Introdução
O rumo e a hegemonização do neoliberalismo económico constituem-se como uma das montras para a problematização de um conceito, que neles se revela tão volátil quanto recorrente: o conceito de “liberdade”. Tantas vezes destituída de um questionamento devido ou de uma base concreta, a palavra torna-se neutra, esvaziada, quando não instrumentalizada em nome do que supostamente contrariaria a sua própria aceção. Quando lhe acrescentamos o fator “tempo”, na designação de um “tempo livre”, a indefinição fomenta disputas que, nos planos social ou educativo, são a melhor forma de combater a docilidade e o consenso em que se mantêm injustiças estruturais e vazios educacionais.
Trataremos de subsumir esta ideia de liberdade a partir do tempo outro, do tempo da vida vivida, do tempo social das crianças como o que importa salvaguardar no processo de disputa e usurpação do tempo tão soberanamente exercido pelos registos institucionais e disciplinares das sociedades contemporâneas. Para tal, pressupomos o tempo como socialmente disputável, mais do que como unidade de medida linear ou como conceito de definição estabilizada. Existem muitos tempos que se intersecionam, que se organizam e se reorganizam, que se distribuem de forma interna ou externa às pessoas, sociedades e coletivos. Esta ideia plural e disputada de tempo, presente na noção de “tempo livre”, está também em questão na abordagem metafórica à língua dos pássaros, que elegemos como título e motor do presente texto.
As “crianças de domingo”, no breve fragmento de Walter Benjamin (2017), veem jardins mágicos e florestas ocultas onde outros passam sem tempo ou atenção. Na pequena fábula espelha-se um desequilíbrio de perceções entre estas crianças e as pessoas comuns, que se manifesta no modo de abordar e de experimentar o mundo, mas que nada tem a ver com critérios de verdadeiro ou falso, de realidade ou de alucinação. É o tempo que é ocioso e encantado para as “crianças de domingo”, mas vulgar e disciplinado para restantes pessoas. O olhar domesticado pela vida comum está livre e sem freios no tempo destas crianças, que é um tempo realmente fruível e verdadeiramente brincável.
Ao longo deste texto falaremos da necessidade de democratizar este tempo, que é livre como tempo brincável, disputando a sua definição com as crianças como centro.
1. Grandes e pequenas disputas de tempo
1.1. “Sonntagkinder”: no curso do tempo e das histórias
As “Sonntagkinder”, ou “crianças de domingo”, gozam de uma espécie de privilégio de atenção, um vínculo especial com a natureza e com o tempo. Para Walter Benjamin não se trata do acesso a qualquer universo alternativo e privado, mas a uma intensidade de atenção que colocaria, particularmente nas “crianças de domingo” e nelas simbolizando todo o universo infantil, a perceção feliz de um universo brincável. As crianças de domingo, as crianças nascidas no tempo liberto de domingo, teriam o dom de entender a linguagem alada dos pássaros. É o tempo liberto do brincar, sem nenhuma codificação que não nasça de si mesmo.
Trata-se de uma fábula antiga evocada por Benjamin e sublinhada por Agamben, pretendendo auscultar a universalidade de “uma língua não escrita mas festivamente celebrada” (Agamben, 2013: 36). Para além do que qualquer pretensão à universalidade possa ter de questionável, esta capacidade natural e libertadora das “crianças de domingo” reclama e acusa o frequente divórcio entre língua e linguagens, códigos e imposições, deveres e disciplinas que ritmam o tempo das crianças e, por outro lado, o ritmo natural, lúdico, liberto e realmente fabuloso apenas pontuável pelo espaço amplo da vida. As crianças de domingo corporizam em fábula o direito de toda a qualquer criança: ao tempo livre, como ao direito de viver plena e autonomamente a sua própria vida.
