Introdução
A literatura acerca dos desafios da articulação entre a vida pessoal, familiar e profissional nas instituições de ensino superior e científicas mostra que, tal como acontece noutros contextos laborais, as exigências do trabalho doméstico e de cuidado têm um impacto mais negativo na carreira das mulheres do que na dos homens (Acker & Armenti, 2004; Santos & Cabral-Cardoso, 2008, p. 444). Mesmo no caso das profissões qualificadas, a maior parte do trabalho reprodutivo continua a recair sobre as mulheres (Amâncio & Santos, 2021). Assim, elas enfrentam mais obstáculos para corresponder ao modelo de ‘trabalhador ideal’ (Acker, 1990), que continua a ser pautado em torno da figura masculina : o/a investigador/a ou docente universitário/a inteiramente livre do trabalho doméstico e de outros compromissos fora da vida profissional, completa e exclusivamente absorto no seu trabalho (Dubois-Shaik & Fusulier, 2017). O trabalho doméstico e de cuidado são, portanto, incompatíveis com as demandas da carreira docente e de investigação - longas horas de trabalho, carga laboral excessiva, trabalho aos fins de semana, viagens constantes, entre outros.
Durante a pandemia da covid-19 (doravante pandemia), as dificuldades de articulação entre as exigências da vida familiar, pessoal particular e profissional foram exacerbadas (Boncori, 2020; Minello, Martucci & Manzo, 2021; Pereira, 2020). Estudos preliminares mostram como o confinamento de seis semanas na primavera de 2020 - em que as medidas de distanciamento social implementadas pela maioria dos países forçou a adoção do modelo de trabalho remoto nas instituições de ensino superior e científicas, bem como a suspensão das atividades presenciais em creches e escolas e ainda a interrupção dos serviços de apoios ao cuidado de adultos dependentes - resultou numa assimetria de género incomum relativamente à submissão de artigos para publicações científicas em jornais indexados e preprint servers, bolsas e candidaturas a novos projetos de pesquisa (Minello, Martucci & Manzo, 2021). Contudo, a cegueira de género das instituições de ensino superior e científicas levou a que o impacto das desigualdades de género já existentes e daquelas produzidas pela crise sanitária fosse desvalorizado. As referidas instituições esperaram que as mulheres continuassem a investigar, a ensinar e a cumprir as suas tarefas administrativas normalmente a partir de casa, sem que lhes tenha sido oferecido algum tipo de apoio extra, apesar do inevitável aumento da sua carga de trabalho doméstico.
O presente artigo busca analisar como, no contexto da pandemia, as docentes e investigadoras negociaram a passagem para o trabalho remoto no que diz respeito à articulação entre vida pessoal, familiar e profissional. Metodologicamente, recorremos a uma abordagem mista, combinando métodos quantitativos e qualitativos com triangulação de dados : a) aplicação de inquérito online com mulheres e homens, objetivando comparar a experiência de ambos os grupos durante a pandemia em relação ao trabalho docente e de investigação ; b) entrevistas em profundidade com 17 investigadoras e docentes para examinar de maneira mais detalhada os desafios profissionais, familiares e pessoais e estratégias de enfrentamento ao longo da crise sanitária ; e c) dois grupos focais com homens e mulheres para confrontar as suas experiências e perceções sobre a pandemia e as suas carreiras de docência e de investigação.
Considerando a conjuntura pandémica, discutiremos na secção seguinte os desafios da articulação entre vida pessoal, familiar e profissional no contexto neoliberal de empresarialização, mercantilização e privatização das instituições de ensino superior e científicas que promovem a implementação de sistemas de auditorias e de avaliações metrificadas, resultando na intensificação do trabalho e no aumento da precariedade laboral (Gill, 2010; Pereira, 2017).
Em seguida, apresentamos a metodologia adotada e analisamos os nossos resultados. Apesar de as perceções das docentes e investigadoras sobre os impactos das transformações impostas pela crise sanitária nas suas experiências laborais não serem homogéneas, identificamos uma denúncia implícita da fragilidade do discurso acerca da flexibilidade do trabalho de docência e investigação.
