Introdução
A infeção por Listeria spp. é rara, com incidência nos EUA de 0,29 por 100 000 habitantes (1,3 acima dos 65 anos).1 O espetro de manifestações é variado, com síndromes clínicas distintas. Na grande maioria os casos são esporádicos, devido ao consumo de alimentos contaminados, mas ocasionalmente ocorrem surtos, que podem atingir grandes proporções, constituindo um problema de saúde pública. A listeriose é de declaração obrigatória em muitos países.
A mortalidade global é de cerca de 20%-30%,2,3devido às comorbilidades ou idade avançada das pessoas afetadas. No entanto, a gravidade da infeção por Listeria pode estar sobrestimada: perante quadros clínicos febris, estes pacientes são mais sujeitos à realização de hemoculturas (HC) do que pessoas saudáveis.3
Estas bactérias são bacilos Gram positivo curtos, anaeróbios facultativos, e podem multiplicar-se a temperaturas de refrigeração (-2ºC a 10ºC) muito melhor que outros microrganismos de origem alimentar.4,5Em geral, só a Listeria monocytogenes é patogénica para o homem.4,6
A listeriose é uma zoonose, em especial de animais de quinta. A Listeria spp. existe no solo, águas residuais, vegetação rasteira e nas fezes de diversos animais; podem colonizar o intestino de 1%-5% de indivíduos saudáveis.7,8Podem contaminar diversos alimentos como vegetais crus, leite não pasteurizado e seus derivados, queijos em creme e carnes, mesmo refrigerados, produtos designados de “delicatessen” (como fumados, salames), patés, salsichas, mariscos.3,9Embora a listeriose ocupe lugar modesto entre as causas bacterianas de infeção de origem alimentar, é a terceira causa de mortalidade, até 16%.10 Não se transmite pessoa a pessoa nem pela água.6 O pH gástrico elevado favorece a sobrevivência da bactéria ao passar no estômago pelo que o uso de inibidores da bomba de protões (IBP) constitui potencial fator de risco.4
Estes agentes são patogénicos intracelulares facultativos. Uma vez na parede intestinal, o mecanismo de entrada na célula envolve a fixação de uma proteína bacteriana (a internalina) à E-caderina CDH1 da membrana celular. A produção pelo microrganismo de listeriolisina O e fosfolipases permite-lhe escapar à destruição nos fagossomas; divide-se no citoplasma e induz a polimerização de actina em filamentos, através dos quais se move contra a membrana celular, onde é envolvida e exteriorizada, sendo ingerida por células adjacentes. Este mecanismo especial de disseminação célula-a-célula permite-lhes escapar à exposição ao meio extracelular.4,6,11Após atravessar a barreira intestinal atinge os gânglios linfáticos, de onde dissemina pela corrente sanguínea para o baço e o fígado, podendo atravessar as barreiras hematoencefálica e placentária.
A principal defesa contra a Listeria spp. é a imunidade celular mediada por células T.3,4
Existe uma associação entre esta infeção e situações de depressão imunitária como doenças malignas, sobretudo de foro hematológico, como linfomas; transplantes; infeção VIH avançada; e uso de corticoterapia e imunossupressores, incluindo agentes biológicos, em entidades como artrite reumatoide ou doença de Crohn.4,9Na gravidez ocorre algum decréscimo da imunidade celular.4,9A idade é um fator predisponente: num grande estudo de listeriose, excluindo gravidez e recém-nascidos, a média foi de 72 anos.1 Contudo, pessoas mais jovens ou sem qualquer predisposição também podem ser afetadas.12
A maioria das infeções por Listeria spp. resulta da ingestão de produtos contaminados, penetração do microrganismo através da mucosa intestinal e infeção sistémica.4
Estas bactérias têm tropismo particular pelo parênquima do sistema nervoso central (SNC) e pela placenta.4 Nas situações de infeção invasiva, a bacteriemia pode constituir processo séptico primário, originar envolvimento neurológico central ou, na gravidez, infeção placentária ou fetal.4 Na gravidez a infeção tende a ser benigna, resolvendo com antibiótico e termo da gravidez; em cerca de 20% resulta em aborto espontâneo ou nado-morto.4
A manifestação invasiva mais comum nos adultos é a bacteriemia,4 sobretudo nos que têm comorbilidades graves como neoplasias, imunodepressão, doença renal crónica terminal, diabetes, cirrose ou alcoolismo.1,9A mortalidade pode atingir 45% aos 3 meses.13
Nos EUA é responsável por 8%-11% dos casos de meningite14 sendo o agente mais comum em doentes com cancro, sobretudo linfoma, transplantados renais ou sob corticoterapia, embora em 36% não exista doença subjacente.15 Num estudo prospetivo europeu foi a terceira causa de meningite bacteriana.16 Além de meningite e meningoencefalite, podem ocorrer atingimento do tronco cerebral ou medula espinhal ou abcesso cerebral.
