1. Introdução
A Sociologia, enquanto ciência, interessa-se pela observação da vida social. No entanto, fruto de constrangimentos de tempo nas investigações em curso, bem como de uma maior dificuldade de validação de dados recolhidos com recurso a metodologias qualitativas, as técnicas de observação sãos, com regularidade, substituídas pela aplicação de inquéritos por questionário e, em alguns casos, por entrevistas. Neste quadro, a Sociologia tem perdido a capacidade de capturar as práticas sociais em tempo real, as quais, em face dos desafios contemporâneos, complexos e intrincados nas múltiplas dimensões da esfera social, originam problemáticas sociológicas, também elas dotadas de complexidade, que são difíceis de captar sem uma observação fenomenológica (Arborio, 2007). A observação pode ser considerada a base para a compreensão da vida social quotidiana, uma vez que todos somos observadores de “comportamentos” (entendendo o conceito enquanto comportamento social e/ou humano, ou seja, com ou sem interação com outrem) e, simultaneamente, objetos dessa mesma observação. A esta interação interpretativa mútua entre as ciências sociais e as atividades que constituem o seu objeto de estudo, Giddens (2013) chama de “dupla hermenêutica”.
De entre os desafios contemporâneos mais prementes, os socioambientais têm ganho maior expressividade e atenção por parte da comunidade científica, fruto de um discurso de emergência climática e narrativas de sustentabilidade, de perda da biodiversidade e dos inequívocos impactos na saúde pública e ambiental (Artaxo, 2020). As preocupações ambientais, que se consolidaram na Sociologia essencialmente a partir da década de 70 do século XX, com a chamada era do “Ecologismo” (Seixas, Dias, e Vidal, 2020), foram destacadas pela nova ecologia humana desenvolvida por Catton e Dunlap (1978), a qual se centra na interação entre o ambiente físico, a organização social e o comportamento humano. Apesar de recente, porém, esta consolidação paradigmática da relação humanos-natureza colheu contributos, ainda que de forma latente, dos clássicos da Sociologia.
Karl Marx (2017), na sua obra “O Capital” (1867), referia uma “fenda irreparável” no processo interdependente do metabolismo social, um metabolismo prescrito pelas leis naturais da própria vida, muito relacionadas com o esgotamento do solo e com o “roubo da terra”. Já Émile Durkheim (1893), na sua procura por autonomizar a realidade social, não a consegue isentar, enquanto objeto de estudo, da sua circunstância natural e até explica o desenvolvimento e a mudança, da simplicidade mecânica à complexidade orgânica e respetiva divisão do trabalho e coesão social, por uma “função ecológica” em que território, recursos e comunicações se articulam. Por seu turno, Max Weber (1923) 1991), com a sua Sociologia compreensiva, contribuiu para que a relação humanos-natureza se equacionasse na sua dimensão metodológica, em termos da relação entre ações e valores sociais (Schmidt, 1999).
Perante o agravamento dos desafios socioambientais e a sua relação com a vida nas cidades, afigura-se como necessário que a sociologia e outras Ciências Sociais, sobretudo aquelas que se debruçam sobre o planeamento urbano, deem continuidade à readaptação de técnicas e métodos capazes de responderem a tais desafios. Tal deve acontecer num quadro socioecológico, onde se analise a interação entre os sistemas sociais e naturais (Olmos-Martínez e Ortega-Rubio, 2020), atualmente enquadrados pela era do Antropocénico (Crutzen e Stoermer, 2000). Ora, é nesta lógica que o presente trabalho propõe um olhar sociológico sobre os jardins da cidade através do Mapeamento do Comportamento Humano (MCH) dos seus utilizadores. Acresce a este objetivo uma discussão relevante sobre a possibilidade de se integrar esta técnica , amplamente usada pela psicologia ambiental e arquitetura paisagista, na investigação sociológica. Não se trata de desvalorizar as técnicas até agora aplicadas no campo sociológico, muito pelo contrário. O que se propõe é a integração de uma nova técnica que permita, quando em conjunto com as demais ou em triangulações metodológicas, potenciar os dados recolhidos e analisá-los de forma integrada. Para ilustrar esta proposta, utiliza-se como objeto de estudo o Jardim da Corujeira, na cidade do Porto, exemplificando-se a aplicação do MCH, a par das suas potencialidades, dúvidas e desafios que emergem da sua aplicação, bem como o seu contributo para a revitalização do legado da Escola de Chicago.