O impacto da pandemia na articulação entre vida pessoal, familiar e profissional nas investigadoras e docentes
A racionalidade neoliberal presente nas instituições de ensino superior e científicas apresenta o trabalho docente e de investigação como flexível, adaptável e autónomo, facilitando, portanto, a articulação entre vida pessoal, familiar e profissional (Toffoletti & Starr, 2016). Uma das suas vantagens seria a possibilidade e a liberdade de trabalhar em qualquer lugar e em qualquer horário (Rafnsdóttir & Hejistra, 2013, p. 289), o que permitiria acomodar mais facilmente as exigências da vida pessoal e familiar. Além disso, para mães e pais, a correspondência entre as férias do calendário das instituições de ensino superior e científicas e o calendário escolar seria vista como um aspeto promotor da articulação entre vida familiar e profissional (Dickson, 2018). No estudo de Engen, Bleijenbergh e Beijer (2019) sobre a experiência da parentalidade nas instituições de ensino superior holandesas, a flexibilidade também é referida como vantajosa dada a maior facilidade em contratação a tempo parcial sem que isto incorra em grandes prejuízos para o desenvolvimento da carreira, quando comparado com outras profissões. No entanto, têm sido vários os estudos que evidenciam o facto de, apesar desta ‘flexibilidade’, docentes, investigadoras e investigadores sentirem que não têm tempo suficiente para completar todo o trabalho que há para fazer, promovendo a penetração da vida profissional na vida pessoal e familiar (Rafnsdóttir & Heijstra, 2013).
A interiorização do discurso da ‘flexibilidade’ do trabalho de docência e investigação faz com que a pressão para a disponibilidade constante para as solicitações da vida profissional não seja apenas imposta externamente, mas também internamente (Dickson, 2018; Santos & Cabral-Cardoso, 2008). A intensificação, no tempo, e a extensificação, no espaço, do trabalho docente e de investigação (Gill, 2010) resultam numa colonização do espaço e do tempo da vida pessoal e familiar pelas exigências da vida profissional. Neste contexto, Gill (2010) refere-se às instituições de ensino superior e científicas no contexto neoliberal como “instituições sem paredes”, cujo trabalho pode ser, e é, feito não apenas no espaço institucional per si e dentro do horário laboral determinado, mas em todo o lado e a qualquer hora. Neste sentido, as fronteiras entre espaço e tempo da vida profissional e espaço e tempo da vida pessoal e familiar são dissolvidas, esperando-se que docentes, investigadoras e investigadores estejam sempre disponíveis e contactáveis (Pereira, 2020), ainda que tenham outros compromissos pessoais e/ou familiares.
Assim, o discurso da ‘flexibilidade’ laboral nas instituições de ensino superior e científicas legitima a articulação entre vida pessoal, familiar e profissional como uma responsabilidade individual. Dentro desta lógica, as instituições de ensino superior e científicas consideram-se organizações promotoras desta articulação, uma vez que alegadamente oferecem um horário de trabalho flexível. A não articulação adequada e ideal destas esferas seria, portanto, uma falha individual (Rafnsdóttir & Hejistra, 2013, p. 291), resultante da inabilidade das docentes e investigadoras para gerirem de forma apropriada o tempo disponível e priorizarem escolhas individuais no que respeita à vida familiar e/ou pessoal (Toffoletti & Starr, 2016).
Esta lógica ignora, por um lado, que a responsabilidade pelo trabalho doméstico no seio da vida familiar recai principalmente sobre as mulheres, e que, portanto, elas precisam de um maior esforço para responder às solicitações da vida profissional. Por outro lado, invisibiliza a crescente intensificação do trabalho de docência e investigação. Como afirmam Santos e Cabral-Cardoso (2008), à medida que as longas horas de trabalho são ‘normalizadas’ como parte da cultura laboral das instituições de ensino superior e científicas e que as desigualdades de género em relação ao trabalho reprodutivo se mantêm, a tensão na articulação entre vida familiar, pessoal e profissional aumenta. A autora e o autor concluem que a cultura do trabalho docente e de investigação nas instituições de ensino superior e científicas não possibilita uma articulação satisfatória entre as demandas da vida pessoal, familiar e profissional.
Santos e Cabral-Cardoso (2008) demonstram como, no contexto das instituições de ensino superior portuguesas, as mulheres enfrentam mais desafios do que os homens nesta articulação, dado o peso do trabalho doméstico e da precariedade das políticas nacionais de articulação trabalho-família. No mesmo sentido, Amâncio e Santos (2021) argumentam que a ideologia de género remanescente da ditadura em Portugal ainda impacta negativamente na progressão da carreira das mulheres qualificadas, uma vez que reforça e legitima uma divisão extremamente desigual dos tempos dedicados ao trabalho doméstico e de cuidado por mulheres e homens.
