença de atopia (50,0% vs 64,5%, p=0,366) ou de outras doenças alérgicas (p=0,579), outras comorbilidades, hábitos tabágicos (p=1,000) terapêutica prévia ao internamento (p=0,913) ou à data da alta (p=0,842).
Dados expressos em n(%) exceto se especificado de outra forma.
ACOS: Síndrome de sobreposição asma - Doença pulmonar obstrutiva crónica; DPI: dry powder inhaler; pMDI: pressurized metered-dose inhaler; CE: Câmara expansora; SAOS: Síndrome de apneia obstrutiva do sono.
a Imunoalergologia ou Pneumologia. b Colaboração de Imunoalergologia durante o internamento. c Excluindo DPOC e asma. d Orientação para consulta hospitalar de imunoalergologia ou pneumologia.
À data de alta, a maioria dos doentes (71% no grupo pandemia e 74% no grupo pré-pandemia) subiu ou manteve-se no mesmo step da classificação GINA. Relativamente ao motivo de exacerbação da asma, também não se observaram diferenças entre os dois grupos (p=0,452). Em ambos, o principal motivo de exacerbação foi a ocorrência de infeção respiratória (em 71% dos doentes no grupo pandemia e 64% dos doentes no grupo pré-pandemia) mas em nenhum dos casos foi identificada infeção por SARS-CoV-2. Não foi possível, no entanto, determinar a etiologia da infeção na maioria dos episódios.
A maioria dos doentes ficou internada no serviço de medicina interna em ambos os períodos (94,1% vs 79,5%). Não se observaram diferenças com significado estatístico relativamente ao número de colaborações de imunoalergologia (p=0,119). Em ambos os grupos, o verão foi a estação do ano com o menor número de internamentos.
No grupo pandemia, um internamento foi em idade pediátrica (criança de 10 anos) e no grupo pré-pandemia dois internamentos (8 e 12 anos).
Globalmente, a maior parte dos doentes não era seguida previamente ao internamento em consulta de especialidade de imunoalergologia ou pneumologia. O seguimento prévio não se associou a diferenças na necessidade de internamento em UCI (p=0,474), necessidade de admissão em SE (p=0,703), tempo de internamento (p=0,760) ou utilização de broncodilatação em exclusivo (p=0,077) (Tabela 2).
De salientar que em 32,1% dos internamentos analisados (37,5% no grupo pandemia e 30,8% no grupo pré-pandemia), os doentes utilizavam exclusivamente terapêutica broncodilatadora. Globalmente, este subgrupo de doentes foi mais vezes admitido em SE em comparação com os doentes que não utilizam exclusivamente terapêutica broncodilatadora (p=0,046). Contudo, não se observaram diferenças com significado estatístico nestes doentes relativamente à percentagem de admissão em UCI (p=0,063) ou ao tempo de internamento (p=0,869) (Tabela 3).
No grupo pandemia, 29,4% dos doentes necessitaram de ser admitidos em UCI e 12,8% no grupo pré-pandemia, sem diferenças com significado estatístico entre os grupos (p=0,152). Quando analisamos o subgrupo de doentes admitidos em UCI (10 no total) relativamente a média de idade, sexo, seguimento prévio em consulta de especialidade, tempo médio de internamento ou comorbilidades não encontramos diferenças com significado estatístico (Tabela 4).
ACOS - Síndrome de sobreposição asma - Doença pulmonar obstrutiva crónica; SAOS - Síndrome de apneia obstrutiva do sono; a Excluindo DPOC e asma.
Os doentes no step 5 do GINA (13 doentes no total) parecem ser significativamente mais velhos que os doentes nos restantes steps (66 anos vs 41 anos, p<0,001), apresentar mais doença cardiovascular (p=0,024) e endocrinológica (p=0,032). Porém, não se observaram diferenças relativamente ao número de doentes admitidos em SE (p=1,00) ou na UCI (p=0,168), nem no tempo de internamento (p=0,326) (Tabela 5).