2. Enquadramento teórico
2.1 O legado da Sociologia e das Ciências Sociais para o Mapeamento do Comportamento Humano
A conjugação de variáveis sociais e ecológicas para a interpretação de fenómenos sociológicos deriva de um quadro socioecológico, ou seja, da incorporação da relação sociedade-natureza como componente que afeta integralmente a evolução do ecossistema (Fitzhugh, Butler, Bovy e Etnier, 2019; Kluger, Gorris, Kochalski, Mueller e Romagnoni, 2020).
Paralelamente, a Sociologia tem fornecido importantes referenciais que podem ajudar a melhor compreender a relação entre os comportamentos humanos e o meio ambiente, especialmente nos espaços urbanos. Nesse sentido, a Escola de Chicago, que se consolidou no início do século XX, desenvolveu a sua abordagem tendo por base uma Ecologia Humana (Bulmer, 1984; York e Mancus, 2009). Na verdade, e na linha do que Schmidt (1999) refere, pode ser identificada na Escola de Chicago uma “(pré)sociologia do ambiente”, dado o seu importante contributo no reconhecimento do impacto do ambiente físico nas comunidades humanas, ainda que ação humana sobre o ambiente biofísico não seja equacionada. Liderados por Robert E. Park e Ernest Burgess, os estudos desenvolvidos pelos académicos desta Escola resultaram em avanços significativos no método sociológico, nomeadamente de cariz etnográfico e, até mesmo, antropológico, com destaque para o desenho de hipóteses durante a própria investigação, em vez de estas serem definidas à priori. Do ponto de vista teórico, a Escola de Chicago teve particular interesse na forma como o comportamento humano é moldado pelas estruturas sociais e pelos ambientes físicos, influenciados por um certo darwinismo social e pelo conceito de “ecologia” de Ernest Haeckel, que o propôs, em 1866, para designar a ciência que estuda as relações entre seres vivos e meio ambiente (Park, 1915). Esta corrente de pensamento sociológico serviu de mote à exploração e aplicação do mapeamento de pessoas e lugares enquanto técnica de pesquisa da Sociologia Urbana.
Enquadrada pela complexidade inerente ao mosaico sociocultural norte-americano, e entendendo a cidade como um laboratório vivo (Jaynes et al., 2009), a Escola de Chicago cedo percebeu que a disposição de determinados espaços e lugares não derivavam de um processo meramente natural (Park, Burgess, & McKenzie, 1925), mas que se podiam encontrar padrões espaciais que reproduziam comportamentos sociais mais latos. Park foi jornalista metade da vida e conta-se que já como professor universitário todas as manhãs marcava num mapa os crimes que lia no jornal, usando assim a técnica do mapeamento para caraterizar padrões do que na altura se chamava ‘patologia social’ (Breslau, 1990).
Sobre o entendimento das dinâmicas do espaço urbano, Lefebvre (1974) refere que as cidades são uma construção humana, espaço de (re)produção, controlo e dominação, tendencialmente desigual na sua forma de organização. Nesta lógica, este método de mapeamento assume uma dimensão ecológica ao permitir estudar a distribuição humana nas cidades, bem como as interações que derivam e/ou determinam essa mesma distribuição (Owens, 2012). O contributo deste método é vasto e os estudos revelaram padrões e regularidades sociais que explicaram fenómenos como as desigualdades sociais, a “guetização”, a estigmatização e as barreiras à mobilidade social vertical.
Mais recentemente, a aplicação do método da Escola de Chicago mostrou que os problemas de saúde estão fortemente associados às caraterísticas sociais das comunidades e bairros, sendo necessário tratar os contextos da comunidade como unidades importantes de análise per se, exigindo o desenvolvimento de novas estratégias e abordagens (Sampson, 2003). Assim, a observação direta é fundamental para o avanço de conhecimento socioecológico (Park e Burgess, 1921; Sampson e Raudenbush, 1999; Whyte, 1988), sobretudo no quadro da complexidade fenomenológica das interações sociais contemporâneas. Tal como Abbott (1997) demonstra, o contributo da Escola de Chicago foi importante na observação do espaço público para além de variáveis abstratas, nomeadamente dos seus sons, dos sentimentos dos transeuntes sobre determinados espaços e do próprio mobiliário urbano.
