Introdução
Neste artigo analisamos as ecologias de participação associadas ao desenvolvimento das nanotecnologias em Portugal, explorando como diferentes públicos - e modelos de relação entre ciência e sociedade - são mobilizados e gerados por estas tecnologias emergentes. Por “ecologias de participação” entendemos as “dinâmicas relacionais de diversas práticas coletivas e espaços de participação interrelacionados que (…) são coproduzidas no âmbito de sistemas e culturas mais vastas” (Chilvers, Pallett & Hargreaves, 2018, p. 202).
As nanotecnologias consistem numa forma de manipulação da matéria à escala nanométrica e muitos nanomateriais estão presentes em cosméticos, alimentos, vestuário, acessórios, remédios, chips e sensores (Chuankrerkkul & Sangsuk, 2017). As nanotecnologias resultam na convergência de várias áreas do conhecimento e envolvem biliões de euros em investimentos. Regista-se, porém, uma lacuna ao nível de estudos sobre riscos, nomeadamente sobre o meio ambiente, saúde e segurança, assim como acerca de aspetos éticos, legais e sociais (Invernizzi & Foladori, 2013), existindo uma grande heterogeneidade regulatória a nível mundial (Falkner & Jaspers, 2012).
Os desafios colocados pelas nanotecnologias também se estendem aos processos de governação das democracias contemporâneas, permitindo-nos refletir acerca da articulação entre tecnologias emergentes, cidadania, legitimidade política e soberania nacional (Laurent, 2017, p. xiv). A Comissão Europeia reconheceu o potencial das nanotecnologias e entre 2005 e 2009 desenvolveu um Plano de Ação para as Nanociências e Nanotecnologia que, além de incidir sobre dimensões tecnológicas e de inovação, também incidiu sobre educação, aspetos sociais e éticos e avaliação de riscos (Abreu, 2013, p. 1). Esta visão gerou novas abordagens regulatórias e formas de participação pública que visam evitar a rejeição pública, como ocorreu com os Organismos Geneticamente Modificados (OGM) (Carvalho & Nunes, 2014).
Um paradigma associado ao desenvolvimento das nanotecnologias e promovido pela Comissão Europeia consiste na investigação e inovação responsável - Responsible Research and Innovation - (Schomberg, 2013), pressupondo o envolvimento dos cidadãos a montante, enquanto as nanotecnologias são desenvolvidas, ao invés da participação a jusante (Quevedo & Invernizzi, 2018). O envolvimento público com nanotecnologias tem promovido um diálogo entre nanoenactors - atores envolvidos na pesquisa e desenvolvimento das nanotecnologias (Nunes, Costa, Carvalho & Matos, 2018) - e especialistas das Ciências Sociais e Humanas, fomentando avaliações dos impactos éticos e sociais de uma forma integrada. Estas abordagens visam ultrapassar a cisão entre as “duas culturas” (Snow, 1959) - por um lado, os cientistas e engenheiros responsáveis pelo desenvolvimento das nanotecnologias e, por outro lado, os sociólogos e filósofos que analisam os impactos éticos e sociais. No entanto, como demonstram algumas etnografias em laboratórios de nanotecnologia, este trabalho de integração nem sempre é bem-sucedido (Doubleday & Viseu, 2010; Fonseca & Santos Pereira, 2017).
O envolvimento público com nanotecnologias visa incluir o maior número de stakeholders possível - atores interessados e potencialmente atingidos pelos efeitos destas tecnologias (Carvalho & Nunes, 2013). Esta abordagem pressupõe a participação de representantes de consumidores, trabalhadores, ambientalistas e público em geral, reconhecendo-se que estes devem ser integrados no desenvolvimento de uma tecnologia potencialmente revolucionária.
