Introdução
Há cerca de 30 anos, Martine Segalen, em Os Filhos de Aquiles e de Nike (1994), estabelecia a configuração analítica para pensar as práticas amadoras atléticas de estrada que nos deterão no presente artigo.
Nessa obra, entre o mais, a etnóloga francesa, focando-se especialmente nos maratonistas, reparava que a participação numa maratona com frequência combina propriedades sociais por norma associadas ao ócio - informalidade e convivialidade (muitos dos maratonistas não estão inscritos em qualquer clube desportivo; não raro ainda, essa participação tem origem em convite que toma amiúde a forma de desafio por parte de amigos, eles próprios participantes) - e propriedades sociais ligadas ao trabalho - disciplina e ascetismo, virguladas na preparação/programação racionalizada da participação na maratona. Simplesmente, não é possível completar uma maratona, seja qual for o ritmo a que seja corrida, sem antes cumprir planos de treino que se podem estender de algumas semanas a vários meses, empresa tanto mais difícil e penosa de realizar quanto menos “em forma” física estiverem os pretendentes a competidores.
É, porém, capital não sobrestimar este princípio ascético, insiste Segalen. Se é transversal aos maratonistas, não é o único a conformar as suas disposições atléticas. A autora mostra de forma clara que é possível que a dedicação à maratona articule - articulação aparentemente paradoxal - o ascetismo com uma postura de bon vivant, hedonista pois.
De facto, segundo Segalen, as corridas de longo curso de estrada, nem por constituírem competições/provas de superação de si próprio que podem tanger a extenuação, rechaçam o espírito lúdico. Este é o outro pano de fundo da participação. Divertir-se, passar um bom bocado com amigos e ver reconhecido o feito de ter conseguido chegar ao fim, independentemente do lugar alcançado - na verdade aspeto amiúde irrelevante -, eis o que motiva boa parte dos participantes anónimos (sem cadastro clubista), ditos “populares” na reveladora classificação atlética.
Foi munidos desta configuração analítica - o que não significa, atenção!, que não devamos contemplá-la criticamente - que nos propusemos pesquisar, recorrendo à observação participante (Wacquant, 2002), a prática que se popularizou de modo significativo na década passada, em rigor: até à pandemia, de participar em corridas de estrada. “Popularizado”, importa elucidar, tem aqui um sentido meramente demográfico ou quantitativo. Não pretende, pois, classificar os praticantes, apenas notar um aumento significativo do volume destes.
1. Notas sobre o trabalho de campo
A observação a que este artigo se refere contemplou um arco temporal de oito temporadas (2014-2021). Nesse período, a par dos dados objetivos recolhidos acerca das provas, do número de participantes e terminadores, das entidades que as organizam, da identificação dos dispositivos e indexadores que as caraterizam, destacar-se-á a participação como corredor (Allen-Collinson & Hockey, 2010, pp. 334-336; Schotté, 2015, pp. 101-102) em 124 provas de estrada e em uma de trail (prova realizada fora de estrada asfaltada). Esta participação como corredor foi complementada por uma participação como espectador em sete provas. As 124 provas de estrada participadas enquanto corredor, quanto a distâncias, distribuíram-se do seguinte modo: 5 maratonas; 24 meias-maratonas; 6 de 20 quilómetros; 10 de 15 quilómetros; 1 de 11 quilómetros e 78 de 10 quilómetros.
Para, entre outros motivos, aceder aos blocos de partida reservados às melhores marcas e, em consequência, poder observar em ação os atletas mais competitivos, entre 2015 e 2019 a melhoria do rendimento atlético tornou-se num dispositivo crítico do trabalho de campo. Nesta aposta, adotou-se um conjunto de programas de treino obtidos de diversas fontes, entre elas planos facultados por ex-atletas na internet para “iniciantes” e “avançados”. A experiência de corrida conjugou-se assim, de facto, com uma experiência de treino sistemático, integrando e articulando “séries”, “longos”, “progressivos”, “ritmados”, “fartleks”, “descanso ativo”, “reforço muscular” e outros artefactos de treino indicados para atletismo de estrada. Uma parte desta experiência complementar foi concretizada em interação grupal, constituindo essa, em si, uma prática diferenciada por uma dada configuração relacional: a do convívio atlético orientado por certas finalidades corredoras. Ambas as experiências - de corrida e de treino - foram objeto de anotação em caderno próprio. Este serviu para registar todo o tipo de informação: desde a indumentária e a parafernália tecnológica apresentadas pelos participantes nos eventos, passando pelas “sensações de corrida” associadas às diferentes distâncias, até aos encorajamentos e comentários “laterais” vindos de fora, isto é, do público das provas geralmente postado na beira da estrada ou concentrado em torno dos pórticos de chegada.