No contexto da crise sanitária, as transformações impostas à rotina das instituições de ensino superior e científicas, nomeadamente a adoção do trabalho remoto, intensificou ainda mais a dissolução entre as fronteiras espaciais e temporais entre vida pessoal, familiar e profissional. Durante os períodos de confinamento, o trabalho docente e de investigação passou a ser integralmente realizado a partir de casa e a qualquer hora do dia (Pereira, 2020, p. 214). Até ao momento da escrita deste artigo, a rotina destas instituições não regressou à ‘normalidade’. Em simultâneo, houve um aumento do trabalho doméstico e de cuidado e o aparecimento de novas solicitações na vida pessoal e familiar, devido ao encerramento das infraestruturas e serviços de apoio à realização do trabalho doméstico, ao cuidado das crianças e a pessoas adultas em situação de dependência. Dada a desigual distribuição do trabalho reprodutivo entre os géneros, coube às mulheres encarregarem-se da maior parte destas novas exigências. Assim, durante a pandemia, os desafios da articulação entre vida pessoal, familiar e profissional para as docentes e investigadoras tornaram-se ainda mais complexos.
Apesar deste cenário negativo, que contribuiu para o aumento do stress e da exaustão das mulheres (Boncori, 2020), muitas foram as análises que ‘celebraram’ as vantagens trazidas pela pandemia no que diz respeito a promover a articulação entre a vida pessoal, familiar e profissional (Buomprisco, Ricci, Perri & Sio, 2021; Lemos, Barbosa & Monzato, 2021). Em geral, argumenta-se que houve uma maior participação dos homens em relação às responsabilidades do trabalho doméstico (Mello e Tomei, 2021), bem como uma melhoria do tempo dedicado à família (Ferreira, 2020). Num estudo quantitativo realizado com cientistas da Áustria, Alemanha e Suíça (n = 13 316), Raabe, Ehlert, Johann e Rauhut (2020) afirmam que as/os participantes sentiram uma melhoria na articulação entre as solicitações da vida familiar e profissional durante o confinamento no primeiro semestre de 2020.
Considerando estas duas perspetivas distintas diante do impacto das imposições da crise sanitária na articulação entre a vida pessoal, familiar e profissional, analisaremos como, no caso português, as docentes e investigadoras experienciaram esta situação.
Metodologia
O presente artigo resulta do projeto “SAGE19 : Scientific and Academic Gender (in)equality during Covid19” financiado pela Fundação para Ciência e a Tecnologia no âmbito do apoio especial ‘Gender Research 4 Covid-19’, número 91. Metodologicamente, segue uma abordagem mista que contempla um inquérito online, entrevistas e grupos focais. Seguindo um plano sequencial, inicialmente realizou-se a componente quantitativa e em seguida a qualitativa. Posteriormente, os resultados dos dados quantitativos foram lidos à luz dos dados qualitativos (Creswell & Clark, 2011). O trabalho de campo foi conduzido entre dezembro de 2020 e fevereiro de 2021. O estudo foi previamente aprovado pela Comissão de Ética e teve o parecer favorável do Encarregado da Proteção de Dados do Instituto Universitário de Lisboa, ISCTE-IUL.
A recolha de dados teve início apenas depois de as/os participantes serem informadas/os dos objetivos da investigação e da possibilidade de interromperem a participação no estudo a qualquer momento, e de o consentimento informado ser obtido (escrito para o inquérito e oral para as entrevistas e grupos focais). A confidencialidade e o anonimato das/os participantes também foram assegurados. Por este motivo, os nomes utilizados neste artigo são fictícios.
O questionário online contou com a participação de 607 académicas/os, em que 72 % (n = 436) se identificam como mulher e 28 % (n = 171) se identificam como homem. A idade das/os participantes varia entre os 30 e os 76 anos (M= 47,5, DP= 9,56). Quase metade das/os participantes (48 %) é docente de carreira e aproximadamente um quarto (22 %) são investigadoras/es contratadas/os. Das/os participantes 9 % são professoras/es convidadas/os ou contratadas/os, 6 % são investigadoras/es contratadas/os ou bolseiras/os e docentes contratadas/os, 4 % são investigadoras/es de carreira e 5 % são bolseiras/os de investigação científica.
