Introdução
A pandemia coronavirus disease 2019 (COVID-19), infeção causada pelo vírus severe acute respiratory syndrome coronavirus-2 (SARS-CoV-2),1 implicou alterações drásticas e desafios para todos os sistemas de saúde a nível mundial, não sendo exceção o Serviço Nacional de Saúde (SNS) português, como consequência da elevada incidência desta infeção e mortalidade pela doença.2
Apesar dos esforços desenvolvidos no que toca a perceber os possíveis fatores de risco para a doença e sua gravidade, capacidade de diagnóstico, manifestações clínicas e tratamento disponíveis, ainda muito se encontra por esclarecer no que diz respeito à COVID-19. Em relação aos diversos fatores de risco cardiovascular, particularmente a hipertensão arterial (HTA), vários estudos foram publicados, não havendo consenso quanto ao seu papel enquanto fator de risco para maior-vidade de doença COVID-19 e maior mortalidade.3-7
A HTA é definida por uma pressão arterial sistólica ≥140 mmHg e/ou pressão arterial diastólica ≥90 mmHg em medições de consultório.8 Apesar de alguma discrepância de valores quanto à sua prevalência consoante a metodologia utilizada,9 de acordo com o estudo PHYSA,10 a HTA afeta 42,2% da população adulta (18-90 anos) em Portugal e, juntamente com as restantes doenças cardiovasculares, constitui uma das principais causas de morte.9
Assim, face à grande prevalência de HTA no nosso país bem como à sua não esclarecida relação com COVID-19 e mortalidade associada à doença, este trabalho tem como objetivos avaliar o impacto da HTA nesta amostra e avaliar o seu papel na mortalidade, bem como estudar a sua relação com outras variáveis clínicas de interesse.
Material e Métodos
Foi realizado um estudo retrospetivo dos doentes com diagnóstico de COVID-19 internados em Enfermaria de Me-dicina Interna entre 1 de março 2020 e 28 de fevereiro 2021, tendo-se procedido à sua divisão de acordo com a presença ou ausência de diagnóstico prévio de hipertensão arterial.
A colheita de dados foi efetuada através da consulta do processo clínico informático de cada doente e do seu Registo de Saúde Eletrónico®.
Foram avaliadas variáveis demográficas, grau de dependência prévio quantificado pelo score AVD DezIs (considerando-se 0 como incapacidade máxima e 100% como funcionalidade total)11carga de doença e comorbilidades de acordo com o score de Charlson,12 tempo de duração mediano de sintomas na admissão hospitalar, severidade da doença COVID-19 de acordo com normas da Direção-Geral da Saúde (DGS),13terapêutica anti-hipertensora prévia, complicações e tempo de internamento, mortalidade intra-hospitalar e taxa de readmissão hospitalar.
A análise estatística foi efetuada com recurso aos softwa-res SPSS®, versão 26, e R®, versão 4.1.3. Considerou-se um p <0,05 como sendo estatisticamente significativo na análise efetuada. Procedeu-se à avaliação da normalidade das variáveis contínuas através do teste de Shapiro-Wilk, que foram posteriormente descritas como mediana (amplitude interquartil) se rejeitada distribuição normal. Rejeitada a sua normalidade, as variáveis contínuas foram comparadas entre indivíduos com e sem HTA com recurso ao teste de Mann-Whitney. As variáveis categóricas foram apresentadas como frequência absoluta e relativa (%), tendo-se procedido à sua comparação entre os dois grupos em estudo através da aplicação do teste de Qui-quadrado e, quando não aplicável, do teste Exacto de Fisher.