De modo - reconheça-se - indesejado, mas - reconheça-se também - com elevado valor heurístico (Shipway & Holloway, 2016, pp. 91-93), um terceiro tipo de experiência colou-se aos dois já referidos: a inatividade ditada por lesão. O sofrimento, a dor, a frustração (pela lesão, pela perda de forma), o desânimo, a recuperação, foram mais de uma vez postos à prova, num dos casos envolvendo um período - entre setembro de 2018 e abril de 2019 - de paragem prolongada com sujeição a quase quatro meses de fisioterapia com expressa prescrição médica.
Paralelamente, consultaram-se centenas de fontes virtuais, entre sítios, blogues, páginas de Facebook e outras redes sociais, institucionais e individuais, procurando desse modo recolher evidência pré-estruturada pelas formas legítimas do discurso e da comunicação atlético-corredores.
Em seguida, as informações oriundas destas diferentes “fontes” foram classificadas e agrupadas segundo quatro grandes problemas, os quais, apesar da sua inscrição teórica, não são inteiramente prévios/estranhos às operações de observação: 1) o da experiência subjetiva propriamente dita, permitindo compreender e tipificar as gramáticas emocionais-cognitivas da corrida a que o sujeito da observação foi exposto; 2) o da construção discursiva coletiva do(s) sentido(s) da corrida de estrada; 3) o dos dispositivos e provas da grandeza corredora; 4) por fim, o das disposições corredoras. É na composição destes quatro grandes problemas que radica este artigo.
2. A popularidade das corridas de estrada como função mercadológica
Para se ter uma ideia da escala do fenómeno, entre 2015 e 2019, o número de terminadores das dez provas com maior número de terminadores ficou sempre acima dos 3700 (Quadro 1). Convergindo, em 2019, só na região da Grande Lisboa realizaram-se cerca de 60 provas de estrada (excluem-se as provas de trail - provas, recorde-se, com percursos em terra batida), envolvendo um número de participantes (devemos hesitar em chamar-lhes atletas, embora as organizações dos eventos assim os designem) entre os 250 (nas provas menos concorridas) e os 16 000 (na meia-maratona de Lisboa que, no percurso “popular”, atravessou a Ponte 25 de Abril em março). Dado que tanto no inverno como (ainda mais) no verão se observa um período de nojo (aquilo que em linguagem tauromáquica ou futebolística se chamaria “o defeso”), concluímos que, no outono e especialmente na primavera, todos os fins de semana têm animação atlética, e em muitos há oferta de provas que demanda escolha.
2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 |
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Provas com mais terminadores | Provas com mais terminadores | Provas com mais terminadores | Provas com mais terminadores | Provas com mais terminadores |
São Silvestre Porto (10 880) | Meia Maratona Lx (10 281) | Meia Maratona Lx (10 582) | São Silvestre Lisboa (9455) | Meia Maratona Lx (10 607) |
Meia Maratona Lx (10 561) | São Silvestre Porto (8795) | São Silvestre Lisboa (8302) | Meia Maratona Lx (9211) | São Silvestre Lisboa (10 112) |
São Silvestre Lisboa (10 148) | Corrida do Tejo (6759) | São Silvestre Porto (8254) | São Silvestre Porto (8547) | São Silvestre Porto (9274) |
Corrida do Tejo (7273) | São Silvestre Lisboa (6321) | Corrida do Tejo (7630) | Corrida do Tejo (7855) | Corrida do Tejo (7984) |
R’R Meia Maratona Pt (6206) | Corrida do Benfica (6012) | R’R Meia Maratona Pt (7369) | Corrida do Benfica (5435) | Meia Maratona Lx\Vg (5969) |
Corrida do Benfica (5718) | R’R Meia Maratona Pt (5829) | Corrida do Benfica (5048) | Meia Maratona Pt (4801) | Maratona de Lisboa (4442) |
Meia Maratona Porto (5196) | Corrida do Montepio (5531) | Meia Maratona Porto (4746) | Maratona do Porto (4656) | Grande Prémio Natal (4271) |
Corrida do Montepio (4878) | Meia Maratona Porto (5285) | R’R Maratona Lx (4673) | Meia Maratona Porto (4218) | Corrida do Benfica (4142) |
Corrida do Dia do Pai (4745) | Maratona do Porto (4736) | Maratona do Porto (4530) | Grande Prémio Natal (4181) | Meia Maratona Porto (3790) |