Em cada vida cabem muitas histórias, onde cabem por sua vez muitas personagens. Dentro de uma história e fora dela, os caminhos de uma personagem, seja ela empírica ou ficcional, são múltiplos e insondáveis. Cada personagem anda por onde quer e faz o que bem lhe apetece. Nada condiciona os seus percursos e não há delimitações na rota dos sonhos, pelo que cada personagem se reengendra no tempo próprio da sua viagem. Como bem saberiam as “crianças de domingo”, é preciso tempo e liberdade - asas, também - para se entender a linguagem dos pássaros, reconhecendo-se ao mesmo tempo a diversidade imprevisível das suas trajetórias, nas mil personagens que encontram.
Igualmente incalculáveis, deliciosamente imprevisíveis, são também os cruzamentos e interseções entre cada herói ou vilão, entre cada princesa ou animal falante, que saem dos limites da sua história linear para ganharem nova vida no corpo e imaginação de cada um/a, quando entregue a si mesmo/a. E não se trata apenas de uma arbitrariedade solitária e individualista, porque a imprescritível liberdade de cada personagem tende a socializar-se no diálogo horizontal em que se refaz a sua narrativa. Liberdade gera mais liberdade, no tempo livre que gera mais liberdade no tempo, quando cada narrativa que formamos e que nos forma é também a que partilhamos, que nos humaniza e que nos emancipa.
E é quando afunilamos em estreito critério esse feixe de possíveis que tornamos menos livre o tempo outrora livre. É nesse momento que cada personagem regressa à sua própria história, ao país natal do seu autor e à prateleira ordenada do seu lugar na biblioteca. Estreita-se o caminho e determina-se uma moral da história. E aí fechamos o livro da infância
1.2. Quem é o detentor do tempo?
Fechamos o tempo da infância quando o submetemos quase exclusivamente a um conceito externo de tempo. O tempo, como lembra Daniel Bensaïd, é a medida da relação social, medida esta que nunca é rígida nem estanque (Bensaïd, 2013).
A expressão corrente “ter tempo” denuncia o poder desproporcionado de quem aparenta ser o detentor do tempo. Na esmagadora maioria das vezes trata-se de uma expressão adulta e não raras vezes é dirigida à criança, sinalizando um desequilíbrio entre tempos que se não encontram: o tempo medido da pessoa adulta; o tempo requerido pela criança. Quando o adulto afirma “não ter tempo” expressa uma sobredeterminação do tempo do trabalho e da produtividade, que não se compadece com o “tempo livre” que caberia à criança. Na verdade não é a pessoa adulta que “tem tempo”, já que este não é sua propriedade sob nenhum ponto de vista. O tempo apresenta-se-lhe como uma medida organizada por outrem e imposta de modo invasivo ao seu tempo de vida, marcado no relógio e submetido ao fiel soberano que é o tempo produtivo. Mesmo que em espaço doméstico, fora de horário de trabalho, o/a adulto/a não tem tempo, já que a hora morta apenas interrompe ou concede um momento de respiração ao tempo valorizado, marcado e medido. O relógio, que já Marx, em carta a Engels, tinha qualificado como “o primeiro autómato” (Cit Bensaïd, 2013: 111), é a máquina que possibilita o predomínio do tempo linear, do tempo cronológico que se mede no concreto, que se impõe no abstrato ao ponto de se constituir como uma espécie de propriedade, que se tem ou não se tem.
O terreno da ordem e da regulação atinge o centro nevrálgico do tempo em que se conta uma história, que vai mudando e manipulando a sua finalidade moral ao sabor do tempo dos adultos. O/a adulto/a é o detentor do livro, da voz narrativa e do próprio tempo. É o/a adulto/a que tem ou não tem tempo. Mas nem todo o tempo é redutível a esta espécie de propriedade, pelo que deve discutir-se pelo menos um contraponto. Na disputa do tempo, que não é só uma disputa pela distribuição do tempo mas talvez especialmente uma disputa pela definição do tempo, há que contar com o tempo não contável: o tempo do brincar, o tempo da narrativa, o tempo que envolve a língua dos pássaros.