Diversos projetos de investigação têm vindo a ser desenvolvidos para promover uma maior aproximação entre nanotecnologias e sociedade. Várias ferramentas participativas - júris de cidadãos, grupos de discussão, fóruns deliberativos, science shops e até abordagens artísticas - têm sido desenvolvidas ao longo dos últimos 25 anos no âmbito do envolvimento público com a ciência (Irwin, 1995). No caso das nanotecnologias, regista-se a utilização destas ferramentas e o desenvolvimento de inovações metodológicas para potenciar o envolvimento de públicos e sociedade na tomada de decisão (Quevedo, Ferreira & Invernizzi, 2016). De forma a integrar um conjunto mais plural de vozes, têm sido incorporados métodos performativos e artísticos que permitem abrir o “fórum participativo” aos cidadãos que não estão tão familiarizados com os conhecimentos, discursos e conceitos científicos (Carvalho & Nunes, 2018). Seifert (2017) mapeou diversas experiências participativas, ao nível nacional, relacionadas com as nanotecnologias. O Reino Unido avançou em alguns debates a montante através dos nano dialogues, em 2005, reunindo think tanks e cientistas em reuniões experimentais. Na Alemanha houve uma tentativa de concertação e inclusão em modelos participativos de diferentes stakeholders, e em França ocorreram ações diversas de promoção de diálogo com a sociedade. Em Portugal são raras as experiências de diálogo a montante com a sociedade, registando-se algumas ações participativas e associativas em áreas da saúde, frequentemente envolvendo associações de pacientes (Nunes et al., 2018).
Como iremos argumentar neste artigo, a participação pública em ciência e tecnologia apresenta distintas ecologias em função de diferentes contextos nacionais e institucionais, explorando-se dois estudos de caso sobre ecologias de participação em nanotecnologia em Portugal.
Estudos de caso: O projeto DEEPEN e o INL
O material empírico diz respeito a dois estudos de caso associados a diferentes ecologias de participação em nanotecnologias em Portugal. O primeiro consiste no projeto DEEPEN (Deepening Ethical Engagement and Participation in Emerging Nanotechnologies), que decorreu entre 2006 e 2009 e foi financiado pela Comissão Europeia. Tratou-se de um consórcio liderado pela Universidade de Durham e que contou com a participação de várias instituições europeias, nomeadamente o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
A ambição explícita do projeto DEEPEN era envolver stakeholders e o público “leigo”, e foi considerado um projeto inovador no desenvolvimento de formas a montante de participação pública em nanotecnologias. A equipa portuguesa organizou dois exercícios participativos : em 2008 foram realizados grupos de discussão com cidadãos leigos e representantes de organizações da sociedade civil potencialmente afetadas pelas nanotecnologias. Em 2009 organizou-se um Fórum Deliberativo com cientistas envolvidos no desenvolvimento de nanotecnologias, representantes de associações da sociedade civil e participantes nos grupos de discussões. Os grupos de discussão e o fórum deliberativo foram registados em formato áudio, transcritos na totalidade, e as transcrições foram anonimizadas para salvaguardar a identidade dos participantes. Dois dos coautores do artigo participaram no projeto DEEPEN na qualidade de investigador e líder da equipa portuguesa.
O segundo estudo de caso concerne o Laboratório Internacional Ibérico de Nanotecnologias (INL). O INL, inaugurado em 2009 na cidade de Braga, é uma das principais cristalizações da política portuguesa para as nanotecnologias na Península Ibérica (Fonseca & Santos Pereira, 2017), almejando a formação de investigadores, o desenvolvimento de parcerias com a indústria, a transferência de conhecimento em valor económico e emprego e a prevenção e mitigação de riscos nanotecnológicos (Boavida, 2017, p. 141).
O INL incorpora, no seu estatuto legal e estrutura organizacional, canais para a participação pública e para a avaliação das implicações éticas, legais e sociais das nanotecnologias. No entanto, na prática o envolvimento a montante dos cidadãos ainda não foi concretizado. Dessa forma, o exemplo do INL contrasta com o DEEPEN no sentido em que o objetivo principal é o desenvolvimento de inovações nanotecnológicas - a interação com o público é uma ambição secundária ainda não totalmente concretizada.