O reconhecimento do método ecológico na Sociologia e nas ciências sociais foi, de certa forma, revisitado por Kevin Lynch (1960). Na sua obra, o autor destaca a forma como percebemos a cidade e as suas partes constituintes num extenso estudo em três cidades norte-americanas, no qual as pessoas foram questionadas sobre a sua perceção de cidade, como estruturavam a imagem que possuíam dela e como a organizavam. No campo da Psicologia, Moreno (1941) desenvolveu, no mesmo período que a Escola de Chicago, a sociometria enquanto método quanti-qualitativo para medir as relações sociais. Tal método foi explorado nos estudos sobre a relação entre as estruturas sociais e o bem-estar psicológico, sendo que as preferências de cada indivíduo são mapeadas, resultando num diagrama complexo, mas bastante útil no campo do planeamento urbano (Seixas, Baptista, e Dias, 2020). Assim, a socioecologia pode ser útil tanto na compreensão das interações complexas que moldam os sistemas sociais e ecológicos, quanto para fornecer conhecimento a ser usado no planeamento e gestão da paisagem urbana (Abbott, 2020).
O legado da Escola de Chicago, do ponto de vista teórico-metodológico, é, notoriamente, relacionável com o MCH. Ainda que conceptualmente o MCH se tenha desenvolvido mais no campo da Psicologia social e ambiental, os primeiros registos da aplicação do método, embora distantes de uma consolidação enquanto método validado, remontam à década de 60 do século XX, quando Weiss e Boutourline (1962) observaram e registaram o movimento dos visitantes da Century 21 Exposition em Seattle. Também Barker (1968), no seu livro “Ecological Psychology: Concepts and Methods for Studying the Environment of Human Behavior”, dava conta da necessidade de desenvolver uma técnica capaz de observar o comportamento humano em ambientes naturais. Esta técnica deveria ser livre de intrusão, garantindo que as observações registadas fossem reações espontâneas aos elementos naturais dos ambientes em causa (Sanoff e Coates, 1971).
Foi na década de 1970 que o MCH se afirmou enquanto técnica no campo da Psicologia ambiental, nomeadamente no estudo de Ittelson et al. (1970). A sua proposta, similar ao que Sampson e Raudenbush (1999) referiram ao aplicarem o método de Chicago, é o de uma observação sistemática tendo por base a influência do espaço, aqui entendido enquanto espaço físico, no comportamento dos indivíduos. Contudo, os trabalhos realizados no campo da Psicologia ambiental centravam-se na pessoa, que é uma das abordagens do MCH utilizada quando o objetivo é o de conhecer as atividades de um indivíduo ou grupo em relação a um determinado local ou horário (Ng, 2015). Do ponto de vista sociológico, em que o objetivo é o de estabelecer padrões e identificar regularidades das relações sociais, a abordagem do MCH mais adequada talvez seja a centrada no local/lugar, ou seja, aquela que procura conhecer como os indivíduos/grupos se movem, interagem e se relacionam num determinando ambiente, considerando os elementos que constituem esse mesmo espaço (Ng, 2015).
Ainda que exista uma diversidade de estudos que demonstram a potencialidade do MCH na análise sociológica, este método é sobretudo utilizado do campo Arquitetura Paisagista (Goličnik e Ward Thompson, 2010; Zacharias, Stathopoulos, e Wu, 2004) e da Psicologia (Cosco, Moore, e Islam, 2010; Cox, Loebach, e Little, 2018). Como revelado pela revisão sistemática da literatura realizada por Klein et al. (2018), de um universo de 14 estudos analisados, 8 eram do campo da Arquitetura/Planeamento Urbano, 5 da Psicologia e apenas 1 tem referência ao campo da Sociologia e Antropologia. Mesmo assim, ainda que o estudo de Smith et al. (2014) tenha sido considerado como do campo da Sociologia, o mesmo não traduz a mobilização da teoria social para a interpretação dos resultados, demonstrado a clara lacuna que há por preencher nesta área.