Na ideia de que se tem ou não se tem tempo, que o tempo é uma propriedade que se entrega, que se dá ou que se adquire, que se ganha ou que se perde, condiciona-se a sua experiência para o reino do que é planificável. A questão é vasta e merecedora de uma atenção mais demorada, pelo que nos limitaremos a canalizá-la para a questão que aqui nos preocupa mais diretamente. Quando, desde antes do nascimento, se coloca a quase totalidade da vida da criança sob o desígnio de uma ideia planificável de tempo, o que está em causa é uma usurpação do tempo e da capacidade de cada um/a em geri-lo. O tempo é a propriedade aparente da pessoa adulta que, ela própria sujeita à invisível imposição do relógio, distribui o tempo, impõe o seu tempo, gere de forma direta ou indireta a imposição dos ponteiros do relógio, apresentando-os à criança sob várias formas.
1.3. A lua anuncia? Tempo e experiência ou o excesso sobre a planificação
Na sequência da sua crítica ao predomínio da razão instrumental, responsável silenciosa por tantos flagelos ao longo da história recente, o filósofo Max Horkheimer recorre a um exemplo apoiado por uma pequena narrativa. Conta-nos que uma determinada criança, ao olhar para o céu em noite enluarada, pergunta ao pai o que estaria a lua a anunciar. O seu olhar condicionado pressupõe, na expressividade da clareza noturna, que a lua teria necessariamente algo de concreto a dizer. É essa busca do concreto, esse pressuposto informativo na contemplação da natureza, que coloca esta criança como o oposto imediato das nossas benjaminianas “Sonntagkinder”. Horkheimer relata, na preocupação da criança, a tendência generalizada de uma razão moldada pela técnica e sedimentada nas sociedades industriais, que se sobrepõe ao valor intrínseco da experiência de uma noite de luar. É nessa sociedade que as pessoas, embora não perguntem necessariamente o que a lua anuncia, “tendem a pensar nela em termos de balística ou de milhagem aérea” (Horkheimer, 2015: 113).
Caracteriza-se, nesta breve alegoria, a subjugação da vida a uma razão causal e planificada, de onde decorre também a generalizada obediência para com a minoria que planeia (107). Mas denuncia-se principalmente a atuação de uma razão adaptativa, que reduz ao planificável todas as possibilidades do humano, toda a experiência. A experiência da tal criança que ouve e celebra a língua dos pássaros não é comparável à experiência da criança que se dirige à voz autorizada do pai para perguntar o que a lua anuncia. É livre o tempo das “Sonntagkinder”, por oposição ao tempo que pressupõe um sentido concreto ao plano da experiência. Estas duas crianças não fazem a mesma experiência do tempo, quando a “criança de domingo” se estabelece na liberdade de um tempo sem medida e a outra progride no tempo mensurável e cronológico que é o tempo planificável do trabalho. Enquanto a primeira se dá à experiência, dando-se ao acontecer não mensurável da palavra experiência enquanto algo que sucede, que nos atinge no tempo e que nos sobrevém (Pereira, 2015: 68), a segunda procura conter a experiência nos limites planificados da razão, tal como a ciência moderna ditou à educação e à disciplina.
Daí que falar de tempo livre na gestão do tempo force muitas vezes a tónica do discurso mais para o lado da gestão do que para o lado do tempo, como se este fosse essencialmente gerível. O tempo desencontra-se da experiência na planificação, na muito contemporânea obsessão do planeamento. Ou, mais rigorosamente, o tempo da planificação limita a experiência ao que é planificável, como se a vida fosse calculável e como se uma manifestação da natureza fosse traduzível num enunciado, como algo concreto para se dizer. As crianças estranham que pessoas grandes (só em tamanho), decidam calendarizar e contabilizar os seus tempos lúdicos, as suas brincadeiras.
Como se, no reino do tempo contável, a lua tivesse algo a anunciar.