SE - Sala de emergência. UCI - Unidade de cuidados intensivos; ACOS - Síndrome de sobreposição asma - Doença pulmonar obstrutiva crónica; SAOS - Síndrome de apneia obstrutiva do sono; a Excluindo DPOC e asma.
Observaram-se três reinternamentos nos períodos analisados, correspondentes a duas doentes do sexo feminino e um doente do sexo masculino, com as idades respetivas de 49, 76 e 56 anos. Nenhum dos doentes era seguido previamente em consulta hospitalar. Dois dos doentes necessitaram de admissão em UCI. Como terapêutica prévia ao primeiro internamento, um doente estava medicado em step 4, outro em step 5 e outro medicado com Long-acting muscarinic antagonist (LAMA), Long-acting beta-agonist (LABA) e amlodipina. Os três doentes foram orientados, posteriormente para consulta hospitalar.
No total dos dois períodos considerados verificou-se um óbito por agudização de asma, numa doente do grupo pré-pandemia. Tratava-se de uma doente de 74 anos, com asma diagnosticada, sem seguimento em consulta hospitalar e com história de incumprimento terapêutico - utilizaria apenas Short-acting-beta-agonist (SABA) e Short-acting-muscarinic-antagonist (SAMA) como terapia de resgate.
DISCUSSÃO
Que seja do nosso conhecimento, o presente estudo é dos primeiros em Portugal que avalia especificamente os internamentos por asma durante o primeiro ano da pandemia Covid-19 comparando-os com o período homólogo prévio.
De acordo com os dados analisados, verificamos uma diminuição significativa do número de internamentos por exacerbação de asma no primeiro ano da pandemia, em comparação com o período homólogo anterior. O decréscimo observado vai ao encontro da literatura. Um estudo que comparou o número de hospitalizações por asma no Japão durante o surto de Covid-19, de 25 de fevereiro a 25 de maio de 2020 com o período homólogo dos três anos prévios, verificou uma diminuição estatisticamente significativa no número de internamentos por asma, quer em crianças, quer em adultos10. Na Grécia, outro estudo que comparou a taxa de incidência semanal de internamentos por asma durante o período de confinamento (março-maio de 2020) com o período homólogo de 2019 descreve uma diminuição significativa 11. Em Inglaterra foram encontrados resultados semelhantes2. Um estudo de Israel, centrado na população pediátrica relativo à admissão no serviço de urgência por exacerbação de asma, mostrou uma diminuição estatisticamente significativa durante o confinamento (15 março-15 maio 2020), em comparação com o período homologo prévio12. Em idade pediátrica, nos Estados Unidos foi verificada uma diminuição significativa das exacerbações por asma durante o primeiro ano da pandemia, em comparação com período homólogo anterior13.
A diminuição no número de internamentos pode ser explicada, por um lado, pelo facto das medidas adotadas para a prevenção da transmissão do SARS-CoV-2 reduzirem também a transmissão de outras infeções víricas respiratórias potencialmente responsáveis por agudizações em doentes asmáticos14. Por outro lado, a instalação da pandemia poderá ter motivado doentes com asma a aderirem melhor à sua terapêutica de manutenção por receio de contraírem a infeção e agravarem a sua doença de base15. Poderão ainda ter existido casos de internamento por agudização de asma em contexto de doença Covid-19 em que esta foi assumida como diagnóstico principal e, como tal, não identificados e incluídos neste trabalho.
Num estudo prévio realizado neste hospital, que teve por objetivo caracterizar os recursos por exacerbação de asma ao serviço de urgência durante o ano de 2008, observaram-se 306 recursos por este motivo, 55 dos quais resultando em internamento16. Neste trabalho, observamos um valor inferior a este, quer no período pandemia, quer no período pré-pandemia. De facto, apesar do aumento da prevalência da asma, tem-se observado uma diminuição nas hospitalizações por asma nos últimos anos 17,18.