Maratona do Porto (4406) | Grande Prémio Natal (4701) | Grande Prémio Natal (4337) | Corrida do Montepio (3794) | Maratona do Porto (3762) |
É verdade, importa salientar, que a pandemia perturbou esta dinâmica de expansão deste género de evento atlético-desportivo. Enquanto durou, as provas foram compreensivelmente suspensas. Mas o seu lastro não se ficou por aí. Se o volume de provas, a partir de 2022, retomou os patamares pré-pandémicos (na região da Grande Lisboa, 59 corridas de estrada em 2022 e 61 em 2023), o mesmo não se pode dizer quanto ao volume de participantes. Por exemplo, na última edição da Corrida de Santo António, uma das mais concorridas da região da Grande Lisboa, realizada em 4 de junho de 2023, o número de terminadores reduziu cerca de 25% (de 2584 em 2019 para 1946 em 2023). Estimando que a oferta (re)cria a sua própria procura (Bourdieu, 1979), não se estranhará, porém, que, pouco a pouco, este recuo da procura seja revertido regressando-se, até por força da multiplicação das provas, a uma trajetória de reforço progressivo do quantitativo global de participantes.
Faz, de resto, todo o sentido falar de oferta (e procura). De facto, este fenómeno remata a progressiva institucionalização de um mercado de corridas comerciais (Hijós, 2018, pp. 28-32), em bom rigor mundial (Scalco, 2010, p. 342), que tem, no caso português, o que vamos pesquisando mais de perto, dois picos anuais, um na primavera, outro no outono.
As provas de que falamos são, até certo ponto, mercadorias como muitas outras. Há empresas especializadas na organização de corridas (por exemplo, a Xistarca e a HMS Sports, em Lisboa, a RunPorto, no Porto). Paga-se para participar, e esse pagamento tem uma série de contrapartidas além da possibilidade de percorrer de lés a lés o percurso da prova: identificação rigorosa da classificação final, cronometragem da prova, camisas técnicas alusivas à prova (fazendo de resto de cada participante que opta por envergar uma no dia da prova um promotor - instrumento publicitário - da prova e dos respetivos patrocinadores), alimentação e bebidas conformes ao esforço específico que a prova implica, bengaleiro, etc. Além disso, muitas das provas têm “sponsors” (patrocinadores), não raro dando o seu nome à prova. Por exemplo, no dia 2 de outubro de 2016 tiveram lugar duas provas sob a mesma organização: a maratona de Lisboa (partindo de Cascais, com meta no Parque das Nações), patrocinada e nomeada pela EDP; e a meia-maratona de Lisboa (partida sobre a Ponte Vasco da Gama igualmente com termo no Parque das Nações), patrocinada e nomeada pelo Banco Santander.
Seguramente, pode conjeturar-se que, em geral, a oferta mercantil de provas desportivas tenderá a constituir procuras específicas; mas essa conjetura deve ser emparelhada na ressalva de que não basta “olhar” para o tipo de prova definindo-o segundo o grau de penetração do capital económico para identificar as modalidades de participação a que atletas e corredores se prestam. Aliás, neste domínio, até certo ponto o efeito especificamente mercantil (embora não seja exclusivamente mercantil) far-se-á sentir sobretudo na diversificação dos públicos. Enquanto as provas com menor visibilidade tenderão a atrair - quanto ao perfil social e, não menos relevante, quanto à relação com a prática corredora e às disposições atléticas - conjuntos mais homogéneos de participantes, as que têm mais notoriedade, como a meia-maratona que todos os anos propicia o atravessamento da Ponte 25 de Abril nos alvores da primavera, polarizarão, em vários critérios (desportivo, etário, de classe), uma coleção mais eclética/plural de participantes.
Marginalmente, note-se, a este propósito, que o facto de, em regra, as meias-maratonas constituírem as provas mais concorridas e heterogéneas será, acima de tudo, consequência de serem tricotadas como eventos excecionais que proporcionam experiências únicas, singulares, marcadas material e simbolicamente por usos extraordinários das vias viárias de que é justamente paradigma a travessia da Ponte 25 de Abril atrás salientada.
