No final de 2019, o primeiro caso de coronavírus foi reportado na China, na província de Wuhan, uma das sete cidades mais populosas do país. Quatro meses depois, impulsionada pelos fluxos de uma economia global, a covid-19 ganhou proporções mais relevantes, levando a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar estado pandêmico em março de 2020. O aprofundamento da gravidade do cenário significou sérias consequências para a saúde global e para as relações sociais. Isso porque o vírus pode ser identificado como uma espécie de “agência não-humana” (Latour, 2012), assim, como um objeto do campo biomédico cuja existência social se realiza na relação de mútua afetação com o mundo humano.
Tendo como referência tal cenário, a proposta do Editorial da revista Forum Sociológico identificou a oportunidade de provocar pesquisadores ao compartilhamento de estudos e análises sobre a pandemia junto à comunidade acadêmica internacional, pensando o contexto Brasil x Portugal, a fim de reunir empreendimentos de natureza empírica que demonstrem os impactos sociológicos, políticos e econômicos no controle endêmico no Brasil e em Portugal.
A perspectiva dos trabalhos que compõem o dossiê, frutos de pesquisas das Ciências Sociais, permite extrair, com originalidade, a importância e atualidade da discussão e, além disso, valorizar pesquisas que privilegiam o exercício de observação e explicitação da realidade para o enfrentamento e reflexão de uma perspectiva teórica e não o contrário (Geertz, 2008). Por outro turno, o dossiê apresenta para a comunidade acadêmica informações e reflexões a respeito da problemática que se expandiu a nível mundial, considerando contornos particulares, dadas especificidades e singularidades dos países em questão, bem como as características regionais de cada sensibilidade.
O processo de seleção dos artigos reunidos foi minucioso e demandou o dispêndio de uma força de trabalho comprometida. Ao fim, o dossiê apresenta investigações com níveis de excelência em pesquisa sociológica com viés empírico, o que condiz com a tradição da revista Forum Sociológico. Os artigos reunidos tratam de questões sensíveis decorrentes do cenário pandêmico, abordadas por meio da explicitação de conflitos de grupos sociais e bens fundamentais diversos envolvendo : povos indígenas ; liberdade religiosa ; controle de corpos ; privilégios e sistema de justiça ; gênero e mercado de trabalho.
É certo que a pandemia produziu impactos sobre a forma de relacionar da humanidade, sobretudo no Ocidente. Ao refletir sobre a estreiteza do Estado com a sociedade como um fenômeno dinâmico e local, num cenário global integrado, cujas partes se articulam por meio do estabelecimento de uma divisão do trabalho planetária e da livre circulação de bens, a noção de liberdade passa a figurar na fronteira desta ligação. No entanto, não é possível afirmar, sem um olhar mais detido, se houve mudanças significativas no que se refere às estruturas das sociedades em questão. Tal fator explicita a importância da observação sobre contextos locais de sociedades distintas cujas disposições muitas vezes reproduzem desigualdades sociais e históricas, sejam estas mais intensas, como no caso brasileiro, ou mais mitigadas, diante da melhor assimilação dos pressupostos de uma sociedade democrática, bem como da melhor percepção sobre liberdades individuais, no caso do país europeu (Dumont, 2000; Mota, 2014).
Ao tratar de um contexto específico da sociedade portuguesa, o exercício de liberdades ganhou a pauta no artigo apresentado por Jorge Botelho Moniz, intitulado Covid-19 em Portugal : A liberdade religiosa na era secular. O trabalho observou questões pertinentes às restrições à liberdade de religião, provocadas pelo estado de emergência sanitária. Segundo o autor, o primeiro momento de confinamento em Portugal explicitou a normalização da subordinação da essencialidade da saúde preponderante sobre valores e práticas de tradição seculares. Assim, a assimilação sobre a não essencialidade de atividades de cunho religioso no contexto pandêmico permitiu o esvaziamento de manifestações desta natureza no espaço público. Esse fato social possui relevância no que se refere ao rompimento de estruturas relacionais com uma cultura secular da sociedade portuguesa.
Apesar da projeção de consolidação de direitos sociais a partir de um viés igualitário no texto da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, e da Constituição da República Portuguesa, de 1976, as questões que tangenciam a pandemia em ambas as sociedades parecem não confirmar o alcance dessa esperança. Esses são fatores que explicitam a relevância de se reunir conhecimento a respeito da disseminação do vírus, assim como a respeito de seus efeitos, seja pela contaminação, seja pelo acirramento de práticas de controle que remontam desigualdades.