Além de análise documental, os dados relativos ao INL foram recolhidos através de observação participante em junho e setembro de 2013, quando um dos autores ficou hospedado na residência do INL durante uma semana. Foram realizadas 25 entrevistas semiestruturadas com investigadores seniores (incluindo diretores de grupos de investigação), investigadores juniores, estudantes de pós-graduação e técnicos e funcionários administrativos. As entrevistas foram transcritas na totalidade, codificadas e analisadas com o auxílio de software de análise qualitativa. Os dados apresentados resultam da investigação doutoral de dois coautores deste artigo, cujas dissertações de doutoramento incidiram totalmente ou em parte sobre o INL e o desenvolvimento de nanotecnologias em Portugal. Apesar de os autores terem beneficiado da abertura do INL ao trabalho etnográfico realizado por cientistas sociais, não podemos deixar de realçar que a visão desta instituição acerca do envolvimento público com nanotecnologias ainda é incipiente, e, como iremos ver na discussão, isto gerou um conflito entre nanoenactors e cientistas sociais.
Resultados
O projeto DEEPEN
Os grupos de discussão realizados pelo projeto DEEPEN em 2008 envolveram quatro perfis de participantes. Os grupos foram constituídos com base na ligação dos participantes a preocupações determinantes para o desenvolvimento de perspetivas sobre nanotecnologias. Cada par de grupos (em cada semana) incluía um grupo de participantes “preocupado” e outro definido como “estranho”. O grupo “preocupado” incluía membros de associações ou movimentos potencialmente afetados por nanotecnologias ; o grupo “estranho” incluía participantes sem um comprometimento com organizações, participando como cidadãos envolvidos em atividades potencialmente afetadas pelas nanotecnologias. O objetivo era que diferentes visões acerca das nanotecnologias entrassem em conflito, gerando uma discussão entre os grupos na sessão conjunta final.
Na primeira semana as sessões incluíram líderes nacionais de organizações de pacientes, alinhadas com o paradigma biomédico (Grupo I), assim como um grupo de praticantes de atividades associadas a estilos de vida naturais e alternativos, incluindo praticantes de Yoga e Reiki (Grupo II). Na segunda semana participou um grupo constituído por líderes de grupos ambientais, justiça social e grupos de ação local (Grupo III), e outro que incluía cidadãos associados a princípios de autonomia e agência e indivíduos com uma visão confiante da ciência e tecnologia (C&T) (Grupo IV).
Sete tópicos transversais emergiram nas discussões em todos os grupos : poluição e preocupações ambientais ; a novidade das nanotecnologias ; impactos na saúde humana ; desigualdades nacionais e internacionais no acesso às tecnologias ; acesso à informação ; preocupações com a regulação e legislação ; a incapacidade de controlar as nanotecnologias. Estes tópicos foram identificados através da análise temática das transcrições dos grupos de discussão e validados pela equipa de investigação do DEEPEN.
Os grupos de discussão permitiram que cidadãos sem conhecimento prévio das nanotecnologias pudessem construir as suas perceções com base nas suas experiências. Os grupos de discussão foram transformados para permitir que estas perspetivas não se limitassem a um mero registo argumentativo - introduziram-se métodos associados ao Teatro do Oprimido, para que impactos éticos e sociais sobre nanotecnologias fossem transformados em performances teatrais. O objetivo era expandir o repertório de formas de participação em ciência e tecnologia, incluindo formas de deliberação não-convencionais e performativas (Morrell, 2018), na esteira do reconhecimento do papel político das abordagens metodológicas (Carvalho & Nunes, 2013). As diferentes performances ilustram potenciais efeitos das nanotecnologias na sociedade e vidas dos participantes, permitindo-lhes expressar, através de recursos visuais e materiais, conflitos, imaginários, narrativas e ambivalências.