Como, ainda marginalmente, se reparará que a popularidade das corridas de estrada não significa que a estas não se associem tensões ligadas sobretudo a usos concorrenciais do espaço público urbano. O facto de as provas sequestrarem ruas e estradas, impedindo a sua utilização habitual por transeuntes e automobilistas, suscita reações por vezes agrestes. Em janeiro de 2018, a jornalista e ex-deputada do CDS Manuela Moura Guedes, na sua página do Facebook, não se coibia de verberar fortemente corridas e os seus entusiastas (desencadeando, aliás, um considerável volume de críticas - algumas ferozes - por parte de corredores):
Que praga! Esta mania agora das maratonas pela cidade faz vir ao de cima os piores instintos. Só me apetece atropelar este bando de viciados em correr que estragam a vida de qualquer pessoa normal com direito a deslocar-se pela cidade. Hoje, fim de semana, um percurso que eu demoraria 10 m a fazer levou 1 h e tal! Porque é que não vão para o campo exibir as suas qualidades? Não será muito mais saudável? Deixem-nos a nós em paz a respirar o ar bom da cidade!
No nosso caderno anotamos também algumas manifestações de desagrado. Por exemplo, um indivíduo do sexo masculino que escreveu num comentário na edição digital de um jornal: “e se fossem correr para o raio que os parta?!”; ou outro do sexo feminino, aparentemente acima dos 60 anos, que, enfrentando dificuldades em atravessar uma larga avenida fechada pela realização de uma meia-maratona, de modo audível, protestava: “parece impossível, parece impossível, cortarem o trânsito para esta gente andar pr’aqui a correr!”
3. A procura corredora como função do formato das provas
Tão importante quanto notar a mercantilização destas provas será ressaltar o efeito sobre a procura (ou seja, as modalidades de consumo) que o seu formato induzirá.
Por formato das provas não nos referimos tanto à distância- em que a oferta é no essencial repartida por três tipos: 10 km (de longe, o mais comum), meia-maratona e maratona, com algumas provas diferentes: mormente, 20 e 15 km - quanto aos dispositivos tecnológicos e indexadores simbólicos que estas comportam, os quais, acrescente-se, as normalizam como bens cujo vinco comercial não basta para as caracterizar.
De que dispositivos e indexadores falamos então?
Em primeiro lugar, da cronometragem da prestação atlética individual. De facto, a utilização de um chip individual, às vezes integrado no dorsal, outras numa fita a ser fixada através dos cordões de um dos ténis de corrida do participante (chip que determina rigorosamente o tempo de corrida entre pórticos - de partida e chegada), produz uma relação com a performance atlética em que o tempo (mais que o lugar na classificação) coloniza/informa a prestação e os juízos que a qualificam. Corre-se para o tempo, tentando bater/fazer melhor que o tempo realizado em provas homólogas (quanto à distância) ou em edições anteriores daquela prova. Nesse sentido, o chip constitui um dispositivo tecnológico de implantação de uma relação competitiva autoendossada.
Em segundo lugar, a repartição dos participantes por género e escalões etários. Esta pluraliza a ordem classificativa, abrindo para juízos que não só veiculam mecanismos equitativos - a competição pode fazer-se então entre iguais, ignorando os seres “estranhos” -, mas também gramáticas morais que determinam as condições modelares da prova justa.
Em terceiro lugar, os blocos de partida cuja utilização se vem vulgarizando (embora esteja ainda longe de se universalizar). Os blocos de partida são um dispositivo de segmentação dos participantes de acordo com as marcas que possuem (por exemplo, nas provas de 10 km é usual o uso de três blocos de partida e o resto - sub40m, sub50m, sub60m e os que nunca correram a distância abaixo da hora). Os blocos de partida, se traduzem diferentes capacidades atléticas objetivadas em marcas clivadas em intervalos de tempo, constituem ainda dispositivos de reagrupamento social, desde logo de atores portadores de específicas relações com a prática corredora.
Os blocos de partida são ainda suplementados por duas outras possíveis figurações. Uma primeira respeita à participação específica da elite atlética (alta competição), para a qual é reservada uma faixa na frente da partida. Contrastando com as demais, esta fileira de participantes enquanto atletas de alta competição, em vez de adquirir um ingresso na corrida, entra nela através de convite, que pode inclusive comportar remuneração.