Mais de metade das mulheres (55 %) e dos homens (53 %) tem filhas/os no seu agregado familiar. Na maioria dos casos, são filhas/os jovens, com idade não superior a 12 anos (vd. Quadro 1), o que não é surpreendente atendendo à média de idades das/os participantes. Nesta faixa etária, as crianças ainda não são totalmente autónomas e, por isso, requerem cuidados e atenção frequentes, implicando uma carga de trabalho doméstico acrescida para as/os seus/as cuidadoras/es.
A componente qualitativa contemplou 17 entrevistas em profundidade com mulheres investigadoras e docentes. Seguiram-se, depois, dois grupos focais mistos - o primeiro com três homens e cinco mulheres e o segundo com três homens e uma mulher. O recrutamento das/os participantes deu-se através do método bola de neve, divulgação de convites pelas nossas redes pessoais, e através da participação no inquérito online, onde, após resposta ao mesmo, era possível manifestar interesse em participar na parte qualitativa do estudo.
As entrevistas semiestruturadas, com uma duração entre 30 e 90 minutos, tinham como objetivo conhecer o impacto da pandemia na vida pessoal, familiar e profissional das docentes e investigadoras. Os grupos focais, com uma duração de 60 minutos cada, almejaram aprofundar as discussões sobre os principais desafios impostos pela pandemia na carreira de docência e investigação e identificar as estratégias utilizadas para lidar com a situação considerando as diferenças de género.
Tantos os grupos focais como as entrevistas foram conduzidas viam Zoom pelas investigadoras do projeto, gravados (áudio e vídeo) e posteriormente transcritos integralmente pelas autoras, um processo que nos permitiu proceder a uma primeira análise do material recolhido. Posteriormente, os dados foram codificados, seguindo uma análise temática com recurso ao MAXQDA. Para a codificação, as entrevistas foram lidas várias vezes pelas autoras e os códigos emergentes foram comparados com o objetivo de relevar os conteúdos principais, significados, temas e palavras-chave abordados nos discursos das/os participantes. Os temas mais recorrentes foram codificados em categorias, que foram seguidamente reavaliadas para identificar redundâncias, afinidades e inadequações e consolidar as categorias principais (Prazeres, 2017). Para este estudo, abordaremos somente o tema da articulação entre vida pessoal, familiar e profissional.
Apresentação e discussão dos resultados
Indo ao encontro dos estudos que relatam vantagens da pandemia, algumas das entrevistadas referem que poder trabalhar a partir de casa permitiu-lhes estar mais tempo com a família, como é o caso de Ana, principal cuidadora da filha de três anos :
Em termos pessoais, (foi positivo) poder passar mais tempo com a minha filha - para mim pessoalmente, e para ela também, não é ? Porque, de facto, funcionamos muito bem as duas, e por isso também não custou passarmos as duas em casa, porque estamos muito habituadas a fazer as coisinhas. Como lhe disse, gosto muito de brincar, de fazer trabalhos manuais. Claro que antes fazíamos muita coisa fora de casa e podíamos ir ver teatro para miúdos ou um concerto para miúdos, ou ela tinha aulas de música todas as semanas, esse tipo de coisas. Íamos sempre sair ao fim de semana, nem que fosse andar só na rua com amigos, e assim. Portanto, não me foi nada custoso - aliás, quando ouvi na rádio que as creches iam abrir a meio de maio, eu lembro-me de pensar : ‘Que horror ! Já ? Não quero separar-me dela !’ Ana, Investigadora e Docente, Estudos Literários e de Tradução
Contudo, esta valorização da oportunidade de uma maior convivência com a família apresenta-se mais como uma denúncia da intensificação da docência e da investigação no contexto da neoliberalização das instituições de ensino superior e científicas do que propriamente como uma vantagem trazida pela pandemia. Efetivamente, se, apesar do aumento da carga de trabalho doméstico, foi possível articular melhor as exigências da vida pessoal, familiar e profissional durante o confinamento, podem questionar-se as supostas vantagens que a ‘flexibilidade’ do trabalho docente e de investigação proporciona. Há, no discurso de Ana e de outras entrevistadas, uma denúncia implícita de que a articulação entre vida familiar, pessoal e profissional é, geralmente, uma subordinação dos tempos da vida pessoal e familiar ao tempo da vida profissional, e não propriamente uma articulação equilibrada entre eles (Santos & Cabral-Cardoso, 2018).