O grupo I simulou um Comité de Ética, discutindo uma inovação na terapia de cancro com base nas nanotecnologias. O grupo II preparou um sketch onde uma criança/cientista que tinha descoberto a nanotecnologia a oferecia a diferentes indivíduos, representando diferentes áreas de aplicação - medicina, militar, consumo. O grupo III preparou uma paródia do programa “Prós e Contras”, com um painel de oradores favorável ao desenvolvimento da nanotecnologia e uma plateia altamente cética. O grupo IV realizou uma adaptação dos mitos de Pandora e Prometeu aos debates sobre nanotecnologias - prometeu representava as promessas e vantagens das nanotecnologias e Pandora os potenciais perigos.
Em 2009 foi organizado um Fórum Deliberativo com 17 participantes. O grupo incluía membros dos grupos de discussão, nanoenactors e membros de associações de migrantes e de desenvolvimento, associações de estudantes, organizações médicas, associações de pacientes, institutos de medicina alternativa, movimentos para software livre e para a popularização da ciência. Os participantes abordaram temas relacionados com o controlo, regulação e políticas públicas e a economia política das nanotecnologias enquanto pontos de entrada para o debate.
A primeira sessão, realizada durante a manhã, incluiu quatro apresentações por dois “cidadãos preocupados”, participantes nos grupos de discussão, e por dois nanoenactors, centrando-se na área da saúde. Posteriormente, os participantes identificaram uma lista de problemas e preocupações e durante a tarde discutiram potenciais respostas, constituindo-se dois grupos.
O primeiro grupo discutiu temas relacionados com aplicações nano em produtos de consumo. Temas como quem regula e o contraste entre imperativos regulatórios e o mercado sugeriram uma preocupação com conflitos de interesse e confiança pública na regulação institucional. Registou-se uma discussão sobre os limites, custos e impactos perversos da regulação, implicando, por exemplo, a deslocalização da produção industrial para contextos com menor regulação.
O segundo grupo discutiu como diferentes áreas de investigação e desenvolvimento geram problemas distintos, ao passo que a diversidade de usos pode gerar variações nas possibilidades de controlo e regulação. A opinião geral era que a regulação deveria ser exercida numa diversidade de escalas e setores, reconhecendo-se limites para a possibilidade de controlar a complexidade e os efeitos indesejados. Outro tópico discutido foi como a nanotecnologia pode não ter um impacto direto na saúde humana, mas afetá-la negativamente através de aditivos na comida ou de novas formas de resíduos. Também se discutiram as tensões entre as prioridades da inovação científica e o princípio da precaução e entre os interesses dos cidadãos e dos mercados.
No final do dia, os grupos reuniram de novo. Cada grupo elegeu um membro para apresentar os resultados das discussões, incluindo recomendações preliminares que foram discutidas em grupo, preparando-se um documento com recomendações, distribuído e comentado pelos participantes durante uma semana. O documento final reconhecia que "Associados às nanotecnologias existem riscos transversais que acompanham qualquer tecnologia emergente e riscos que podem ser específicos de acordo com as várias áreas de intervenção, por exemplo : saúde, área alimentar, área agrícola, construção civil e área militar. Alguns deles contam com dimensões positivas que podem ser enumeradas : Descoberta ; Conhecimento ; Melhoria da qualidade de vida ; Desenvolvimento sustentável (poupança energética e redução do consumo)".
No seguimento destas considerações, foram realizadas recomendações gerais (o desenvolvimento de mecanismos para permitir o envolvimento de diferentes áreas científicas e a sociedade civil nas diferentes etapas do desenvolvimento das nanotecnologias) ; recomendações específicas sobre áreas como a investigação, a informação, a educação, a regulação e certificação. Até à data, este foi o único evento em Portugal a promover uma série de recomendações, desenvolvidas pela sociedade civil, acerca da investigação e desenvolvimento (I&D) em nanotecnologias.