Têm sido descritas numerosas formas localizadas da infeção como conjuntivite, infeção cutânea ou do tecido celular subcutâneo, hepatite, colecistite, abcesso hepático ou esplénico, peritonite, infeção pleuropulmonar ou osteoarticular.4,17
O diagnóstico depende do reconhecimento da bactéria no contexto apropriado, normalmente em amostra estéril como sangue, LCR ou líquido amniótico.6 A história de consumo alimentar suspeito, particularmente em pacientes com gastroenterite febril, pode levar à suspeita, mas as coproculturas standard têm baixa sensibilidade para a deteção de Listeria spp.17
Não é necessário tratamento antibiótico para a gastroenterite por este agente, exceto em pessoas > 65 anos ou imunocomprometidas, sendo recomendada amoxicilina oral.4,18As formas invasivas requerem terapêutica. A ampicilina é de primeira escolha. Na infeção do SNC tem sido recomendado associar gentamicina, pelo efeito sinérgico.4,6O tratamento da meningite ou encefalite por Listeria spp. deve ser com ampicilina 3 semanas, associado a gentamicina durante 7 a 10 dias.15 Na bacteriemia ou sépsis ampicilina 2 a 3 semanas, e na endocardite 4 a 6 semanas.4 Ante alergia à penicilina deve ser utilizado o cotrimoxazol.4,18É resistente às cefalosporinas, e já foi documentada a ocorrência de meningite por Listeria spp. durante o tratamento com esta classe.4,19
Neste trabalho apresentamos uma série dos doentes com infeção por Listeria spp. num período recente no nosso centro hospitalar, com avaliação das suas características, manifestações invasivas mais comuns, fatores de risco e desfecho, confrontando os achados com os dados da literatura.
Material e Métodos
Apresentamos um estudo observacional retrospetivo de infeção por Listeria spp. em adultos no nosso centro hospitalar no período de 8 anos entre 2013 e 2020. Selecionámos as amostras em que foram isoladas estirpes de Listeria spp. através da pesquisa da base de dados do sistema informático do Serviço de Patologia Clínica. Foram revistos os processos clínicos de todos os pacientes com amostra positiva.
Foram avaliados os registos respeitantes ao microrganismo e à amostra (e esfregaço com coloração Gram no caso do LCR), as variáveis demográficas (incluindo género e idade do paciente, estação do ano, existência de surto relacionável), as variáveis clínicas, como comorbilidades e fatores de risco para esta infeção, o tipo de infeção (incluindo bacteriemia, endocardite, infeção do SNC), formas localizadas ou particulares da infeção, o Serviço onde ocorreu o diagnóstico e o internamento, necessidade de admissão no serviço de cuidados intensivos (SCI), desfecho do caso e destino à data da alta. Procedemos a uma análise mais detalhada dos casos de infeção do SNC. Considerámos fatores de risco ou condições predisponentes para listeriose invasiva: idade > 65 anos; gravidez; doenças neoplásicas hematológicas e sólidas; doentes com transplante de órgãos; infeção VIH; doenças do tecido conjuntivo; tratamento corticoide ou imunossupressor, quimioterapia; diabetes mellitus; doença renal crónica terminal/diálise; cirrose hepática; alcoolismo; uso de IBP.
No tratamento estatístico dos dados procedemos a uma análise descritiva simples. Na comparação entre doentes internados com infeção do SNC e com formas bacteriémicas ou sépticas a análise estatística foi feita através de SPSS 28.0.1, recorrendo a regressão binária logística, usando como variável dependente a mortalidade e como variáveis independentes os diversos fatores de risco considerados.
Os dados foram anonimizados para efeito de análise, seguindo os princípios éticos e legais no seu tratamento, com parecer favorável da Comissão de Ética para a Saúde do Hospital.