1.4. Liberdade ou lazer?
O critério da medição do tempo tem sido, nas sociedades modernas, um instrumento fundamental de determinação de ocupações (Foucault, 2007: 128). O tempo medido dimensiona e segmenta a totalidade da experiência humana, convertendo tempo de vida ou tempo livre em formas acessórias do tempo produtivo do trabalho. Este é também um tempo determinado de fora, um tempo prescrito, transformado em mercadoria gerida e comercializada. Nas crianças, esta tendência totalitária do tempo concretiza-se na sua captura pelos/as adultos/as, que o gerenciam e procedem sobre ele como veículos únicos de significado, tal como expressa o exemplo do luar para a criança de Horkheimer. Vexando de forma habilidosa o que se consigna no Artigo 31º da Convenção dos Direitos das Crianças, o relógio dos/as adultos/as limita qualquer possibilidade de tempo autogestionado pelas crianças quando “conduzem a criança para a atividade produtiva (para o trabalho útil) desde a sua mais tenra idade” (Araújo, 2020: 256). As crianças vão à escola para trabalhar não para se divertirem. Ninguém felicita uma criança por brincar bem.
Seja do ponto de vista filosófico quanto no sociológico ou político, a contemporaneidade permitiu uma necessária desconfiança para com o predomínio do tempo marcado do relógio como definição predominante para o nosso existir no tempo. O tempo cronológico é o tempo dividido em unidades de medida (horas, minutos e segundos) pelos ponteiros do relógio, por calendário ou por estanques delimitações entre passado, presente e futuro. Em mais do que um registo teórico e com desenvolvimentos diversos, a desconfiança para com o tempo de Cronos, materialização do tempo mensurável, em detrimento do Kairós, personificação do tempo pleno, tornou-se recorrente. Cingindo-nos ao curioso fragmento de Benjamin a que temos aludido, a virtude das “crianças de domingo” não estaria numa característica específica de perceção, mas numa forma outra de estar no tempo - de exceder o tempo cronológico rumo a um outro lado do tempo. Trata-se da radicalidade do tempo plenamente vivido e experienciado, na radicalidade de um tempo kairológico (Nídio, 2012), qualitativo e relacional. É precisamente a radicalidade desse tempo kairológico que cedo se subjuga à cadência cronológica do tempo do trabalho.
Torna-se fundamental assumir a irredutibilidade entre tempo de vida e tempo de trabalho, mais do que lhes garantir uma separação momentânea ou estratégica. Esta distinção, por frequente que seja, traz associada a tentação da ordenação hierárquica, num tempo planificável e sujeito ao fiel de uma medida em que, fatalmente, o tempo indócil de vida se subjuga ao tempo aparentemente docilizável do trabalho. Mesmo que, por hipótese otimista, recaia uma fatia generosa de preocupação para o lado do “tempo livre”, esta surge como uma ferramenta de produtividade e de sobrevalorização do tempo do trabalho, numa relação visível no recorrente argumento segundo o qual o trabalho rende mais após descanso. A liberdade do tempo, na vida plena do descanso, cede denunciadamente o terreno ao descanso retemperador, que coloca o ócio ao serviço do negócio. O sentido último, do descanso como da própria vida, não existe fora do trabalho (Antunes, 2013: 176) e o próprio “tempo livre” converte-se realmente em “tempo de lazer”, isto é, um tempo que não é realmente livre na medida em que é “administrado pelos negócios e pela política” (Marcuse, 1973: 62).
Como se o próprio lazer fosse um elemento de uma planificação urdida pelo trabalho, nunca abdicando de uma finalidade exterior - de uma moral da história.
1.5. Moral da história ou do mercado?
Sabe-se que o final de uma história muda muitas vezes, disputa-se frequentemente. Desde sempre as crianças ouviram histórias e partilharam narrativas que, mediadas pelo seu tempo, pelo interesse ou pela conjuntura, iam mudando engenhosamente rumo ou conclusão ao sabor das conveniências. A esmagadora maioria da produção cultural destinada a crianças denuncia a sua origem adulta na recorrente conclusão moral - a dita “moral da história”.