Ciência e sociedade no INL
No âmbito deste estudo de caso foram realizadas entrevistas semiestruturadas com cientistas do INL para compreender a sua abordagem participativa, além da imersão etnográfica registada em diário de campo. O projeto inicial para a construção do INL contemplava não apenas o edifício existente mas também uma instalação que faria parte do programa português de popularização da ciência, o pavilhão Ciência Viva, albergando atividades de comunicação e divulgação científica. A projeção de uma instalação à parte evidencia a intenção de, por um lado, propiciar um “isolamento” dos cientistas que se devem dedicar a tarefas complexas, e, por outro lado, “terceirizar” as atividades de comunicação, isentando cientistas de um contacto mais direto com o público. É uma abordagem distante da visão do DEEPEN e de algumas das principais propostas para a integração de preocupações éticas e societais na I&D (Macnaghten, 2008).
Segundo os entrevistados, o pavilhão nunca foi construído devido ao redimensionamento do investimento que se seguiu à crise financeira, afetando a robustez das atividades de comunicação com o público. Estas estavam inicialmente previstas no plano de ação europeu e no programa científico apresentado no relatório do comité técnico criado para projetar a construção física e conceptual do INL (Technical Committee, 2006).
Contudo, a comunicação com o público não está totalmente ausente. Segundo os investigadores, são frequentes as visitas de alunos de escolas da região, e a grande maioria dos entrevistados salientou a necessidade de se ampliarem as atividades de comunicação e divulgação da nanotecnologia. Os diretores, entrevistados em 2013, indicaram que o pavilhão do Ciência Viva não estava esquecido e seria construído assim que o contexto político-económico melhorasse. No entanto, apesar de a crise económica ter sido aparentemente ultrapassada, o pavilhão ainda não foi construído. Os diretores foram enfáticos em apoiar atividades de comunicação, não apenas divulgação mas também a interação bilateral, sublinhando que estas ainda não ocorriam de forma institucionalizada por se tratar de uma instituição muito recente.
O programa científico e os impactos societais
O programa científico do INL está centrado em quatro grandes áreas : nanomedicina, nanoeletrónica, dispositivos e manipulação em escala nanométrica e nano para controlo ambiental, saúde e alimentação. Apesar do pouco tempo de funcionamento e do número ainda reduzido de investigadores, em 2013 o INL desenvolvia investigação em cada um destes campos, desde o nível fundamental até ao desenvolvimento de aplicações tecnológicas. Entrevistas realizadas por outro autor deste artigo, em 2017, confirmam que este quadro não foi alterado. O relatório de 2012 apontava já 47 publicações e diversas linhas de investigação em cada um dos campos (INL, 2012).
Apesar de o programa científico inicial e o organograma apresentado no website do instituto e no relatório anual contemplarem a avaliação dos impactos societais como parte das atividades do instituto, esta não tinha sido implementada até ao momento, devido ao pouco tempo de funcionamento do INL e à crise financeira :
Entrevistador : O que acha da aplicação do conceito de Avaliação Construtiva de Tecnologia aqui no INL ?
PSR13 : Creio que é positivo. Nós no nosso organograma temos lá uma caixinha.
Entrevistador : Isso, eu queria perguntar, eu vi que tem lá os impactos sociais.
PSR13 : Exatamente. Simplesmente, nesta fase ainda não contratámos ninguém para trabalhar nesta área, porque nos pareceu mais crítico primeiro avançar com algumas áreas tecnológicas. E então, depois, ou contratar ou colaborar com instituições que querem trabalhar nesta área. E o mais próximo é com a Universidade Católica de Lisboa. Que nos procurou e que está a querer começar a trabalhar com a parte normativa e ética das nano.
Entrevistador : O pessoal do Direito...