No caso brasileiro, a sociedade é historicamente marcada por desigualdades jurídicas, econômicas e sociais que estão diretamente relacionadas ao acesso desigual a direitos e serviços públicos. Nesse sentido, demonstrando que a pandemia não produziu impactos na estrutura da sociedade relacional brasileira, hierarquicamente construída (Da Matta, 1997), senão intensificou tal característica, o trabalho coletivo de Bárbara Gomes Lupetti Baptista, Fernanda Duarte, Michel Lobo Toledo Lima, Rafael Mario Iorio Filho e Roberto Kant de Lima, intitulado A justiça brasileira sob medida : A pandemia no Brasil entre direitos e privilégios, parte de pesquisas anteriores que corroboram o argumento de que a sociedade brasileira se estrutura de forma hierarquizada e reproduz um ethos aristocrático que não condiz com uma ordem republicana. Desse ponto, o artigo explicitou desigualdades jurídicas em relação às “filas” de acesso a direitos e medidas governamentais durante a pandemia, tais como vacinação, auxílio-saúde e a questão penitenciária. Com isso, o texto problematiza o modo como as instituições judiciárias no Brasil internalizam e (re)produzem desigualdades jurídicas e suas consequências para a esfera de direitos dos brasileiros, que restaram evidentes ao longo da pandemia.
O trabalho de Beatriz Fernanda Carvalho, Heloisa Alexandre Cizeski, Stephanie Tomé Lobozzo Dower, Inayara Santos Sampaio e Bárbara Pozza Scudeller trouxe uma perspectiva análoga, ao explicitar desigualdades sociológicas fomentadas pelas instituições de controle formal de indivíduos. O artigo A covid-19 e o controle dos corpos : Novas justificativas para o medo do outro relaciona as atuações institucionais no controle dos corpos a consequências distintas para sujeitos sociais indesejáveis. Assim, o texto explicita que fatores resultantes das políticas de distanciamento social impactaram em crises sociais urbanas, ampliando a vulnerabilidade de um grupo específico da população. A partir dessa lógica excludente, o medo do contágio serviu para refletir sobre a construção de processos individualistas que resultam no sentimento de medo do outro. Isso, tanto em relação à origem do outro quanto em relação à origem do medo por micropoderes articulados ao Estado e a políticas governamentais.
No contexto português a questão de gênero ganhou contornos ainda mais dramáticos a partir da pandemia. As autoras Thais França, Filipa Godinho, Beatriz Padilla, Mara Vicente, Lígia Amâncio e Ana Fernandes produziram o artigo Articulações entre vida pessoal, familiar e profissional no contexto das instituições de ensino superior e científicas : A experiência de investigadoras e docentes durante a pandemia da covid-19 em Portugal. De fato, a desigualdade de gênero em um cenário de isolamento social criou e ampliou violências materiais e simbólicas para com as mulheres nos mais variados contextos sociais. A partir desta máxima, o trabalho aborda as desigualdades de gênero em um contexto neoliberal. Para tanto, é levado em consideração o universo acadêmico como referencial destas relações. De acordo com a pesquisa, a pandemia da covid-19 exacerbou desigualdades, ao mesmo tempo que apresentou novos desafios para as mulheres acadêmicas. A relação da conciliação entre vida privada e profissional, somada à divisão desigual do trabalho administrativo, a expectativas dissemelhantes em relação ao trabalho emocional assim como ao assédio moral, impuseram novos contratempos para o equilíbrio das demandas da esfera pessoal e do trabalho na vida privada. Com isso, a partir de uma metodologia empírica, a pesquisa explana de que forma as mulheres experienciaram e negociaram a passagem para o trabalho remoto no que diz respeito às demandas da conciliação da vida privada e profissional.
Assim, como as limitações de tratamento e de acesso a direitos também geraram efeitos para a sociedade portuguesa, tais fatores foram valorizados nas observações das pesquisas reunidas neste dossiê, uma vez que levaram em consideração não somente distintos contextos nacionais, mas também peculiaridades locais que dialogam com questões estruturantes da desigualdade e os (re)arranjos proporcionados pela pandemia.