É esta “moral da história” que não permite a livre deambulação das personagens, que impede o trânsito das histórias mais nómadas, que recusa a linguagem dos pássaros em detrimento de uma conclusão que traz água no bico. Os exemplos sucedem-se e histórias comuns, vulgares algumas, outras maravilhosas, deixam-se tomar pelas tendências do tempo, de quem narra - pelo/a adulto/a, a maior parte das vezes. Há sempre a verdade como virtude na extremidade do nariz de Pinóquio, como o elogio da diversidade na conclusão do Patinho Feio. No centro de uma sociedade de produção, claro está, a antecipação das formigas exalta-se sobre o ócio das cigarras e Walt Disney, um dos protagonistas do processo de censura e de perseguição que, nos EUA, ficou conhecido como “caça às bruxas”, coreografou imaginários reapropriando contos e histórias antigas no sentido da naturalização do conformismo ou da desigualdade de género. Provavelmente alguma retórica em torno dos Direitos Humanos e dos Direitos das Crianças, tanto no cenário geopolítico quanto na montra às vezes efusiva dos quotidianos e contextos educativos, sofreu desde sempre e sofre ainda no presente desta maleabilidade perversa, que contamina tendenciosamente o final moralizante de todas as histórias contadas.
Reconhece-se a desarticulação entre o idealismo bem intencionado dos Direitos Humanos e todas/os que não lhes conseguem aceder, no processo que Hannah Arendt identificou como um dos grandes paradoxos da política contemporânea (Arendt, 2018: 370). Estes Direitos, designem-se estes Direitos por Direitos Humanos ou por Direitos da Criança, na medida em que limitam a sua vigência à lógica de uma determinada configuração comunitária, excluem e invisibilizam todos/as os/as que não caibam no interior dessa comunidade. Como esclarece Arendt, a “privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação eficaz” (392-393). É esse desenraizamento que torna a profusão de práticas e de discursos em torno dos Direitos mais uma redenção de quem os veicula do que uma salvaguarda concreta de quem deveria detê-los. É esta característica que os convoca frequentemente para uma apetecível moral da história em que a norma vigente é celebrada, como que exaltada numa espécie de fim da história, mais do que uma força de transformação do tempo. Não é de admirar, por isso, que tenhamos assistido a uma forte institucionalização dos Direitos Humanos no seio das sociedades neoliberais, constituindo-os como braços ideológicos do capitalismo, numa espécie de “moral de mercado” (Whyte, 2019).
O processo de despolitização dos Direitos Humanos e sucessiva inscrição no plano moral permitiu a harmonização da sua defesa com as lógicas do livre mercado da globalização neoliberal. Simultâneos ou mesmo tidos por complementares, os Direitos Humanos e o Neoliberalismo económico formaram eles próprios a conclusão moral de um modelo de sociedade em que a ideia de proteção individual e coletiva, branca e eurocêntrica, associa-se às dinâmicas do mercado e amacia, formal ou simbolicamente, os efeitos sobre seus desvalidos e desvalidas. A defesa institucional e frequentemente desenraizada dos Direitos Humanos constitui-se como uma espécie de “moral dos mercados” (Whyte, 2019: 239) e como estratégia narrativa para a normalização do status quo. Os Direitos, tantas vezes ornamentos discursivos sem base concreta, são elementos estratégicos para compor uma “moral da história” em que o poder se naturaliza e reforça. Quanto às crianças, a limitação da linguagem dos Direitos - da retórica dos Direitos, na verdade - é manifesta, ao não encarar de frente, de modo concreto, participado e ativo, os problemas efetivos das crianças e a sua capacidade em enunciá-los (Araújo e Monteiro, 2020: 9).
Tal como as “crianças de domingo” não vivem na alucinação do universo paralelo, mas tão só na liberdade da perceção de um outro tempo, também aqui não se trata de uma alternativa, mas da contraposição permanente de dois tempos antagónicos. Tempo de trabalho e tempo livre confrontam-se e interpenetram-se, sendo o predomínio do tempo de trabalho nas sociedades de produção uma questão de particular relevo no plano educacional. Neste pressuposto, a escola aparece como o primeiro grande mercado que legitima a vida das crianças (Lahire, 2019:35). O trabalho, de acordo com a tradição, classifica-se a nível superior, como um dever moral e um fim em si mesmo; o lazer a nível inferior como preguiça e indulgência (Elias e Dunning, 2019: 165).