PSR13 : Sim, o pessoal do direito, que é uma área forte. Ali, como é que nós abordamos estes temas, não é ? Como é que vamos fazer esta abordagem, como é que se resolve. Portanto, é uma das áreas que nós temos que prosseguir. Eu diria que não foi a nossa prioridade inicial, mas não está esquecida.
Esta passagem confirma que o envolvimento com o público não é uma área prioritária, ao contrário do desenvolvimento tecnológico. Ainda que a direção tenha reiterado o compromisso em colaborar com especialistas da Universidade Católica, tal não era uma prioridade. A avaliação construtiva de tecnologia é encarada como algo a ser desenvolvido de forma isolada por atores externos. Potenciais estudos sobre os “impactos societais da nanotecnologia”, desenvolvidos por especialistas do Direito, centram-se na regulação dos nanomateriais, contrastando com o paradigma recomendado pela Comissão Europeia, que aconselha a inclusão do público a montante e uma maior integração dos cientistas sociais na I&D (European Comission, 2005).
Em 2017 o INL promoveu um encontro entre nanoenactors e cientistas sociais, no qual dois autores deste texto participaram (um enquanto orador e outro enquanto membro da audiência). Este evento, organizado pela secção temática “Conhecimento, Ciência e Tecnologia” da Associação Portuguesa de Sociologia (APS), incluiu dois cientistas sociais e dois nanoenactors do INL. Cada orador preparou uma breve apresentação e posteriormente houve uma discussão entre os oradores e a audiência. Os nanoenactors salientaram os impactos positivos das nanotecnologias - nanoterapias para o cancro, nanosensores para medir os níveis de poluição e várias outras aplicações, sugerindo que não existiam riscos significativos. Os cientistas agiram como comunicadores de ciência, apresentando uma visão otimista das nanotecnologias, envolvendo-se num utopismo tecnológico que foi desafiado pelos cientistas sociais, que tentaram aludir aos desenvolvimentos em envolvimento público com ciência dos últimos 30 anos. Este exercício ilustrou um choque entre diferentes visões sobre o papel do público, que iremos explorar na discussão.
Discussão
Os debates sobre nanotecnologias em Portugal ilustram distintas ecologias de participação. No caso do DEEPEN, houve uma tentativa de colocar os cidadãos a deliberar coletivamente acerca dos impactos éticos e sociais das nanotecnologias, permitindo-lhes produzir uma série de recomendações acerca da governação destas tecnologias. Os cidadãos tiveram um papel fundamental na definição do debate, identificação de impactos e riscos associados às nanotecnologias.
No caso do INL, existe uma cisão entre cientistas e cidadãos. Os primeiros têm a seu cargo a I&D e a definição dos riscos éticos, sociais, ambientais e de saúde. O público apenas precisa de ser “educado”, não sendo necessário nenhum tipo de input “cidadão” para aperfeiçoar a dimensão social das nanotecnologias.
Estas distintas ecologias de participação sobre nanotecnologias indicam diferentes formas de conceber o papel do público na construção do conhecimento científico. No âmbito do DEEPEN, houve uma tentativa de colocar em prática um paradigma associado à investigação e inovação responsáveis, que valoriza a participação dos cidadãos a montante. No caso do INL, assistimos à repetição do modelo do défice na compreensão pública de ciência, considerando-se que a perceção de riscos associados às inovações tecnológicas decorre da ignorância dos leigos (Santos Pereira, Carvalho & Fonseca, 2017). Para que a resistência seja mitigada, os leigos devem ser “educados” pelos nanoenactors, que têm acesso ao conhecimento científico e à definição dos impactos éticos e sociais das nanotecnologias.
O contraste entre o INL e o DEEPEN está associado a diferentes formas de entender o “público”, e a distinção levada a cabo por Mike Michael torna-se particularmente relevante. Michael distingue “público-em-geral” de “público-em-particular” - o “público-em-geral” é frequentemente contraposto à ciência em geral, encarado como anticientífico, ignorante ou oposto aos ideais da ciência. Já o “público-em-particular” é entendido como um coletivo que emerge em função de uma determinada tecnologia ou controvérsia sociotécnica, e nesse sentido a questão fundamental não é a de literacia científica (que justifica, no modelo do déficit, a “rejeição” de determinada opção tecnológica), mas sim a associação destes públicos com determinados interesses, instituições e projetos sociotécnicos (Michael, 2009).