Uma segunda figuração, que só se observa em certas corridas - justamente as que têm maior impacte comercial -, destaca os participantes VIP. A troco de um valor avultado (o valor da inscrição VIP, por regra 100 €, ronda cinco a seis vezes o valor de uma inscrição normal), beneficia-se de uma série de mordomias: tipicamente, transporte até à partida; acesso à frente da corrida (na partida); acesso à área VIP com catering (no final da corrida). Mais do que o privilégio adquirido, o importante a salientar aqui é que, pelo talhe económico que reveste a obtenção do privilégio, os seus detentores se (auto)posicionam fora da ordem desportiva da prova atlética justa (para satisfazer a exigência desta, uma posição favorável à partida não é nem pode ser comprada; tem de ser merecida, seja, quando há blocos, pela prestação atlética diferenciadora em provas anteriores, seja, quando não há blocos, sacrificando tempo e energia para ser dos primeiros a chegar à zona de partida). Se desse modo, isto é, objetivamente revertendo a injunção moral do ceteris paribus, os participantes VIP se situam fora da competição, por outro lado, pela sua diferentia specifica, relembram que o evento que com eles conta não é apenas um produto comercial, que poderia então ser, quanto às análises que nele incidiriam, encarado e escrutinado como uma mercadoria como qualquer outra. Há, nos eventos atléticos que observámos, também espaço para lógicas caracteristicamente desportivas (noutra gramática, autónomas em relação ao campo económico), ainda que estas se possam afastar de forma acentuada das que permeiam as competições desportivas com maior visibilidade: as profissionais.
4. Uma tipificação das relações com a prática corredora
Apurado, cremos, o quadro de produção do espaço de possíveis relações com a prática corredora desenvolvida nas corridas de estrada, importa, a partir daqui, identificar as relações com a prática corredora favorecidas. Com inspiração no modelo da sociologia dos valores esquissado por Nathalie Heinich (2003, pp. 126-127), estas podem, até certo ponto, ser restituídas (ou compreendidas) a partir de três critérios, cada um definido por uma oposição específica: o primeiro separa competitividade e não competitividade, o segundo desata ludicidade de ascetismo laborioso (Faure, 1987, pp. 38-40) e o terceiro contrapõe egocentrismo (a competição é no essencial consigo mesmo) a sociocentrismo (a competição compara com outrem). Destes três critérios resultam três grandes relações típicas, a saber: a) a primeira, polarizada na não competitividade lúdica sociocêntrica; b) a segunda, magnetizada pela competitividade ascética egocêntrica e c) a terceira, centrada na competitividade ascética sociocêntrica.
Por norma, estas diferentes relações não se convertem em princípios de tensão e animosidade entre corredores, mesmo nas corridas em que não pontuam os blocos de partida. Mas não é impossível que isso aconteça. Numa corrida sem blocos de partida realizada em 2017, testemunhámos uma cena de recomposição hierárquica literalmente discutível (quer dizer, passível de disputa) desencadeada por um corredor que, antes da partida, em cima da hora “furou” as fileiras cerradas para se acercar da linha de partida com o intuito de, mal o tiro de partida soasse, largar na frente da prova. Quando outro corredor, desagradado com o empurrão que dele recebera, sem sequer pedir licença para passar adiante, lhe chamou a atenção, retorquiu de pronto: “Vem aqui para correr, não é? É que eu venho para ganhar.”
Não tratando dos corredores que “vêm aqui para ganhar”, como o título deste artigo indicia, ressaltar-se-á que, neste texto, o que está analiticamente em causa são os corredores que levam a sério as suas proezas atléticas, que as inscrevem numa lógica de superação física, dispondo-se a fazer sacrifícios, a sofrer, a prescindir de prazeres mundanos para melhorar as suas prestações e marcas nas provas em que entram, seja o registo auto ou alter endossado. São, portanto, aquelas duas últimas relações típicas - competitividade ascética egocêntrica e competitividade ascética sociocêntrica - que convertemos em objeto de análise destacado.