Direito ao tempo livre, sendo no trabalho que reside a verdadeira moral da história. E do direito ao tempo livre e ao brincar faz-se letra morta, senão mero faz de conta.
2. Redefinir e democratizar o tempo (livre)
2.1. Almas de um negócio?
O(s) tempo(s) das primeiras formas de socialização das crianças tem um papel decisivo na formação do pensar, sentir, agir e apreciar os tempos da sua infância - em que predomina o tempo livre - e pode condicionar as suas vidas para sempre. Não sendo neutros, os dispositivos de socialização podem constituir-se como recursos nomeadamente económicos, culturais, educativos (Lahire,2019: 13). As crianças enquanto atores sociais da sua própria socialização, co-construtoras dos seus saberes lúdicos e criativos vão percebendo o mundo no diálogo com outras crianças e com os adultos. Mesmo sem pensar nisso vão dando sinais de autonomia quando reclamam participação, quando resistem e insistem em dizer o que pensam, quando perguntam ou quando interrompem os adultos para reivindicar igualdade de oportunidades no usufruto do tempo livre. Esta procura de um tratamento mais justo é a base constitutiva da identidade de cada um e de cada uma. É também um movimento pouco consonante com os ponteiros do relógio e pouco respeitador da sua cronometragem disciplinada, ainda que recaia nas condições concretas de desigualdade de cada um e, principalmente, de cada uma. A realidade de cada criança é muito específica e particularmente difícil para as raparigas, que aprendem desde cedo a cumprir o papel a que estão ‘destinadas’. O trabalho das mulheres, que trabalham “como mulheres”, estende-se a diferentes contextos sociais e educativos e reflete a depreciação sistémica do trabalho feminino no capitalismo (Peniche, 2018: 79).
Há então que reconhecer que são várias, distintas e tentaculares as formas de virar as costas à tal língua dos pássaros, em nome da linguagem da produção-reprodução. As crianças ajudam os pais nas atividades produtivas desde muito cedo: em casa, no campo, na loja, na feira, no restaurante, no voluntariado, nos pequenos negócios dos pais ou avós e interiorizam o modelo social hegemónico. Um modelo que se reproduz em muitos contextos de educação escolar: nos projetos educativos, nas atividades extra-escolares e de enriquecimento curricular, mas também nas brincadeiras em muitos Jardins de Infância em que as possibilidades de ‘imitação’ e aculturação do mundo adulto se fazem sentir (Araújo, 2017). As instituições dedicadas ao trabalho com crianças sentem necessidade de organizar atividades diferenciadas que possam ir ao encontro dos interesses lúdicos das crianças, de modo a que esse tempo possa ser de mais qualidade do que seria se as atividades não existissem. Mas, as atividades organizadas e dirigidas pelos adultos induzem comportamentos idênticos para todos, sem autonomia, e afastam-se da livre expressão e criatividade própria de cada criança, (Périno, 2008; Araújo, 2020). Legitimado pelo discurso de que as crianças gostam e os pais precisam de apoio social porque estão a trabalhar, o modelo atinge o seu auge nas estratégias de marketing para o consumo de brinquedos, jogos, puzzles, entre outros objetos disponibilizados nos escaparates das lojas (também online), dedicadas a este nicho de mercado. O negócio do ócio da infância não é uma coisa de pequena importância e o negócio dos brinquedos não é uma brincadeira (Soares, 2009). Os bens de consumo destinados às crianças são abundantes, quer no espaço social, quer familiar, e são um fenómeno que foi amplamente analisado por Baudrillard (1970) mas também por Barry e Furham (1998).
À medida que se vão afirmando na(s) família(s) e no espaço social, vão crescendo os jogos educativos (jogos pedagógicos), livros, kits de bricolagem e pintura, roupas, mobílias, gimmicks, entre outos artefactos que, desde o final do séc. XVIII, anunciam um desenvolvimento de estratégias de mercado para os lazeres das crianças (Renonciat, 2017:36). Qualquer objeto de brincar, como qualquer narrativa, pressupõe um brincador ou leitor ideal que seja um colaborador, a exemplo do que referia Umberto Eco (1994) a propósito do Leitor-Modelo.