2.2. Os jardins urbanos enquanto objeto sociológico
Sendo as cidades espaços de grande aglomeração populacional, caraterizados pela diversidade, densidade e heterogeneidade (Wirth, 1938), a presença da natureza nos mesmos tem despertado interesse por parte de investigadores de diversas áreas. De entre os diversos elementos naturais presentes nas cidades, os jardins de acesso público com funções maioritariamente recreativas são dos mais estudados pelos serviços de ecossistemas que proporcionam. Para além das importantes funções de regulação e moderação ambiental (Haines-Young e Potschin, 2018), muito trabalho tem valorizado as funções culturais (Jennings, Larson, e Yun, 2016; Vidal et al., 2022), ou seja, os benefícios intangíveis/imateriais que os indivíduos podem obter do contacto com estes espaços, ainda que estes sejam considerados como de difícil mensuração ou estudo (Fish, Church, & Winter, 2016). Apesar de muitos estudos já comprovarem os importantes benefícios destes espaços para a saúde mental (Sarkar, Webster, e Gallacher, 2018; Vidal, Fernandes, Viterbo, Barros, e Maia, 2020), na coesão social de comunidades mais vulneráveis (Jennings e Bamkole, 2019; Muqueeth, 2021) e na saúde física dos utilizadores (Squillacioti, Bellisario, Levra, Piccioni, e Bono, 2019), na maioria dos casos o poder público local, geralmente responsável pela gestão e manutenção destes espaços, ainda negligencia o valor socioecológico dos mesmos (Dias, Vidal, Seixas, e Maia, 2020).
Os jardins também têm sido negligenciados no debate sociológico. Só mais recentemente estudos do campo da Sociologia da infância e do ambiente dedicaram-se a estes espaços, aplicando a teoria social para interpretar as dinâmicas que neles decorrem (Castro Seixas, Tomás, e Giacchetta, 2020; Gonzalez e Seixas, 2020; Vidal et al., 2021b). Os jardins representam um importante elo de ligação entre o urbano e o natural, mas o seu surgimento não deriva de um processo natural. Mesmo no caso de jardins históricos, a sua transformação ao longo do tempo e o seu estado atual é resultado das transformações sociais da envolvente, da qual os indivíduos também são parte integrante. Parafraseando Lefebvre (1974), se a cidade é um produto desigual, então os jardins e a sua distribuição também se inscrevem nesta lógica. Estudos recentes evidenciam isso mesmo ao dar conta de que a quantidade e qualidade destes espaços variam consoante o mosaico socioeconómico das áreas da cidade, revelando fenómenos de injustiça ambiental (Hoffimann, Barros, e Ribeiro, 2017; Mears, Brindley, Maheswaran, e Jorgensen, 2019; Vidal et al., 2021a). Perante esta realidade, a interpretação dos usos dos jardins e da apropriação do espaço público podem representar um campo de investigação sociológica bastante fértil e pouco explorado.
Este olhar para os jardins para além do “verde” remete-nos para o conceito de “heterotopia” que Foucault (1986) aplica a espaços que têm mais significado ou relações sociais do que as que são visíveis, ou seja, reforçando a necessidade de desconstruir o lugar para efetivamente conhecê-lo. Desse modo, a aplicação da teoria sociológica na interpretação dos usos dos jardins e da forma como os comportamentos dos seus utilizadores são moldados pelo desenho e elementos que o constituem será objeto de discussão no decorrer das próximas secções.
3. Estratégia metodológica
A demonstração da aplicação do MCH tem como objeto de estudo o Jardim da Corujeira, um jardim público situado na freguesia de Campanhã, na zona oriental da cidade do Porto, Portugal (Figura 1).
Do ponto de vista sociodemográfico, o jardim localiza-se numa freguesia que apresenta um declínio demográfico consistente, traduzindo-se, segundo Alves (2012), numa perda de 10 mil habitantes entre 1991 e 2001. Acresce o facto da freguesia de Campanhã ter uma elevada taxa de incidência de desemprego (três vezes maior do que as freguesias ocidentais da cidade do Porto), com 43,0 % da população a residir em habitações sociais (Alves, 2016). É, segundo a revisão do Plano Diretor Municipal (2018), a freguesia da cidade do Porto com a menor percentagem de residentes a possuir ensino superior completo (11,0 %). Este padrão está em concordância com a classificação da cidade em clusters de privação socioeconómica e ambiental, integrando a freguesia de Campanhã o cluster de alta privação.