O depoimento a seguir, de Maria, uma investigadora na área de biologia, refere-se, não à sua experiência como ‘mãe-cuidadora’, mas à de ‘filha-cuidadora’ de uma mãe acometida por uma doença terminal. A diminuição forçada do ritmo de trabalho devido ao fechamento das instalações da sua instituição de investigação é percebida por ela como conveniente porque lhe permitiu acompanhar mais de perto a mãe.
Quando a pandemia chegou, a imposição da desaceleração para mim foi benéfica. Eu estava a um ritmo alucinante, não só a nível profissional como pessoal, e acho que a pandemia, ao obrigar-nos a parar, para mim foi benéfico. Portanto, obrigou-me a parar. Eu estava com uma carga de stress brutal sem ter consciência, e essa desaceleração soube-me bem. (…) Numa primeira fase, acho que a parte positiva foi a desaceleração, o maior contacto familiar ; foi o ter mais tempo para a minha mãe, fazermos passeios higiénicos em família. Acho que trouxe essa consciência. Maria, Investigadora, Biologia
O ‘ritmo alucinante’ de trabalho referido por Maria traz uma vez mais a atualidade dos debates sobre a intensificação do trabalho de investigação e docência (Gill, 2010) e a alienação que esta rotina promove (Pereira, 2017). Aquilo que é percebido como uma vantagem resultante das disrupções colocadas pela pandemia advém da quebra dos ritmos de trabalho excessivos impostos pela cultura da performatividade nas instituições de ensino superior e científicas (Gill, 2010).
Os depoimentos das nossas entrevistadas também ilustram que a desaceleração dos ritmos de trabalho não promoveu melhor qualidade nas suas vidas pessoais e familiares. O caso de Bárbara, a seguir, é emblemático neste sentido ; ela considera que o suposto tempo transcorrido com a família não lhe foi de facto dedicado :
Também não era um trabalho imposto pela instituição, era uma questão pessoal, das metas que precisava de atingir, para progressão na carreira (…). Eu por acaso tenho pena de não poder dizer, como algumas pessoas : ‘Ai que bom, eu passei muito tempo com os meus filhos.’ Eu passei muito tempo com os meus filhos, mas estava muito stressada, porque estava a tentar acabar o meu paper e depois escrever a minha grant. Então não sinto que tenha sido um tempo de qualidade, foi um tempo com bastante ansiedade e tenho pena de não ter usufruído dessa parte, mas de facto não conseguia. Na altura em que foi não dava. Bárbara, Investigadora, Ciências Médicas
Bárbara é investigadora precária, com um contrato de pós-doutoramento, e durante a pandemia estava a procurar outras oportunidades de contrato, nomeadamente na Alemanha, devido à configuração da sua vida familiar. A crise sanitária trouxe também uma crise económica, que inevitavelmente afetará os recursos para a ciência e a educação. As lógicas de responsabilização individual pela carreira por parte das/os docentes e investigadoras/es, em especial para aquelas/es em situação de precariedade contratual, contribuíram para que a invasão do espaço da vida pessoal e familiar pelas exigências da vida profissional fosse ainda mais intensa. No contexto pandémico, em que estas fronteiras entre vida pessoal e familiar e vida profissional estavam praticamente dissolvidas e que as possibilidades laborais de futuro eram (são) incertas, a pressão constante para assegurar novas oportunidades de trabalho não permitia a Bárbara aproveitar o tempo em que estava em família. A ‘flexibilidade’ de gerir a carreira, ao invés de propiciar melhores condições para a articulação entre vida pessoal, familiar e profissional, aumenta a angústia e a exaustão das mulheres docentes e investigadoras precárias, interferindo nas suas dinâmicas familiares. Desde antes da pandemia, a necessidade de ‘desaceleração’ dos intensos ritmos do trabalho docente e de investigação, decorrentes da pressão para atingir altos níveis de produtividade baseados em indicadores bibliométricos convencionais (i.e., publicação de artigos em revistas indexadas, desenvolvimento de patentes, captação de financiamentos internacionais, entre outros), era reclamada por feministas académicas. Esta reclamação prendia-se não apenas com o bem-estar das docentes e investigadoras, mas também com a própria qualidade do trabalho académico desenvolvido (Mountz et al., 2015). No contexto pandémico, a urgência pela desaceleração tornou-se ainda mais patente.