2.2. De quem é o mundo?
Nesta atividade produtiva (e de sobrevivência) a criança é olhada como uma pessoa que nasce no mundo dos adultos e a ele se deve adaptar. Mas a criança nasce num mundo onde já existem outras crianças: não nasce num mundo-propriedade dos adultos. À medida que vai crescendo interage com diversas gerações de pessoas com culturas diferentes, não se limitando a imitá-las. Os processos de apropriação, reinvenção e reprodução das culturas realizadas pelas crianças com o seu grupo de pares e com os adultos requer consideração.
Nas brincadeiras, nomeadamente quando brinca ao ‘faz de conta’, a criança interioriza diferentes papeis e interpreta-os agindo em função do que vê, ouve, descobre e sente. A criança no centro do processo, uma vez no seu elemento primordial, não se limita a interiorizar e adaptar - antes apropria, interpreta e renova. Aqui a abordagem interpretativa (Sirota, 2001) é muito diferente do modelo clássico proposto por Durkheim (1998), que enfatizava uma socialização cujo protagonismo era dos adultos sobre as crianças, predominando a ação de uns sobre os outros. As crianças não exercem plenamente os seus direitos porque são dependentes e, portanto, parece ser a sua ‘independência’ e a afirmação da sua ‘autonomia’ o que está em questão, o que falta para que possam ser reconhecidas como crianças, como seres políticos, com direitos (Tisdall e Liebel, 2008).
Coloca-se, então, no caso português e no respeito pela ‘liberdade’ conquistada com a Revolução dos Cravos, uma questão: a adequação de um modelo político de uma organização social que veicula aspirações democráticas, que a realidade contraria (Araújo, 2007). O direito ao tempo livre não foi ainda conquistado verdadeiramente e a análise sociológica tem vindo a pôr em evidência que as aspirações das crianças sofreram um revés. O tempo de ser criança, como tempo irrepetível em que escolhemos, por direito, o que fazemos e como o fazemos, foi institucionalizado (Araújo, 2020).
Para muitas crianças, aos diferentes constrangimentos sociais, culturais, parentais, financeiros e geográficos, juntam-se as conceções politico-ideológicas dos diferentes Estados. Neste caso, retomamos a preocupação de Lahire (2019) ao referir que as desigualdades entre as crianças são regularmente medidas e comentadas, por vezes denunciadas, mas politicamente desconsideradas, como se não tivessem consequências humanas. Ao mesmo tempo que se começa a dar mais atenção à criança, começamos a tentar dominá-la, impondo regras que limitam a sua margem de manobra. As crianças convivem com os adultos, vivem num mesmo momento, numa mesma sociedade, mas não no mesmo mundo (Lahire, 2019:11). Neste caso, negócios à parte, de quem é o mundo?
2.3. Repousar a cabeça, quando tudo o resto falha
Como já fomos referindo ao longo deste texto, o critério para a participação das crianças cinge-se aos aspetos técnicos e institucionais, não tanto às questões políticas, o que deixa em aberto um significativo número de crianças (pobres e marginalizadas) que, sob a capa da proteção, continuam a ser limitadas na sua participação e a ver os seus direitos restringidos. É necessário considerar politicamente o discurso da criança que, enquanto sujeito político particularmente menosprezado é afastado de todas as decisões de todas as ágoras do mundo (Monteiro e Araújo, 2014: 84). Precisamos de vontade política na medida em que as crianças só conseguem participar plenamente quando crescem e deixam de ser crianças (quando votam), quando saem do espaço privado para o público e do local para o global, (Hart, 2008). Como lembra O’Kane (2007), aos níveis meso e macro, parece haver, a partir das diferentes instâncias internacionais, um avanço significativo mas, ao nível micro, os esforços têm sido insuficientes, o que pode querer dizer que aqueles que convivem diariamente com as crianças são os que mais inibem as suas práticas espontâneas - nomeadamente o brincar no tempo livre -, e a forma como as crianças usam e exercem os seus direitos (Araújo, 2020).