Relativamente às caraterísticas do jardim, o mesmo tem uma forma geométrica de configuração retangular, com quase 2 hectares. A sua paisagem verde é dominada pela presença massiva de plátanos centenários, sendo responsáveis pela produção de sombra intensa durante a primavera e o verão que limita o crescimento de vegetação mais rasteira. A vegetação neste jardim é pouco diversa, estando presentes alguns arbustos, observando-se ainda algumas áreas revestidas por prado baixo. O jardim é contornado por um passeio largo, com estacionamento para automóveis a circundar todo o espaço, sendo atravessado por um caminho principal e por 10 outros pequenos caminhos diagonais que ligam as principais artérias envolventes. Relativamente ao mobiliário urbano, este espaço é dotado de muitos lugares de descanso (bancos) ao longo do caminho principal e das áreas limites a norte e a sul, proporcionando momentos de repouso, relaxamento e socialização, ainda que carecendo de manutenção e conservação. Da visita ao local sublinha-se a presença de lixo sobre os prados, sobretudo na proximidade das árvores, refletindo uma manutenção deficiente do espaço (Vidal et al., 2021a). Existe ainda uma pequena ponte que atravessa um canal sem água, um pavilhão polivalente cuja cobertura funciona como um espaço aberto e de onde é possível ver todo o jardim. O pavimento dos caminhos, em cimento, encontra- se em bom estado de conservação, o que favorece a mobilidade. No centro deste jardim, duas pequenas “praças” conectam os diferentes caminhos diagonais.
A aplicação da técnica de MCH obedeceu às etapas propostas por Ittelson et al. (1970)que se encontram descritas na tabela 1.
A definição de um protocolo prévio é essencial para a validação dos resultados do MCH. A criação de um mapa de base (Etapa 1) representa uma das etapas mais importantes, sendo sobre ele que os registos dos utilizadores de um determinado espaço e os seus respetivos comportamentos serão efetuados. Posteriormente, a definição das categorias a observar e os seus códigos (Etapa 2) irão determinar a qualidade da recolha dos dados. Desse modo, é essencial que se defina, desde logo, para cada categoria, que elementos a compõem, de forma a tornar o processo de recolha replicável por outros investigadores, i.e. um utilizador que é categorizado como estando apenas a atravessar um espaço significa que o mesmo o utiliza apenas como local de passagem, não permanecendo no mesmo. Ainda nesta etapa, deve ser elaborada uma grelha de registo das observações simples e que permita uma anotação rápida das mesmas. Não menos importante é a definição do cronograma de observação (Etapa 3), que deve ser desenhado tendo em conta a envolvente, as caraterísticas do espaço e dos próprios utilizadores. Assim, o investigador deve ponderar qual o melhor período para realizar as observações tendo em conta a diversidade de possíveis utilizadores por forma a conseguir registar o máximo de comportamentos possíveis.
A definição do procedimento de observação (Etapa 4) deve ter por base as rondas livres realizadas pelo investigador aquando do momento de conhecimento do espaço a observar. Dependendo das caraterísticas do espaço, em termos de desenho e dimensão, o tempo de cada observação e o procedimento sistemático devem ser ponderados de forma a contornar a possibilidade de observar duas vezes o mesmo utilizador ou, por outro lado, do observador ser reconhecido enquanto tal, podendo resultar numa alteração das dinâmicas comportamentais dos utilizadores. Naturalmente, os constrangimentos decorrentes do processo de observação devem ser registados para que possam ser considerados na interpretação dos resultados. Do ponto de vista ético, caso os observados se sintam constrangidos ou, de certa forma, verem invadida a sua privacidade, o observador deve respeitar e explicar o procedimento em causa ou, em último caso, cessar o mesmo. Relativamente ao número de observações a registar e dado o cariz qualitativo do MCH, a recolha de dados termina quando a saturação teórica for atingida, ou seja, quando nenhum novo comportamento for registado (Bloor e Wood, 2006). A última etapa, a do treino do observador e da aplicação do pré-teste (Etapa 5), será o momento de familiarização do observador com o objeto de estudo e com o próprio instrumento. Permitirá ainda identificar a necessidade de possíveis ajustes à grelha de observação e às próprias categorias, bem como a definição do tempo necessário para a realização das rondas ao espaço.