As queixas das nossas entrevistadas em relação à pandemia relacionam-se também com o facto de, para algumas, a passagem das aulas presenciais para o formato remoto ter acarretado um incremento do trabalho de docência no que diz respeito à adaptação do material de ensino, à aprendizagem de novas competências didáticas e ao apoio emocional ao corpo estudantil :
(…) as aulas eram alternadamente presenciais e online (…). Claro que eu me sentia mais tranquila na semana não presencial ; na semana presencial, eu tinha a minha turma de 26 alunos em duas salas (…) para eles estarem espaçados. Então estavam em duas salas, o que tornava também essas aulas presenciais cansativas (…). Entretanto começaram a aparecer alunos confinados, ou por causa de irmãos, ou por causa de pais, ou por causa... Então era Teams, sala e outra sala. E era ‘OK, a ver se não me esqueço de dizer nada. Aqui tenho de dizer isto, tenho de dizer, tenho de dizer... Agora nesta turma, também tenho de dizer, tenho de dizer aqui, tenho de dizer ali… Brenda, Investigadora e Docente, Informática
Uma das coisas que eu fiz foi estreitar a minha relação com eles (alunos) por email e individualmente sempre que queriam falar comigo para tirar dúvidas sobre os textos. Isso acontecia-me, era uma coisa individual (...). Uma coisa teria sido dar as aulas, ir lá dizer a matéria, dialogar sobre aquelas questões, fazer os debates, eles fazerem as suas apresentações e as coisas acontecerem dessa forma naquele contexto e naquele horário preciso ; outra coisa é depois, numa situação destas, assegurar que aquela pessoa está a conseguir de facto atingir os objetivos a que aquela unidade curricular se propõe. E portanto isto pressupunha estar a trabalhar quase com um a um. Cármen, Investigadora e Docente, Sociologia
A opção das instituições de ensino superior e científicas em continuar com as atividades remotas, num contexto em que as estruturas de apoio para o trabalho doméstico e de cuidado foram suspensas (i.e., creches, escolas e serviços de apoio a pessoas adultas em situação de dependência e de limpeza), penalizou diretamente as docentes e investigadoras. Como temos vindo a argumentar, estas responsabilidades continuam a recair principalmente sobre as mulheres. O mesmo se verificou em Portugal, como relata Lúcia, mãe e principal responsável pelo filho de quatro anos :
Desde o ano passado, com a situação que estava a decorrer nos outros países europeus, eu percebi que iríamos por esse caminho. E claro que, fazendo investigação sendo mãe solteira, uma vez que estou praticamente a 100 % com o meu filho, sabia que iria estar muito limitada, porque é uma criança e exige muita atenção ; além de estar ainda muito dependente, tem muita energia. (…) Deixei de dar aulas, passei isso para a minha coordenação, uma vez que tive de ficar com o meu filho em casa, e era impossível eu conciliar com uma criança de quatro anos na altura (…). Ainda tentei trabalhar durante a noite, consegui durante as primeiras duas semanas, mas depois o cansaço era tanto que uma pessoa durante o dia não tem paciência para apoiar as crianças ; depois é a escola online, depois temos de ir ao parque correr - fora as tarefas domésticas, porque estamos supostamente em casa. Lúcia, Investigadora, Farmácia
Apesar de em alguns casos ter havido um crescimento da participação masculina nesta esfera de trabalho, nem todas as mulheres se encontram em agregados duoparentais (Pereira, 2020). Assim, as mães solteiras, como era o caso de Lúcia, ficaram ainda mais sobrecarregadas com o trabalho reprodutivo, uma vez que não tinham qualquer hipótese de partilhar as responsabilidades.