Esta caracterização é útil para compreender diferentes ecologias de participação. No caso do INL, estamos perante o paradigma do “público-em-geral”, que deve ser “educado” acerca das potenciais vantagens dos desenvolvimentos tecnológicos. Já no caso do DEEPEN, houve a tentativa, através da utilização de metodologias inovadoras, de recrutar coletivos específicos para que estes pudessem fazer sentido das nanotecnologias de forma “situada”, recorrendo a um rol de associações com outros atores e visões da sociedade que sustentam as suas perspetivas. No caso do INL, o “público-em-geral” é entendido enquanto potencial impedimento ao rápido avanço da investigação, encarando-se a perceção pública das nanotecnologias como eventual ameaça à visão “moderna” da I&D, à imagem do que ocorreu com a biologia sintética (Marris, 2015).
Apesar de estarmos perante duas distintas ecologias de participação, no caso do projeto DEEPEN, o encontro entre cidadãos e nanoenactors também gerou uma série de assimetrias epistemológicas (Carvalho & Nunes, 2018). Os grupos de discussão permitiram aos cidadãos apresentar as suas perceções sobre nanotecnologias com recurso a modelos performativos inspirados no Teatro do Oprimido, registando-se uma flexibilidade na forma como as discussões evoluíram e como se desenvolveram as apresentações finais. No caso do Fórum Deliberativo, a inclusão de nanoenactors fez com que a discussão fosse determinada pelas suas frequentes intervenções, que “corrigiam” os leigos acerca das suas posições sobre nanotecnologias, determinando o rol de possibilidades para as diferentes perceções e implicações sociais e éticas.
A heterogeneidade epistemológica do DEEPEN está profundamente interligada com as opções metodológicas adotadas. Nesse sentido, argumentamos que as ecologias de participação não estão necessariamente associadas a “epistemologias cívicas” (Jasanoff, 2005), que caracterizam a relação entre ciência/sociedade ao nível nacional, mas sim a opções metodológicas e a associações com atores humanos e não-humanos, tecnologias de governação que “produzem” diferentes tipos de públicos (Carvalho & Nunes, 2018; Michael, 2009).
Os dispositivos de participação são caraterizados por um vasto rol de metodologias, possibilidades de expressão, elementos materiais, espaços físicos e institucionais, gerando diferentes resultados. Nesse sentido, a forma como o INL concebe o “público” não pode ser desligada da materialidade associada ao design arquitetónico e institucional. A organização do espaço físico e a não construção de um edifício dedicado ao envolvimento com a sociedade ilustra o papel da participação cidadã, considerada potencialmente nefasta para o progresso científico, colocando entraves éticos e sociais. Esses entraves devem ser desmistificados através de uma robusta intervenção dos nanoenactors, que consideram que a perceção de potenciais implicações sociais tem de ser informada pela especificidade das inovações nanotecnológicas, reforçando uma conceção de “público-em-geral” que pode potencialmente ameaçar ou atrasar o trabalho da instituição.
Os pontos anteriores estão também relacionados com a integração das ciências sociais e humanidades na investigação sobre nanotecnologias. Como tem sido reconhecido, esta integração na prática não ocorre de forma robusta (Viseu, 2015; Fonseca & Santos Pereira, 2017), e no caso português podemos afirmar que a lacuna no envolvimento público com a ciência se aplica também à relação entre nanoenactors e cientistas sociais. No caso do debate promovido pela APS, houve uma oposição entre cientistas sociais e nanoenactors no que concerne à relação entre ciência e sociedade. As várias tentativas, por parte dos cientistas sociais, de aludir à história da participação em C&T e ao desenvolvimento de modelos de envolvimento dos cidadãos em tecnologia a montante foram frequentemente rebatidas pelos “cientistas”, que se posicionaram na defesa do modelo clássico das “duas culturas”. As humanidades e as ciências sociais seriam incapazes de colocar questões éticas ou sociais, dado não disporem de conhecimentos técnicos suficientes para compreender as especificidades das nanotecnologias.