O foco na administração de conflitos por vias institucionais de igual modo estimulou o desenvolvimento de questões pertinentes às desigualdades, permitindo compreender de que forma essa dinâmica repercutiu no acesso a direitos ao longo da pandemia. De fato, perceber instituições de controle (ditas formais ou informais) como aquelas que se (re)organizam para conter (ou não) a expansão da pandemia contemplou práticas e suas consequências alinhadas às estratégias estabelecidas para o enfrentamento da covid-19. Afinal, as pesquisas aqui reunidas demonstram que o controle da letalidade do vírus nem sempre é o foco principal das políticas públicas adotadas (ou não) na direção destes (re)arranjos.
Tal cenário resta evidente a partir dos dados apresentados no artigo A situação de vulnerabilidade dos povos indígenas do Mato Grosso e em especial dos Xinguanos frente à covid-19 e às omissões estatais. O texto de autoria coletiva das pesquisadoras Cláudia Maria Guimarães Lopes de Castro, Vívian Lara Cáceres Dan, Évelin Mara Cáceres Dan e Eduarda Cristine Pedro Arruda trata de uma perspectiva empírica que aborda o reforço estatal à situação de vulnerabilidade de povos indígenas, em especial os Xinguanos do Mato Grosso, região Central do Brasil. Com isso, a pesquisa explicita uma atuação do Estado frente ao não atendimento de direitos fundamentais dessa população, concluindo que a ineficácia de ações protetivas refletiram no crescente número de óbitos decorrentes da covid-19, sendo o vírus mais letal entre a população indígena. Com isso, tais povos sofreram direta e indiretamente com a pandemia, somado ao descaso e descuido do governo brasileiro.
Conforme apresentado, os artigos aqui reunidos permitem analisar e refletir sobre as mobilizações de sistemas repressivos, coercitivos e mediadores na lida com conflitos no cenário pandêmico. A partir da exploração do conflito entre as expectativas morais dos sujeitos e os discursos oficiais, locais, científicos e normativos em disputa, a discussão sobre os desafios para contenção da pandemia proporciona um olhar sobre os impactos sobre direitos sociais, causados pelas restrições de mobilidade impostas durante o período de isolamento social.
Por outro lado, as pesquisas apresentadas se utilizam de variadas estratégias na construção dos dados. Os trabalhos apresentam inovações e adaptações do ponto de vista metodológico, levando em consideração as limitações de circulação e respeito à ordem sanitária, determinadas pelo período de excepcionalidade. Igualmente, o valor dado ao exercício descritivo e reflexivo para a construção dos dados se confirmou na verificação de como se dão os processos observados, com foco em seu desenvolvimento, desdobramentos e relação ao objeto da pesquisa.
Desta forma, o dossiê evidencia, problematiza e relativiza práticas institucionais em meio à pandemia, produzindo um diálogo acadêmico para discussão e reflexão sobre os impactos das desigualdades sociais, nas realidades de Brasil e Portugal. A compreensão de tais impactos, sob variados olhares empíricos, revelou-se de suma importância para o entendimento das consequências de relações desiguais, indicando caminhos para a adoção de futuras medidas de promoção de saúde e acesso à cidadania.
A proposta de organizar o presente dossiê surgiu ainda em 2020 ante a preocupação de pensar relações sociais em cenário de crise sanitária enquanto a pandemia ainda se desenrolava progressivamente do ponto de vista numérico, porém de forma alarmante em escala relacional. Por isso, o trabalho final apresentado foi construído em meio a tempos e circunstâncias particularmente difíceis. Por tudo isso, na condição de organizadores, gostaríamos de saudar todos aqueles que viabilizaram esta apresentação. A começar pelo Conselho Editorial da Forum Sociológico ante o acolhimento da proposta, especialmente à Brenda pela sempre gentil dissolução de nossas intermináveis dúvidas através de e-mails trocados em fusos horários justapostos. Nosso especial agradecimento aos autores que contribuíram com o envio de inúmeros manuscritos, assim como aos revisores anônimos pelas sugestões de aprimoramento dos textos.
Aos nossos leitores, esperamos que as reflexões apontadas possam auxiliar em presentes e futuros debates, bem como na construção de problemas de pesquisa que tenham potencial reflexivo acerca das consequências do controle pandêmico, seja em escala local, seja em escala global.