Além disso, os nossos dados quantitativos corroboram esta ideia sobre o impacto desigual do trabalho doméstico e de cuidado entre mulheres e homens. Em primeiro lugar, os dados revelam que as mulheres têm maiores níveis de preocupação com o assegurar o cuidado de crianças e/ou pessoas em situação de dependência (M= 6.84,DP= 2.84) do que os homens (M =6.21,DP= 2.96), (t(521) = -2.29,p= .02). Tal facto pode estar relacionado com a divisão desigual do trabalho de cuidado, atribuindo normalmente às mulheres essas responsabilidades. E, mesmo quando existe partilha entre o casal, os homens com filhas/os contam com mais apoio das suas companheiras para a realização do trabalho doméstico e de cuidado (M= 4.82,DP= 0.57) do que as mulheres com filhas/os (M= 4.18,DP= 1.02), (t(234,201) = 6.53, p < .001).
Em segundo lugar, as nossas análises permitem perceber como a maternidade afeta de maneira qualitativamente diferente a experiência de articulação entre vida pessoal, familiar e profissional das mulheres com filhas/os a seu cargo e das mulheres sem filhas/os a seu cargo. Ao inquirirmos sobre a eficácia desta articulação num regime de trabalho remoto, as mulheres com filhas/os consideram que trabalhar a partir de casa não permite uma conciliação adequada das suas atividades de docência e investigação (M= 2.56, DP= 1.33), ao contrário das mulheres sem filhas/os (M= 3.17, DP= 1.39), (t(434) = -4.70, p < .001). Isto pode estar relacionado com uma maior pressão sentida pelas docentes e investigadoras que são mães para continuar a assegurar as tarefas domésticas e/ou os cuidados dos/as filhas/os quando estão em casa, mesmo dentro do horário laboral habitual. Talvez por este motivo, a transição para as atividades remotas forçada pelas medidas de combate à pandemia tenha levado mais mulheres com filhas/os (85 %) do que mulheres sem filhas/os (60 %) a dedicar um maior número de horas às tarefas domésticas e/ou de cuidado (ꭕ 2 (2, N= 435) = 35.35, p < .001), dificultando a resposta às solicitações da vida profissional.
O trabalho de cuidado emerge como uma categoria fundamental para analisar o impacto da pandemia na carreira das docentes e investigadoras. De maneira geral, o cuidado refere-se às práticas materiais e psicológicas realizadas para responder concretamente às necessidades das pessoas, abarcando desde uma dimensão física de contacto corporal, por exemplo, a uma dimensão relacional de escuta e interação (Hirata, 2016). Portanto, trata-se de “uma expressão de apoio social intenso, um atributo fundamental para a manutenção da vida, conjuntamente com a solidariedade social” (Contatore, Malfitano & Barros, 2019). A literatura tem mostrado que o cuidado engloba diferentes níveis que vão desde o autocuidado a uma postura política e ética em relação ao outro (Hughes, Clouder, Pritchard, Purkis & Barnes, 2007).
No caso de Cármen, a atenção quase individual que ela dedica às/aos estudantes na tentativa de responder às suas demandas afetivas e de atenção materializa-se numa prática de cuidado que se converte em “trabalho emocional” (Hochschild, 1983). A invisibilidade do trabalho emocional na docência, apesar do nível de stress que acarreta e da carga extra de tarefas para as docentes, tem sido largamente debatida na literatura (Lawless, 2018). No caso das docentes e académicas com filhas/os, os depoimentos das nossas entrevistadas mostram que o cuidado realizado na vida privada não pode ser dissociado da esfera pública, sendo este entendimento fundamental para uma conceção mais igualitária das instituições de ensino superior e científicas e da sociedade em geral.