Depois de recolhidos os dados, os mesmos foram analisados através do SPSS versão 25.0, aplicando o teste do qui-quadrado para verificar uma possível associação entre as variáveis sociodemográficas dos utilizadores do jardim e os comportamentos observados.
4. Resultados e discussão
4.1 Usos do espaço
Foram registadas 175 observações no Jardim da Praça da Corujeira entre agosto e novembro de 2020 (12 visitas ao espaço), distribuídas ao longo das manhãs e tardes durante a semana (6) e fim de semana (6).
O perfil sociodemográfico da envolvente do Jardim da Praça da Corujeira é indicador dos seus potenciais utilizadores. Localizado na zona oriental da cidade, ainda que menos envelhecida do que as freguesias do centro histórico da cidade, este jardim é maioritariamente usado por idosos (42,3 %), conforme mostra a figura na tabela 2. Perante o seu grau de privação socioeconómico e ambiental, bem como das caraterísticas dos seus utilizadores, este espaço poderia desempenhar um papel importante ao oferecer a possibilidade de realizar atividades recreativas e de socialização, fomentando a coesão social e contribuindo para o bem-estar dos seus utilizadores (Elands, Peters, e Vries, 2018; Jennings e Bamkole, 2019), situação que já acontece no Jardim de Arca de Água, na freguesia de Paranhos da mesma cidade (Freguesia de Paranhos, 2021). Por outro lado, o MCH é revelador de que se trata de um jardim com uma frequência relativamente reduzida o que, de certa forma, é um indicador interessante uma vez que não existe grande disponibilidade de outros jardins na proximidade, sendo de esperar maior afluência. Esta constatação pode estar relacionada, com o facto de o jardim não estar inserido numa artéria movimentada da cidade com fluxos constantes de pessoas, ou pelo excesso de sombra e manutenção deficiente ou, ainda, pela sensação de insegurança. Acresce que este espaço encontra- se numa zona limítrofe da cidade, considerada como pouco “nobre”, esquecida e negligenciada da esfera das políticas públicas, uma tendência que já vem de longe e que parece persistir (Guerra, 1992). Contudo, é de salientar que a atual configuração deste jardim sofrerá uma mudança profunda. Encontra-se já planeada uma requalificação deste espaço que procurará ter em consideração os seus problemas sociais, a degradação do espaço público, os constrangimentos viários que condicionaram a vivência social, económica e habitacional da zona, equacionando a massa arbórea existente com a mais-valia do mesmo e incorporando zonas de maior acessibilidade para todos.
Os dados da tabela 2 evidenciam ainda um determinado perfil de utilizadores: a maioria é do género masculino (56,6%), idosos (42,3%), frequentando o espaço acompanhados (70,9 %), normalmente por mais uma pessoa (44,4%). É um espaço maioritariamente usado da parte da manhã (67,4%) e em dias de sol (87,4%), provavelmente devido ao seu arvoredo denso que proporciona espaços de sombra por todo o jardim. O jardim é utilizado, predominantemente, para conversar (52,0%) e, ao nível de mobilidade, os seus utilizadores preferem ficar sentados (57,1%), algo que poderá estar relacionado com a faixa etária (idosos) que mais utiliza o espaço.
Para além de conversar, é possível verificar que o uso da tecnologia se estende até ao espaço público através da utilização do telemóvel (13,1%). Estudos futuros sobre os usos do espaço público devem considerar esta dimensão, nomeadamente para tentar perceber de que forma a utilização de tecnologias móveis, como o caso do telemóvel, influencia o comportamento e uso no e do espaço público (Smaniotto Costa et al., 2019).