Aplicaram-se ainda modelos de regressão logística (univariada e multivariada) para identificar fatores preditores de mortalidade. Avaliada a associação univariada entre cada variável com a mortalidade intra-hospitalar e consideradas para inclusão na análise multivariada aquelas com p <0,01 ou variáveis com plausibilidade biológica apesar da ausência de significado estatístico. A estimação do modelo foi feita por máxima verosimilhança, usando o método dos mínimos quadrados ponderados, baseado no método dos scores de Fisher. A significância das co-variáveis foi analisada usando o teste de Wald. A qualidade de ajustamento do modelo foi avaliada aplicando o teste de Hosmer e Lemeshow. Por seu lado, a capacidade de discriminação do modelo foi avaliada através da área abaixo da curva (AUC) de ROC, tendo-se considerado valores de 0,5 sem capacidade de discrimina-ção; 0,50 < AUC ≤ 0,70 com fraca discriminação; 0,70 < AUC ≤ 0,80 como modelo aceitável; 0,80 < AUC ≤ 0,90 com boa discriminação e, entre 0,9 e 1, como muito boa capacidade de discriminação.
Este estudo foi analisado pela Comissão de Ética do Cen-tro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga que emitiu um parecer favorável.
Resultados
A amostra compreendeu 1291 doentes com diagnóstico de COVID-19 internados no período em estudo. A mediana de idade foi de 73 anos (AIQ: 22), verificando-se um predo-mínio do sexo masculino (n = 701, 54,3%). Segundo o score de AVD-DezIs, o grau de funcionalidade mediano foi de 90% (AIQ: 20). O tempo de duração mediano de sintomas na admissão hospitalar era de 5 dias (AIQ: 6) e o tempo de internamento mediano foi de 7 dias (AIQ: 8).
No que diz respeito à prevalência de fatores de risco cardiovascular, observou-se que 65,5% dos doentes (n = 845) tinha diagnóstico de HTA previamente à admissão, 54,9% (n = 709) dislipidemia e cerca de um terço apresentava diabetes mellitus (DM) e obesidade (38% e 31%, respetivamente) (Tabela 1).
No grupo com diagnóstico de HTA, 18,1% (n = 153) não se encontrava medicado com nenhum anti-hipertensor e 32,2% (n = 272) dos doentes estava em regime de monoterapia. As classes farmacológicas mais frequentes foram os inibidores da enzima de conversão de angiotensina (iECA)/antagonistas receptores angiotensina II (ARA) (53,7%, n = 454) e antagonistas dos canais de cálcio (aCC) (31,1%, n =263).
Comparativamente com indivíduos sem HTA, verificou-se que o grupo com HTA apresentava uma mediana de idade superior (78 vs 68 anos, p <0,001), maior prevalência de DM (39,9% vs 14,1%, p <0,001), obesidade (42,5% vs 29,4%, p <0,001), dislipidemia (66,3% vs 33,4%, p <0,001) e de insuficiência cardíaca (IC) (26,2% vs 9%, p <0,001) (Tabela 2). Ainda neste grupo, verificou-se uma maior proporção de doença COVID-19 grave (p = 0,003) (Fig. 1), bem como um maior número de doentes graves com necessidade de trans-ferência para unidade de cuidados intensivos (p <0,001). No que diz respeito à descompensação de doenças crónicas durante o internamento, observou-se um maior número de indivíduos com descompensação da DM e da IC (p <0,001); além disso, constatou-se ainda maior número de indivíduos com lesão renal aguda nos doentes hipertensos (p <0,001). Em relação à mortalidade intra-hospitalar, também esta foi superior nos doentes com HTA (21,1% vs 12,3%, p <0,001). No que diz respeito aos reinternamentos a 30 dias e 3 meses após a alta hospitalar, não se verificaram diferenças estatisti-camente significativas (p = 0,901 e p = 0,171, respetivamen-te) (Tabela 3).