Resultados
Foram identificados 25 casos de infeção por Listeria spp., 13 do género masculino, cujas principais características estão resumidas na Tabela 1. A média etária foi 66.6 anos (24-92 anos). A distribuição por estações do ano foi equitativa. A maioria dos casos foi diagnosticada no Serviço de Urgência (SU) ou no Internamento, sendo a especialidade mais envolvida a Medicina Interna, seguida da Neurologia. Em quatro casos o diagnóstico ocorreu em ambulatório. A maioria dos doentes (92%, n = 23) tinha algum fator de risco para a infeção. O principal fator de risco foi a idade > 65 anos em 16 doentes (64 %), e em 5 o único, seguido da utilização de IBP em 44 % (n = 11), diabetes em 28 % (n = 7), alcoolismo em 24% e terapêutica corticoide ou imunossupressora em 20 %. Três doentes apresentavam neoplasias sólidas e outro linfoma; dois estavam sob quimioterapia. Dois doentes tinham infeção pelo VIH; dois, DRC em hemodiálise; dois, artrite reumatoide; um, cirrose hepática. Houve um caso na gravidez. Dezanove doentes (76%) tiveram isolamento de Listeria spp. em hemoculturas (HC). Mas cinco não as efetuaram. Relativamente ao espetro das manifestações, um doente apresentou-se com endocardite, outro com peritonite bacteriana espontânea (PBE) e outro com gastroenterite aguda, todos com bacteriemia associada. Nove tiveram infeção do SNC (36%), 5 com bacterémia associada. Houve casos isolados de infeção placentária e hematoma muscular infetado.
AR - artrite reumatóide; CCT - corticoterapia; DPOC - doença pulmonar obstrutiva crónica; DRC - doença renal crónica; DRCT-HD - doença renal crónica terminal - hemodiálise; F - feminino; HD - hemodiálise; IBP - inibidor da bomba de protões; IC - insuficiência cardíaca; M - masculino; QT - quimioterapia; UCC - Unidade de Cuidados Continuados; VIH - vírus da imunodeficiência humana.
Analisando a série dos doentes com infeção do SNC (Tabela 2), 6 eram homens; a média de idades foi 65 anos. Registaram-se 5 casos de meningite, 3 de meningoencefalite e 1 de abcesso cerebral, submetido a cirurgia. Documentou-se síndrome meníngea em cinco pacientes e convulsões em quatro. Não houve óbitos. Sete doentes estiveram no SCI.
F - feminino; M - masculino; MN - mononucleares; N.D. - não definido; PAC - pneumonia adquirida na comunidade; PMN - polimorfonucleares;
O líquido ascítico revelou PBE. Iniciou ceftriaxone mas faleceu ao 3º dia, coincidindo com o isolamento de Listeria spp.
Considerando os doentes admitidos ao internamento, a análise comparativa dos 11 doentes com bacteriemia/sép-sis com os 9 com infeção do SNC mostra algumas diferenças relevantes (Tabela 3). Em relação aos fatores de risco ou condições predisponentes, o alcoolismo foi mais prevalente nestes últimos, enquanto que nos doentes com formas bacteriémicas a idade ≥ 65 anos, o uso de IBP e as neoplasias predominaram, embora só estas com nível de significância. Quanto à mortalidade verificou-se diferença significativa entre os grupos (4 óbitos versus zero). A demora média do internamento foi superior nos doentes com infeção do SNC, que pode dever-se em parte à mortalidade precoce de alguns doentes com bacteriemia ou sépsis (dos 4 óbitos, três ocorreram entre o 1º e o 6º dia da admissão). A única grávida tinha infeção pelo VIH, sob terapêutica antirretrovírica (TAR), e diabetes gestacional. Foi admitida por contrações uterinas na 23ª semana de gestação. A ecografia mostrou feto morto. Procedeu-se ao trabalho de parto sob cefalosporina. Exigiu alta contra parecer médico. Posteriormente isolou-se L. monocytogenes no tecido placentário.
CCT - corticoterapia; F - feminino; IBP - inibidor da bomba de protões; QT - quimioterapia; SNC - sistema nervoso central
O caso de PBE era um homem com infeção pelo VIH (sob TAR, 431 linfócitos T CD4+/mm3), hepatite C, alcoolismo e cirrose descompensada com síndrome hepatorrenal, admitido em estado séptico com ascite de grande volume.