Na figura 2 está representado o MCH dos 175 utilizadores observados, tendo em conta o seu género e faixa etária. Uma análise dos dados é reveladora de uma tendência clara para o espaço ser maioritariamente utilizado através dos seus caminhos e mobiliário urbano, neste caso os bancos. Uma segunda tendência revela que a parte sul do jardim é a mais utilizada, enfatizando que as áreas ensolaradas são mais desejadas pelos utilizadores. Durante as observações realizadas in loco foi possível constatar que estas zonas a sul são regularmente usadas pelos mesmos grupos de idosos, em predominância do género masculino, para conversar e socializar. Em contextos de isolamento social e privação socioeconómica, os espaços verdes de acesso público, quando qualificados, criam oportunidades de socialização e lazer para os mais idosos (Artmann et al.,2017; Wen, Albert, e Von Haaren, 2018).
A presença de árvores de grande porte, tal como confirmado por Goličnik e Ward Thompson (2010), é um elemento importante no jardim, uma vez que é junto delas, seja ao redor ou por debaixo, que os utilizadores se posicionam, independentemente de preferirem sol ou sombra. Na verdade, os benefícios das árvores são múltiplos e vão muito para além da moderação ambiental, fomentando a coesão social, o bem-estar e o sentimento de “proteção” dos utilizadores (Turner‐Skoff e Cavender, 2019). A este respeito, o jardim em estudo apresenta uma considerável cobertura arbórea, dominada por árvores maduras, altas e caducifólias que dão sombra, principalmente durante o verão.
A tabela 3 apresenta os dados relativos à existência de uma associação entre o nível de atividade física dos utilizadores do jardim e os seus comportamentos.
Os resultados compilados na tabela 3 demonstram que comportamentos como conversar (72,5 %), ler/estudar (100 %), observar (73,9 %) e usar o telemóvel (69,6 %) são mais frequentes em utilizadores que estão sentados (p <0,001). Ainda que não se possa afirmar o porquê desta associação, talvez o facto de ser um jardim frequentado mais por idosos e, também, pela manutenção deficiente da vegetação herbáceas, possam ser algumas das explicações possíveis. Sobre o estado do jardim, num estudo anterior foi identificado que o mesmo apresentava um défice de manutenção acentuado, tanto no mobiliário urbano como nos elementos naturais, bem como alguns problemas de limpeza (Vidal et al., 2021a). Esse “desleixo” leva-nos a questionar também o cuidado dos utilizadores com a limpeza destes espaços. Pode, porventura, evidenciar um fraco sentido de apropriação ou o baixo sentido cívico em relação ao espaço público em resultado do perfil socioeconómico da envolvente que é reproduzido pelos utilizadores, o que deve ser considerado pelos responsáveis autárquicos nas campanhas pela manutenção deste jardim. Acresce a sensação de insegurança sentida, por vezes, durante as observações realizadas, fator que também pode condicionar o uso do espaço e explicar, em parte, a reduzida frequência associada ao mesmo.
4.2. Dúvidas, desafios e potencialidades do Mapeamento do Comportamento Humano na investigação sociológica
Tendo em conta o facto de ser um jardim onde a diversidade de utilizadores é reduzida, a presença do observador começou a ser notada, exigindo a adoção de novas estratégias de inserção no espaço e constituindo, nessa medida, um dos principais desafios do trabalho de campo. A literatura sobre o MCH considera o mesmo como uma técnica não intrusiva que permite observações de comportamentos como reações espontâneas aos elementos naturais (Sommer e Sommer, 2002). No entanto, perante um jardim de reduzida dimensão e em que a frequência dos utilizadores é, também ela, reduzida, bem como a sua diversidade, garantir tal condição torna-se um problema, mas também um estímulo. Assim, e de forma a contornar a situação, foi necessário alterar rotas e horários, e, por vezes, não “entrar” no jardim, posicionando-se, o observador, nos seus limites físicos. Tais opções acarretaram, inevitavelmente, dúvidas do ponto de vista ético. Impõe-se questionar até que ponto a observação não consentida de comportamentos dos utilizadores é correta? Não seria eticamente mais correto que o observador fosse identificado enquanto tal, mesmo que isso implicasse uma alteração no comportamento dos utilizadores? Por outro lado, o registo dos comportamentos no mapa e na grelha, em termos sociodemográficos, não passa de uma aproximação que em nada identifica os observados, dado que apenas se registam o género e o grupo etário. Ainda assim, tais questionamentos devem ser considerados e refletidos, tal como acontece em todas as técnicas que envolvem pessoas.