Tendo em conta o outcome de interesse, na análise univariada, a idade, presença de HTA, DM, maior carga de doença traduzida pelo score de Charlson modificado, severidade da doença, diagnóstico prévio de IC, fibrilhação auricular, necessidade de ventilação não invasiva, descompensação de IC, diagnóstico de coinfeção respiratória e lesão renal aguda foram associadas a maior probabilidade de morte. Numa tendência inversa, a obesidade terá conferido menor risco. Quando as variáveis foram introduzidas no modelo multivariado, apenas a idade, o score de Charlson modificado, a severidade da doença, a presença de coinfecção respiratória, lesão renal aguda mantiveram significância estatística como fatores associados a maior probabilidade de morte, enquanto a obesidade se associou a menor probabilidade de evento adverso. O teste de Hosmer Lemeshow mostrou bom ajustamento do modelo aos dados (χ2=13,287, p = 0,102) e a área sob a curva de ROC de 0,838 uma boa capacidade de discriminação. Os resultados da análise uni e multivariada encontram-se expostos na Tabela 4.
Discussão
Os resultados deste estudo vêm reforçar a associação entre a COVID-19 e várias patologias.7,14-16A HTA é uma doença muito prevalente na amostra, tal como se verificou com outras patologias/comorbilidades descritas em estudos prévios como fatores de risco para maior gravidade e mortalidade por COVID-19, como é o caso da diabetes mellitus.17
Sendo a HTA um dos principais fatores de risco presente na população mundial e a principal causa de morte precoce,18 este estudo pretendeu avaliar a relação entre HTA e a doença COVID-19 e a sua mortalidade. Apesar de, na análise univariada, a HTA ser preditora de risco aumentado de morte, tal não se verificou após inclusão de outras covariáveis no modelo, nomeadamente da idade. Estes resultados são semelhantes a alguma da bibliografia disponível neste âmbito, apesar de não serem resultados consensuais.9,19Várias justificações têm vindo a ser apontadas para esta ausência de relação, nomeadamente a maior prevalência de HTA nos doentes idosos que também apresentam outras comorbilidades, condições por si só associadas a quadros clínicos mais graves em doentes com infeção por SARS-CoV-2, sendo sugerido que poderá não ser a HTA per se a estar correlacionada com maior mortalidade.19,20Outro fator que poderá ter interferência nos resultados publicados é a utilização de terapêutica anti-hipertensora, nomeadamente iECA, ARA e beta-bloqueadores, pelo provável efeito inibitório na cascata pro-inflamatória e inibição dos efeitos da angiotensina II, bem como potenciação da resposta antiviral.9 Poderá ainda haver diferenças demográficas/étnicas a moldar a relação da HTA com a mortalidade, sendo que, um dos maiores estudos de meta-análise nesta área,15 se baseou em estudos conduzidos na população chinesa, não sendo necessariamente presumível que o mesmo se verifique noutras populações.
Das variáveis consideradas na regressão logística, apenas a idade, o score de Charlson modificado, severidade da doença, presença de coinfeção respiratória bacteriana e LRA se mostraram preditores independentes de mortalidade, dados esses que vão de encontro ao referido em estudos já publicados.16,17No que diz respeito à coinfeção respiratória, a associação com maior probabilidade de morte poderá ser explicada por quadros inflamatórios potencialmente mais marcados e com maior atingimento do sistema respiratório com insuficiência respiratória.4
Conclusão
A hipertensão arterial apresenta uma elevada prevalência a nível mundial, o que a torna um claro alvo de interesse para estudo no âmbito da pandemia COVID-19. Com este estudo foi avaliada a prevalência não só da HTA mas também dos demais fatores de risco cardiovascular e a sua relação com a doença COVID-19, tendo-se verificado que os doentes com HTA apresentaram maior gravidade de doença, presença de outros fatores de risco cardiovascular, complicações em internamento e mortalidade intra-hospitalar quando comparados com doentes sem HTA. Estes resultados vêm corroborar estudos prévios publicados neste âmbito.14,16Contudo, não foi identificada uma relação independente da HTA com a mortalidade por COVID-19 quando ajustada para outras covariáveis.
Reconhecemos que ainda muito se encontra por esclare-cer acerca do impacto global e preciso da HTA nos doentes com COVID-19 bem como nas suas possíveis complicações a médio-longo prazo, tornando-se essencial que se realizem mais estudos neste âmbito.