Apesar de terem sido desenvolvidos modelos de investigação e inovação responsáveis, na prática estes são implementados de forma limitada. Além disso, a difícil “integração” das ciências sociais e humanidades complica a introdução de modelos mais participativos de produção de conhecimento científico e tecnologias. A crise económica, enquanto justificação para a inexistência de um investimento em comunicação de ciência, indica que a participação não é considerada “prioritária” para os laboratórios de nanotecnologias, sendo um aspeto exterior que não deve interferir com o “verdadeiro” trabalho científico. Dessa forma, propomos o desenvolvimento de novas formas de participação pública com tecnologias emergentes. Esses fenómenos participativos poderão abrir espaço para a emergência de controvérsias sociotécnicas em torno das nanotecnologias, resgatando os debates éticos e sociais de contextos institucionais e permitindo o diálogo com grupos da sociedade civil. No caso português, o envolvimento social teve um papel determinante na evolução do debate sobre outras tecnologias, como é o caso da energia nuclear, um exemplo particularmente emblemático acerca da relação entre ciência e democracia (Santos Pereira et al., 2018).
Conclusão
O potencial impacto das nanotecnologias fez com que certas instituições, como a Comissão Europeia, tenham tentado desenvolver os debates sobre as implicações éticas e sociais destas tecnologias a montante (European Commission, 2005). O paradigma de investigação e inovação responsáveis levou ao desenvolvimento de modelos participativos que permitiram aos cidadãos interagir e deliberar acerca de nanotecnologias recorrendo a formas mais flexíveis de expressão. No entanto, a implementação destes modelos ainda encontra entraves : por um lado, os impactos dos exercícios participativos são limitados ; por outro lado, os espaços de investigação sobre nano, como o INL, não implementaram sistematicamente os exercícios de envolvimento público, relegando-os para formas ad hoc de relação com a sociedade, como a comunicação de ciência.
O contraste entre as ecologias participativas do projeto DEEPEN e do INL indica que, no caso português, são constituídos diferentes “públicos” das nanotecnologias : estamos perante uma série de abordagens, como a participação a montante ; o modelo do défice ; o confronto entre as “duas culturas” e a aparente indiferença dos movimentos sociais. As nanotecnologias contrastam com outras tecnologias no sentido em que há uma tentativa, por parte das instâncias de governação, de “fomentar” a participação através de exercícios desenvolvidos em espaços institucionais, antes mesmo de se constituírem grupos da sociedade civil orientados para a identificação dos riscos “éticos” e “sociais”. Para além da existência de um claro risco da cooptação destes exercícios enquanto formas de legitimação da I&D, coloca-se também a questão de saber se, no caso português, a implementação desta “engenharia participativa” não poderá ser um entrave à emergência espontânea de movimentos sociais sobre o tema, como aconteceu em certa medida em França com a emergência de grupos antinanotecnologia (Laurent, 2017). A estratégia, nesse caso, seria promover a “participação a montante” enquanto processo de “estabilização” de potenciais posições agonísticas e irreconciliáveis.
As instituições de governação supranacional, como a Comissão Europeia, promovem os exercícios participativos de forma ativa, receando um recuo por parte dos consumidores. Perante este cenário, é fundamental analisar como têm sido desenvolvidas as distintas ecologias de participação no contexto português e quais as possibilidades de coprodução de práticas de envolvimento público com as nanotecnologias que possam efetivamente contribuir para o seu desenvolvimento responsável.