O caso de endocardite ocorreu numa idosa com polipose cólica e estenose valvular aórtica severa e coronariopatia, submetida 4 meses antes a substituição por prótese biológica e bypass coronário, admitida por febre e descompensação cardíaca. O ecocardiograma mostrou vegetações na prótese e abcesso perivalvular. Apesar da melhoria e negativação das HC, as alterações ecocardiográficas persistiram. O risco de cirurgia foi considerado demasiado elevado. Faleceu 3 anos depois.
Outra apresentação focal foi numa doente hemodialisada com diabetes e mielodisplasia, observada no SU por tumefação com sinais inflamatórios e flutuação na região dorsal. (Sete meses antes tivera traumatismo dessa zona devido a queda). A tomografia computorizada (TC) evidenciou coleção no plano muscular da região dorsal compatível com hematoma não recente. Feita drenagem, teve alta com amo-xicilina/clavulanato. Foi isolada L. monocytogenes no fluido.
Num jovem com gastroenterite febril, foi reconhecida Listeria em HC colhidas no SU antes da alta e foi medicado com amoxicilina/clavulanato.
Os esquemas de tratamento foram variados pois o diagnóstico inicial de sépsis ou meningite exige cobertura ampla. Elevada percentagem de pacientes efetuou inicialmente ceftriaxone. Após o isolamento de Listeria spp. a ampicilina foi o antibiótico mais utilizado nos doentes internados (16 doentes), em 5 associada a gentamicina; 2 doentes foram tratados apenas com ceftriaxone, incluindo o caso de PBE.
Três doentes observados no SU tiveram alta com amoxicilina/clavulanato empírico.
Particularizando os doentes com infeção do SNC, todos foram tratados com ampicilina, isoladamente em sete, embora na fase inicial tenha sido utilizada ceftriaxone e/ou outros fármacos.
Ocorreram dois óbitos no internamento na nossa instituição, a que se somaram dois doentes com sépsis com cancro avançado transferidos para o instituto de oncologia por preferência da família. A taxa de mortalidade relacionada com listeriose na nossa série foi de 16 %.
Discussão
Ainda que estes microrganismos possam afetar pessoas saudáveis, habitualmente afetam pessoas com fatores predisponentes ou de risco. Na nossa amostra 92% apresentavam algum fator de risco, com destaque para a idade > 65 anos, alcoolismo, cancro, diabetes, infeção VIH ou artrite reumatoide; medicamentos imunossupressores, corticoides ou IBP. Estudos epidemiológicos suportam a relação da ocorrência da listeriose com o uso de IBP, salientando-se um estudo de base nacional na Dinamarca que mostrou risco associado ao seu consumo 2,8 vezes superior.20
Como referido, as formas clínicas de apresentação mais frequentes foram a bacteriemia e a infeção do SNC, em concordância com grandes estudos ou séries publicadas na literatura. Com exceção da gravidez, a infeção da corrente sanguínea afeta geralmente imunocomprometidos ou idosos. Caso existam manifestações atribuíveis ao SNC devem ser efetuados punção lombar e imagiologia encefálica.17
A meningoencefalite é a forma mais comum de infeção do SNC por Listeria spp., que pode ser restrita ao tronco cerebral (romboencefalite), forma mais frequente em adultos saudáveis.6,13Na suspeita de meningoencefalite a ressonância magnética (RM) é mais sensível que a TC.21 Em concordância com os dados da literatura da meningite por este agente, nesta série quase metade dos doentes não apresentaram síndrome meníngea, menos frequente que em meningites de outras etiologias.15 O abcesso cerebral pode ocorrer em 10% dos casos de infeção do SNC por este agente, geralmente associado a bacteriemia; o tratamento exige frequentemente intervenção cirúrgica; a mortalidade pode atingir 40%.14 Numa grande revisão observou-se uma mortalidade global da infeção do SNC por Listeria spp. de 26%, sendo maior se > 65 anos ou com crises epiléticas.15 Num estudo prospetivo, a mortalidade foi 17%, sobretudo nos primeiros três dias.16Enfatiza-se a ausência de mortalidade nos pacientes com infeção do SNC da nossa série.