Num estudo sobre a impiedosa desigualdade de oportunidades entre as crianças, Lahire (2019) enfatiza que nenhum estudo pode prescindir do reconhecimento das culturas de resistência quotidiana e do contributo daqueles que mais sabem das suas vidas. Conta-nos que um jovem imigrante cingalês, habituado a ouvir música, a dançar, cantar e ler, deixou de pensar em lazer quando chegou a França e a vida o atraiçou: sem trabalho, sem documentos, sem dinheiro, sem casa, a precariedade e a falta de trabalho ocupava todo o seu pensamento (Lahire: 156). As tensões e conflitos dos grupos em violência aberta, não estimulam a excitação que o lazer propõe, como referem Elias e Dunning (2019), exceção feita às crianças que, apesar das dificuldades, brincam. Brincam continuamente. No maior caos é o brincar e as brincadeiras que garantem a sobrevivência. Sobrevivem na desigualdade de circunstâncias e, por vezes, nas mais duras condições brincando e sonhando com mundos mais justos, com mundos melhores. Descansam do rude quotidiano, distraindo-se dele. Se não fosse assim, provavelmente morreriam. É preciso repousar a cabeça quando tudo o resto falha (Muradov, 2018).
Em síntese
Para uma definição de tempo livre… tendo as crianças por medida e referente. O título proposto não dissimula uma contradição quase fatal. Trata-se de um título que, prometendo ter as crianças por medida e referente, é, todavia, assinado por dois autores adultos e orientado pela maturidade das normas e convenções científicas. Esta contradição possível investe-se menos de ironia, por legítima que esta seja, e mais na reafirmação de uma cultura crítica nutrida e motivada na “tempestade dos sonhos da infância” (Hurtado, 2018: 12). Sintetizando alguns passos e encaminhando uma conclusão:
O jogo e o ato de brincar, não se podem confundir com outras atividades: nem atividades escolares reprodutivas, nem lazeres dirigidos, nem atividades ocupacionais. Tal como dormir, amar ou estudar - exigem a ação e adesão voluntária -, o brincar exige a liberdade de brincar ou não brincar, interromper, começar e recomeçar e somente quem brinca o sabe fazer (Perino, 2008:17). Apesar dos protestos (de alguns adultos), para que a brincadeira seja ordenada e disciplinada a brincadeira, na verdade, sobrevive no seu espaço de imprevisibilidade (Brougère e Dauphragnes 2017).
O imprevisível é o não planificável, o que foge do roteiro, o que foge do caderno de encargos imposto ao “o que fazer” de uma agenda. É esta imprevisibilidade que caracteriza o tempo não mensurável e contra-institucional que, nas crianças, se concretiza na liberdade do tempo livre, mas que também no adulto se deveria instalar como um quase extinto direito ao “nada se fazer”. Este “nada se fazer” distingue-se do lazer como retoma de fôlego para o tempo do trabalho e não é um mero tempo vazio: é o tempo da contemplação, da humanização, da fruição… da linguagem alada dos pássaros.
O relógio é muito mais do que uma metáfora. Como ferramenta que permitiu regular e levar à prática uma conceção mecânica do tempo, sem nenhum referente natural, o relógio foi “o primeiro regulador autónomo” (Musso, 2017: 219-220). Com ele se instala progressivamente um tempo institucional que se sobrepõe e determina ao tempo comunitário, ao tempo individual e ao tempo livre. Primeiro ao bater do sino dos Mosteiros e ao ritmo litúrgico das ordens religiosas , mas aos poucos secularizado nas fábricas, nas oficinas, no trabalho e na escola, impõe-se a língua do trabalho à linguagem dos pássaros.
Sair do controle do relógio, da segurança aparente do condomínio fechado ou do resguardo artificial do tempo ocupado é, por isso, um imperativo mais do que uma alusão e um direito mais do que um privilégio. As “crianças de domingo”, redefinindo a partir de si mesmas as novas margens do tempo, devem generalizar-se em todas as crianças, excedendo roteiros e subvertendo calendários.