“Self-referential autonomy on the level of individual societal subsystems was first established in the seventeenth and eighteenth centuries. Previously, the religious positioning of the world occupied this functional site. Perhaps one can say that the reference to God intended in all experience and action functioned as the secret self-reference of the societal system. One said, perhaps, that without God’s help no work could succeed. Societal as well as moral demands were fixed thereby. But the religious semantics was not formulated as society’s self-reference; it was (and still is) as other-reference, as transcendence”.
Niklas Luhmann (1995: 461)
“Como é a sociedade possível?” Esta interrogação, formulada por Simmel (1910) é reiterada décadas mais tarde por Alain Touraine (1997) que, de igual modo, questiona como é possível vivermos juntos, numa sociedade cada vez mais complexa, multicultural e transnacional. A sociedade moderna contemporânea é caracterizada pela segmentação, complexidade social e heterogeneidade cultural e, segundo Luhmann (1995), resolve problemas através da diferenciação funcional. A religião é, nesta perspetiva, uma fonte de constrangimento para aqueles que pensam em termos de sistemas autopoiéticos, isto é, que os sistemas, nomeadamente o religioso, possuem a capacidade de se produzirem a si próprios sem aumentarem a sua complexidade interna.
A liberdade individual de pensamento, progressivamente em processo de reivindicação e afirmação, desde as raízes da modernidade, abriu uma infinidade de visões de mundo. Como refere Peter Berger no Postscript do livro em sua homenagem, ualquer realidade social "objetiva" é o resultado da externalização contínua dos significados humanos - de facto, um fenómeno altamente dinâmico” (Berger, 2001, pp. 197). O autor ressalva, contudo, que já no primeiro livro com Thomas Luckmann é sublinhado o reconhecimento de que nem todas as definições da realidade são igualmente vigorosas e influentes. A religião é assim entendida como uma construção social (Berger e Luckmann, 1985; Beckford, 2003) e é nesse quadro que importa ter em linha de conta a questão das negociações e lutas dos grupos religiosos pelo alcance de uma posição legítima na sociedade. Nessa medida, o estatuto concedido às instituições religiosas é um dos aspetos mais relevantes a ter em consideração. Por essa razão, o Estado deve ser considerado um ator crucial devido à sua autoridade para fornecer (ou recusar) oportunidades publicamente visíveis para a tipificação das populações segundo categorias religiosas e para fortalecer a legitimidade de certos atores como representantes de comunidades religiosas. Na modernidade tardia, a regulação pública da religião constitui uma tarefa mais e mais desafiante para o político e o legislador e uma das estratégias adotadas passa pela limitação formal dos horizontes da diversidade religiosa. O procedimento nem sempre é pacífico porque geralmente não está de acordo com a autocompreensão das religiões nem dos seus seguidores, cujas crenças lhes oferece uma visão do mundo abrangente e não compartimentada1. Enquanto universo simbólico, a religião surge como um conjunto de crenças que visa tornar a estrutura institucionalizada plausível e aceitável para o indivíduo, fornecendo explicações acerca do modo como agir (Berger e Luckmann, 1985, pp. 134-140). Em vista disso, não apenas as religiões, mas também os mitos, sistemas de valores e restantes universos simbólicos são formas (mais ou menos sofisticadas) de legitimar instituições estabelecidas. O universo simbólico também ordena a história das instituições e as biografias individuais pois comporta memórias partilhadas, eventos presentes que as reproduzem, e projetam o futuro (Berger e Luckmann, 1985, pp. 140 e 136), estabelecendo uma ordem coesa e um universo de significação. A realidade social de hoje, em especial no Ocidente, carateriza-se pela coexistência de múltiplos universos simbólicos (religiosos e seculares) resultante de uma heterogeneidade cultural exponenciada pelas relações à escala global. Inevitavelmente, e à semelhança do que acontece noutros subsistemas, o confronto com tantas plausibilidades de significação gera um ambiente de elevado dinamismo dentro do sistema religioso, traduzido pela tolerância relativamente à heresia, trânsito intra e interreligioso, negociações dentro de um mesmo grupo religioso, entre instituições e atores religiosos diferentes e destes com outras instâncias societais, nomeadamente com o Estado. Numa sociedade diferenciada em componentes de interesses segmentados, um grupo religioso, que está numa posição minoritária num determinado contexto, pode referir-se a outros contextos em que o grupo está numa posição maioritária. Simultaneamente, uma maioria religiosa nacional e culturalmente dominante - como é o caso do catolicismo em Portugal e em Espanha - é incitada (ou mesmo obrigada) a colaborar ou dialogar com visões do mundo minoritárias, o que pode gerar tanto conflitos como cooperação. Public Religion in the Modern World (Casanova, 1994), representa uma importante contribuição para as discussões sobre religião na esfera pública, dado que Jose Casanova questiona a privatização da religião como consequência da diferenciação funcional, procurando sustentar empiricamente o processo de “desprivatização”, que eclodiu, em vários pontos do globo, na década de oitenta do século passado. Também a partir dessa data, a economia política neoliberal tornou-se dominante e teve relevantes consequências nas instituições religiosas e na crença, prática e expressão religiosas em todo o mundo (Gauthier, Martikainen e Woodhead, 2013 pp. 1). Por outro lado, a intensificação da globalização (a tónica no binómio local versus global) fez com que as fronteiras nacionais se tornassem mais porosas. O consumismo e as lógicas de mercado projetaram-se na religião exponenciando as escolhas e as mudanças de trajetórias individuais e, em muitos casos, a “acomodação”, sem reflexividade, das instituições e atores religiosos à sociedade. A este propósito, Luhmann estabelece uma distinção -operatória para o estudo da religião - entre acomodação e reflexão. Através da reflexão, o sistema (religioso) identifica-se a si próprio tendo como referência o mundo e considerando-se parte dele; enquanto se opta pela acomodação, o sistema opera transformações na sua estrutura por força das mudanças que ocorrem no ambiente e as pressões que daí advêm (Luhmann, 1984 pp. 97). O dossiê constituído permite uma abordagem multímoda do religioso no quadro das dinâmicas da modernidade, que nos parágrafos anteriores procurámos traçar de modo sumário. A leitura cruzada destes estudos mostra como o conhecimento do objeto «religião» se enriquece no jogo de escalas diversas de observação. O conjunto dos artigos apresentados oferece-nos uma visão multiscópica do religioso, tanto nas dimensões mais estruturais das sociedades, quanto nos seus lugares intersticiais. Com especial destaque da realidade social portuguesa, este número da Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto dá nota da natureza caleidoscópica do fenómeno religioso através de um conjunto de artigos que abordam contextos religiosos com diferentes níveis de institucionalização e com relação e interação com outros domínios societais, como a educação, o político, o jurídico, o cultural, ou o sistema prisional. Desta forma, providencia elementos para a reflexão sobre o nexo do sistema religioso com o seu ambiente e eventualmente sobre equivalentes funcionais do religioso. Os textos que materializam este número caraterizam-se também pela diversificação religiosa, não se cingindo, por isso, ao catolicismo, que permanece maioritário em Portugal e na Espanha, e é aqui analisado segundo diversas lentes e territórios. São também escrutinados fenómenos minoritários como é o caso de atores do campo evangélico e a presença das espiritualidades de origem oriental em espaços sob a gestão estatal. Mar Griera apresenta os resultados de um estudo etnográfico sobre a prática de yoga em unidades prisionais. A investigação tem como terreno um importante espaço institucional da modernidade, mas com um particular interesse pelo estudo das espiritualidades holísticas. Reconhecendo que a maior parte da investigação empírica sobre este objeto se tem concentrado num perfil - mulheres brancas, classe média, urbanas, no mundo ocidental -, a investigadora elege o foco da masculinidade, tendo em conta a ausência de estudos neste domínio. Pretende-se aceder a uma compreensão sociológica do lugar das práticas de espiritualidade holística, num ambiente prisional dominado por homens da classe trabalhadora, e caraterizar a forma como estas práticas contribuem para o incremento de mudanças no domínio das autorrepresentações de masculinidade. As relações entre dinâmicas religiosas e dinâmicas do território são um laboratório privilegiado para o conhecimento da religiosidade contemporânea. Partindo dos resultados de dois inquéritos realizados na cidade de Coimbra (2014 e 2021), Margarida Franca e Clara Almeida Santos exploram os traços que caracterizam a multiterritorialidade das comunidades católicas, em contexto urbano, dando prioridade ao estudo da sua adaptabilidade numa situação de crise da saúde pública. Merece uma particular atenção o estudo das modalidades de comunicação e de sociabilidade digitais, neste contexto de condicionamento das habituais práticas comunitárias. É ainda a dinâmica dos territórios que se situa o artigo de Cátia Tuna, aqui na perspetiva das culturas urbanas. A investigadora apresenta os resultados do seu estudo sobre alguns aspetos da cultura Hip Hop. O dossiê de estudo é constituído por entrevistas a cinco rappers que pertencem a comunidades evangélicas, residentes na Grande Lisboa, e pelos resultados da análise compreensiva das letras das suas canções. Na sua análise, descobrem-se itinerários de construção das identidades que mobilizam uma dupla pertença: a rua e a igreja. A partir de uma observação de proximidade, a investigadora apresenta um contributo relevante para a constituição de um mapa de ideias religiosas em territórios urbanos e periurbanos. A modernidade religiosa caracteriza-se pela emergência de diferentes campos especializados, com lógicas de ação diferenciadas. Os itinerários de reconfiguração do campo religioso, no contexto das tensões e das transações com outros campos socais, apresenta-se como um dos desafios proeminentes para a Sociologia da Religião. Assim, Luís Pais Bernardo apresenta os resultados do seu estudo, no período de 2001 e 2009, em Portugal, sobre as interações entre Estado, organizações e comunidades religiosas, num terreno específico: o campo da saúde. Trata- se de identificar os contornos próprios de um regime de secularidade, público e biomédico, e de caraterizar as modalidades de negociação e mediação que acompanham as iniciativas de assistência religiosa e espiritual em dispositivos do Serviço Nacional de Saúde, num período de estabilização de novas instituições que operacionalizam, no quadro da Lei da Liberdade Religiosa, um modelo de laicidade mediadora. A escola é certamente outro dos lugares proeminentes da institucionalidade moderna. Em diversos contextos históricos e geográficos, a par da família, desempenhou um importante papel na reprodução de mundividências religiosas. A existência de estruturas de ensino religioso em muitos sistemas educativos - no universo do norte-atlântico, marcado historicamente por diversas dinâmicas de laicização e secularização -, é um facto pertinente para a indagação sociológica. Nos diversos contextos, a presença da religião nas estruturas curriculares de ensino público depende da história religiosa de cada uma dessas sociedades mesmo. Tiago Pinto oferece um contributo para uma compreensão sociológica deste contexto, na sociedade portuguesa, a partir de um estudo situado. Apresentando os resultados da sua investigação sobre as atitudes e representações de professores de Educação Moral e Religiosa Católica, em escolas públicas do concelho do Porto, relativas aos conteúdos programáticos das disciplinas. O artigo permite descobrir, nesse terreno, uma particular tensão entre a definição estatutária da disciplina - enquanto ensino religioso católico nas escolas - e a sua situação social, moldada pragmaticamente pela necessidade de responder ao pluralismo, quanto facto e representação