Na infeção do SNC por Listeria spp. as alterações do líquido cefalorraquidiano (LCR) podem ser ligeiras, sendo variável a relação de polimorfonucleares e células mononucleadas,15 como confirmámos na nossa série (Tabela 2). Num estudo, o nível de proteínas era moderadamente elevado (média de 1,68 g/L) e o nível de glicose reduzido em 39%.15
Em comparação, encontrámos proteinorraquia superior (média de 3,29 g/L) e taxa de hipoglicorraquia superior (55,5%). A coloração Gram é positiva em até 1/3 dos casos e as hemoculturas em 71%.15 Cada vez mais a listeriose do SNC tem sido reconhecida por novas tecnologias, como painéis multiplex de polymerase chain reaction.4,17
Embora a infeção VIH avançada com CD4 < 200/mm3 constitua um fator de risco, a listeriose é rara neste contexto, possivelmente devido à toma de cotrimoxazol como profilaxia de infeções oportunistas.9,22
Entre as mulheres em idade reprodutiva, as grávidas têm risco muito aumentado de infeção por Listeria spp., em especial no 3º trimestre.4,9O risco é sobretudo grave para o feto (morte fetal, prematuridade, recém-nascido infetado).4,9
A PBE por este agente é rara e aparece sobretudo em doentes com cirrose alcoólica descompensada. Dada a resistência às cefalosporinas, recomendadas para o tratamento empírico da PBE, se não se observar uma resposta rápida à terapêutica ou se existir história de consumo de produtos de animais de quinta, deve-se suspeitar desta etiologia e iniciar prontamente ampicilina.22 A mortalidade pode atingir os 30,7%.23
A endocardite ocorre em até 8% dos casos de infeção por Listeria spp., afetando sobretudo as válvulas aórtica e mitral, nativas ou protésicas.24 Tende a um curso subagudo, mas pode apresentar-se com insuficiência cardíaca congestiva aguda.25 Pode ser indicadora de patologia gastrointestinal, incluindo de foro neoplásico.26 Curiosamente, a nossa paciente tinha polipose cólica.
Em geral a gastroenterite por Listeria spp. ocorre devido ao consumo de alimentos contaminados com grande quantidade do microrganismo, sendo o período de incubação de cerca de 24 horas (6 horas a 10 dias), muito inferior ao das formas invasivas (11 dias em média; em 90% dos casos até 28 dias).27 Dada a inespecificidade e o caráter autolimitado do quadro na maioria dos casos, que são pessoas sem fatores de risco, é difícil estabelecer a etiologia na ausência de hemoculturas.
Na nossa série não foi estabelecido um nexo com a ingestão dum produto alimentar contaminado. Contudo, com exceção do paciente com gastroenterite, não encontrámos nos registos referência a inquérito neste sentido. Um doente emigrado, internado em 2019 com meningite, referiu um surto de listeriose na sua área de residência, Filadelfia. Encontrámos referência a um surto em curso por essa altura nesse estado, relacionado com ovos cozidos embalados sem casca.28 Tem sido referida maior ocorrência de listeriose no verão,4,17não observada nesta série.
Embora a L. monocytogenes seja sensível in vitro a diversos antibióticos, na prática esta infeção deve ser tratada com ampicilina. Como referido, as cefalosporinas de 3ª geração são ineficazes. Na nossa série, foi utilizada sobretudo ampicilina endovenosa (ou amoxicilina/ clavulanato oral, em casos de menor gravidade), tendo sido associada gentamicina em dois casos de sépsis primária, um de endocardite e dois de infeção pelo SNC. Não observámos qualquer caso de resistência nem de alergia a estas classes farmacológicas.
A mortalidade da nossa série foi de 16%, ligeiramente inferior à relatada na literatura.
Conclusão
Na idade adulta a listeriose invasiva é uma infeção com morbilidade considerável que afeta sobretudo mulheres grávidas e pessoas com idade avançada, com morbilidades importantes, como doenças malignas, diabetes, cirrose, alcoolismo ou infeção VIH, ou sob terapêutica corticoide ou imunossupressora. O consumo de IBP também se associa a maior ocorrência de infeção por Listeria spp. Na nossa série encontrámos dados semelhantes aos da literatura, mas destacamos a elevada percentagem de doentes com múltiplos fatores de risco e também a ocorrência de algumas formas de doença menos comuns, como PBE e infeção de hematoma muscular crónico. Merece especial ênfase a ausência de mortalidade nos doentes com infeção do SNC, em contraste com a literatura. A listeriose é uma doença de declaração obrigatória em muitos países. Embora os casos da nossa série tenham sido todos aparentemente esporádicos (apenas uma possível exceção), consideramos importante a realização de questionário para identificar o consumo de algum alimento suspeito ou a existência de possível surto familiar ou local, dada a relevância para a saúde pública.