Ao nível das potencialidades, o MCH dos utilizadores do Jardim da Corujeira permitiu a identificação de padrões que podem, por um lado, servir de base para intervenções ao nível da requalificação do espaço e, por outro, perceber até ponto a envolvente sociodemográfica é condicente com o estado de conservação do jardim em termos de mobiliário urbano e elementos naturais. Acresce a possibilidade desta técnica em revitalizar o método da Escola de Chicago e de mapear padrões de relações sociais e grupos que surgem no espaço urbano por força das relações de poder. Assim, à semelhança do que a Escola de Chicago fez sobre a explicação ecológica do crime, o MCH dos jardins poderá ser útil para esboçar uma explicação socioecológica de desigualdades ambientais e sociais dentro da cidade que contribuem para a formação de “cidades dentro de cidades” (Park, 1936).
5. Conclusões
O presente trabalho propôs a integração do MCH na investigação sociológica através da sua aplicação aos jardins da cidade. Por meio de um exercício de revitalização da abordagem etnográfica da Escola de Chicago sobre o espaço e até mesmo de mapeamento, foi possível identificar pontos em comum com o MCH, estabelecendo pontes que combinem a aplicação desta técnica e a teoria sociológica.
A escolha do Jardim da Corujeira, localizado na freguesia de Campanhã da cidade do Porto, serviu como caso de estudo, identificando um perfil de utilizador e padrões de comportamento que são moldados pelos elementos físicos presentes nesse espaço. É também revelador de que a localização do jardim em muito condiciona o seu estado e os seus potenciais utilizadores, sendo a envolvente uma variável importante para a aplicação do MCH. Por outro lado, e em face das vantagens indicadas pela literatura, considerar o MCH como uma técnica não intrusiva requer cuidado. Uma maior ou menor intrusão da técnica pode estar dependente do contexto de estudo (do espaço e das suas caraterísticas), daí ser necessária uma flexibilidade na construção do protocolo de observação. Acrescem os dilemas éticos, inerentes à aplicação de qualquer técnica que envolva pessoas, mas que importa sempre acautelar de forma a garantir que o indivíduo observado se sinta confortável. Contudo, percebeu-se que a aplicação do MCH, apesar de pouco evasiva da privacidade do observado, uma vez que se registam unicamente o seu género e faixa etária (numa lógica de aproximação), bem como a sua localização aproximada no espaço e tipo de atividade física, pode ser um desafio em espaços reduzidos e pouco frequentados onde a presença do observador facilmente é notada. Em todo o caso, a técnica continua a ser especialmente útil, pois as observações relacionadas com o comportamento registam apenas as condutas ou atitudes mais comuns em espaços públicos. É de salientar que a tecnologia pode vir a revolucionar este método, por exemplo, através do registo com drones, ou mesmo com apps de telemóvel ou relógios digitais que registam a localização e percursos feitos pelos utilizadores do espaço. Um dos inconvenientes associados é de apenas registar os utilizadores que tiverem essas aplicações, podendo ficar uma parcela importante destes por registar. Perante a velocidade da revolução tecnológica, seguramente que num futuro próximo esta desvantagem será diluída
Na pesquisa sociológica, o MCH oferece a oportunidade de combinar variáveis sociais e ecológicas e de analisar como se influenciam mutuamente. Não deixa de ser importante a combinação e triangulação de técnicas por forma a garantir que o objeto sociológico é analisado pelos seus diversos prismas. Sendo um dos princípios da Escola de Chicago estudar as relações do indivíduo com o meio envolvente, descrevendo os aspetos sociais de adaptação, o mesmo pode ocorrer com o MCH dos jardins.
Por fim, os resultados deste trabalho levantam um conjunto de questões: de que forma o jardim se adapta aos seus utilizadores, ou vice-versa? Será este um processo unidirecional? Será o estado de conservação/manutenção de um jardim reflexo do meio social e económico da envolvente? Até que ponto os usos de um determinado jardim traduzem as relações sociais da envolvente? A realização do MCH em jardins na mesma freguesia, como o Parque Oriental, poderá ajudar a esclarecer melhor algumas das questões levantadas, dado que diferem substancialmente no desenho, na vegetação, na dimensão e no cuidado com a manutenção. Assim, são vários os questionamentos que ficam em aberto e que certamente importarão discutir em estudos futuros.