Observamos uma maior percentagem de internamentos de doentes do sexo feminino, nos dois períodos analisados, o que está de acordo com a bibliografia17,19,20.
Num estudo que teve como objetivo avaliar o número de hospitalizações e mortalidade hospitalar em Portugal entre 2000 e 2010, o sexo feminino correspondeu a 55,7% das hospitalizações por asma20. Relativamente à prevalência na população portuguesa, no Inquérito Nacional sobre Asma, realizado em 2010, 57,3% dos doentes asmáticos eram do sexo feminino21.
Globalmente, nos doentes com tratamento apenas com broncodilatador a necessidade de admissão em SE foi estatisticamente superior. Relativamente à necessidade de admissão em UCI, este valor foi tendencialmente maior nestes doentes, apesar de não terem sido encontradas diferenças com significado estatístico (p=0,063).
A literatura demonstra que o risco de exacerbações e de necessidade de observação urgente por asma está aumentado em doentes que utilizam SABA de forma isolada 4,8 . Destacamos o facto de a utilização isolada de broncodilatação já não estar recomendada, mesmo em doentes com asma ligeira e intermitente4.
Apesar de não observarmos diferenças com significado estatístico, a percentagem de internamentos em UCI é superior no grupo pandemia (29,4 vs 12,8%). Não identificamos nenhum fator associado, com significado estatístico, à admissão em UCI.
Os doentes no step 5 de tratamento são doentes mais velhos e com mais comorbilidades cardiovasculares e endocrinológicas, com significado estatístico. O aumento da idade parece ser um fator de risco independente para o desenvolvimento de asma grave22. A idade avançada, por seu lado, está associada a um aumento do risco de doenças crónicas23. Alguma evidência parece sugerir que a asma grave se associa a comorbilidades cardiovasculares24.
Num estudo de 2016, em Portugal, observou-se um aumento dos internamentos por asma nos meses de inverno20. No presente estudo observamos também um maior número de internamentos nos meses de inverno pré-pandemia e nos meses de primavera da pandemia, embora sem significado estatístico.
Algumas das limitações deste trabalho prendem-se com a natureza retrospetiva do mesmo, com informações omissas e registos incompletos em vários dos processos clínicos analisados. Outra limitação é a inclusão apenas de doentes codificados com asma no diagnóstico principal.
Poderão não ter sido incluídos doentes com exacerbação de asma, mas em que esta não foi codificada como diagnóstico principal. Contudo, num estudo prévio em Portugal, na mesma altura, não foi identificada a asma como fator de exacerbação para a infeção para a COVID-19, pelo que se torna menos provável que tenha sido incluído como diagnóstico secundário nos internamentos por COVID-19 neste período25.
Outra limitação é o reduzido número de doentes pediátricos identificados e incluídos no trabalho, uma criança de 10 anos no grupo pandemia e duas no grupo pré-pandemia (8 e 12 anos), o que nos impede de analisar especificamente este subgrupo. Este baixo número de crianças pode, em parte, ser explicado pela não inclusão de internamentos codificados como sibilância recorrente.
CONCLUSÕES
Verificou-se uma diminuição do número de internamentos por asma nos primeiros 12 meses de pandemia, em comparação com o período homólogo prévio. Contudo, não se observaram diferenças estatisticamente significativas entre as principais características dos internamentos nestes dois períodos. Fatores como uma maior adesão à terapêutica e medidas de proteção individual poderão ter contribuído para o decréscimo de internamentos por asma.
Globalmente, os doentes tratados exclusivamente com terapêutica broncodilatadora apresentaram maior percentagem de admissão em SE, em comparação com os restantes doentes. Os doentes em Step 5 parecem, por outro lado, ser doentes mais velhos e com mais comorbilidades cardiovasculares e do foro endocrinológico. Mais estudos são necessários para compreender o impacto da pandemia nas hospitalizações por asma.