Todavia, importa desconstruir duas ideias imprecisas sobre as mulheres : a primeira é a de que todas as mulheres são mães e a segunda é a de que durante a pandemia as mulheres sem filhas/os não possuíam qualquer tipo de responsabilidades para além do trabalho de investigação e docência, e que, por isso, poderiam dedicar-se inteiramente às demandas laborais. Neste sentido, Maria, a quem chamámos anteriormente ‘filha-cuidadora’, afirma :
Eu, durante o confinamento, tinha a situação de ter a minha mãe doente, e nós tínhamos uma gestão muito em função da doença dela, da necessidade de ir ao hospital aos tratamentos. Portanto, essa adaptação ou essa imposição já seria feita, mesmo sem confinamento, e eu, o meu irmão e o meu pai organizámo-nos em função das idas ao hospital aos tratamentos. Maria, Investigadora, Biologia
Maria revela que, apesar de não ser mãe, as rotinas da sua vida profissional foram afetadas pelas solicitações de cuidado dispensadas à mãe. O avanço das discussões da maternidade como um dos principais obstáculos à carreira académica das mulheres (Amsler & Motta, 2019; Baker, 2012; Ward & Wolf-Wendel, 2016) tem sido fundamental para estimular as instituições de ensino superior e científicas a adotarem medidas que promovam a articulação entre a vida pessoal, familiar e profissional. Contudo, é preciso não perder de vista que o trabalho de cuidado se estende para além da maternidade. O aumento da expectativa de vida na Europa, juntamente com o enfraquecimento do Estado de bem-estar social, tem feito com que cada vez mais filhos/as em idade adulta tenham de assumir a responsabilidade do cuidado de mães e pais em situação de debilidade ou de dependência (Bárrios, Marques & Fernandes, 2020; Naldini, Pavolini & Solera, 2016). A lógica da atribuição do trabalho de cuidado sobretudo às mulheres também opera neste cenário, fazendo com que estas responsabilidades sejam imputadas principalmente às filhas (Haberkern, Schmid & Szydlik, 2015). Neste sentido, docentes e investigadoras que não são mães podem ter outras responsabilidades ligadas ao trabalho de cuidado que impactam igualmente na sua vida profissional.
Considerações finais
As nossas discussões procuraram contribuir para a produção do conhecimento acerca do impacto da pandemia na carreira das docentes e investigadoras nas instituições de ensino superior e científicas portuguesas. Mais especificamente, analisam como elas lidaram com os desafios impostos pela crise sanitária relativamente à articulação entre a vida pessoal, familiar e profissional. Para isso, considerámos o modo como a distribuição desigual do trabalho reprodutivo entre homens e mulheres e a (suposta) flexibilidade laboral das instituições de ensino superior e científicas no contexto neoliberal moldaram a experiência destas mulheres.
Os depoimentos acerca do impacto provocado pelo aumento das obrigações com o trabalho doméstico e de cuidado por parte das nossas entrevistadas reforçam o que tem sido debatido na literatura até ao momento : em Portugal, a pandemia também afetou de forma significativa o trabalho das docentes e investigadoras. Diante da decisão das instituições de ensino superior e académicas de adotarem o trabalho remoto, em muitos casos sem oferecer o apoio adequado para esta transição, as adaptações necessárias para esta modalidade de ensino e as interrupções nos planos de investigação, juntamente com o aumento das solicitações do trabalho doméstico e de cuidado, configuram-se como obstáculos para a manutenção dos ritmos de trabalho dessas mulheres. Ainda que também tenham sido ressaltados aspetos ‘positivos’ trazidos pela pandemia, uma análise mais aprofundada destes depoimentos revela uma denúncia implícita da insustentabilidade das rotinas e dos tempos do trabalho docente e de investigação nas instituições de ensino superior e científicas no contexto neoliberal. Chama-nos a atenção, contudo, que estas denúncias sejam veladas e que não haja uma crítica aberta das nossas participantes ao modelo de ensino e ciência em que estamos inseridas. Por esse motivo, argumentamos que são fundamentais estudos que procurem dar visibilidade à forma como o discurso da flexibilidade da academia neoliberal é falacioso e contribui para reforçar as desigualdades de género.
Mais ainda, os nossos resultados evidenciam a diversidade da experiência das docentes e investigadoras e, consequentemente, revelam como o impacto da pandemia foi diferenciado em função do vínculo laboral, da composição do agregado familiar e das responsabilidades familiares. Assim, análises sobre o impacto da pandemia na carreira docente e de investigação deve levar em conta também estas diferenças.
Apesar do carácter ‘sem precedentes’ da pandemia e da inevitável emergência de novos problemas no contexto do ensino superior e científico, as desigualdades de género não são uma novidade. Por isso, podemos argumentar que os problemas encontrados agora são “uma agudização e generalização de tendências já presentes há vários anos” nestas instituições (Pereira, 2020, p. 214). É, portanto, fundamental aproveitar este momento de ‘desorganização’ de práticas e dinâmicas laborais já rotinizadas nas instituições de ensino superior e científicas que perpetuam a desigualdade de género para criar um novo ‘normal’ que promova a igualdade entre mulheres e homens.