Tal não significa, como tivemos oportunidade de documentar, que aqueles que correm a sério corram a sério todas as vezes que entram em provas. Não é invulgar (ou pelo menos extraordinário) ver quem corre a sério sujeitar-se ao registo da não competitividade lúdica sociocêntrica. Talvez fosse o caso daquele corredor que, envergando a mesma camisa alaranjada com tiras amarelas identificadora dos participantes na maratona de Lisboa, numa prova de 10 km corrida três semanas depois, gracejava: “Isto hoje é uma brincadeira de crianças.” Mas não é impossível que, na circunstância, estivesse a frisar, por contraste, a dificuldade extraordinária da maratona e, por aí, em jeito ufano, a procurar extrair dividendos simbólicos à luz da distinção atlética. Importa nunca perder de vista que a maratona não é uma prova como as outras a vários títulos. Nada melhor para o ilustrar do que a manifestação de um corredor a vangloriar-se, após terminar a sua primeira maratona: “Agora, já posso dizer que sou maratonista!”, um estatuto excecional e excecionalmente prezável adquirido, pelos vistos, para todo o sempre. Estatuto em que se descobre um (previsível) vinco moral acompanhando a proclamação preto no branco de um outro corredor: “Os maratonistas são pessoas diferentes, resistentes, que aguentam o que as outras pessoas não conseguem aguentar. São por isso mais fiáveis, mais confiáveis.”
Seja como for, a translação relacional envolvida na passagem do corredor a sério para o registo da não competitividade lúdica sociocêntrica, tudo indica, associa-se a um quadro de interação específico: ela observa-se quando quem corre a sério em certa prova integra um grupo de participantes mais lentos e/ou pouco sensíveis ao registo da competitividade ascética. Translação que, tanto quanto pudemos apurar, não se faz sem tensão subjetiva. O encanto do convívio com amigos e conhecidos tende a diluir-se no desencanto de não poder vazar a têmpera competitivo-ascética. Ir estrada fora “como se de um caracol se tratasse” gera invariavelmente frustração. Isso mesmo denunciam desabafos por nós registados de protagonistas dessa translação, como sejam: “Ao fim de dois quilómetros já não posso mais com aquele ritmo de lesma” e “Estes passeios não são para mim”.
Nas provas, os signos consumíveis das duas relações que aqui enfatizamos - recorde-se: a da competitividade ascética egocêntrica e a da competitividade ascética sociocêntrica - são vários. Pela sua importância destacamos dois. Os ténis/sapatilhas e os relógios com GPS (e/ou Glonass, a versão russa do GPS estado-unidense). Nos blocos sub40 e sub50 das provas de 10 km, dificilmente se encontra um participante que não esteja munido duma parafernália tecnológica em que sobressai um relógio que regista em múltiplas dimensões técnicas e clínicas a qualidade da performance atlética e uns ténis cuja escolha se filia numa pericialidade que se comprova escolhendo-os entre uma oferta vasta e complexa mas também sabendo justificar a escolha, argumentando as propriedades mecânicas das sapatilhas em causa e a sua harmonização com o tipo de passada que se possui (pronadora, supinadora, neutra).
5. Superação atlética e cultura somática
A lógica da superação física que demarca as duas relações competitivo-ascéticas, importa prosseguir, articula-se com a incorporação de uma cultura somática (Boltanski, 1971) que torna o sofrimento e muito especialmente a aceitação da dor física (Bertrand, 2012), dor que, na verdade, é muito mais do que uma “mera” propriedade corporal (Bitencourt, 2015), condição do êxito atlético e da grandeza dos seres que o alcançam. Sofre-se e tem de se saber sofrer de muitas maneiras. Sofre-se por extenuação (nas maratonas), mas sofre-se também nas provas relativamente curtas de 10 km porque estas exigem que se corra todo o tempo nos limites da força muscular e da oxigenação celular. Sofre-se ainda treinando em condições meteorológicas adversas ou, após o esforço físico, enfrentando e lidando com os crónicos processos inflamatórios nas articulações que não há atleta empenhado que não experimente. Como se sofre, aí comummente com síndromes dolorosos aliados, para recuperar “a forma” na sequência de lesões (musculares, ligamentares, etc.) que ditaram a suspensão mais ou menos prolongada do treino e da competição. Ainda que, neste quadro de interação amador-“popular” não se corra o risco de granjear uma reputação de “propenso a lesões,” estigma que os atletas profissionais temem (desde logo, pelo efeito de depreciação do valor económico do seu capital desportivo) (Roderick, 2006, pp. 67-82), as lesões, objetivando-se no corpo, lesam com frequência a vontade, deprimindo-a. A resiliência física bem como a resistência psicológica à privação (privação relacionada à cabeça com o controle da dieta alimentar que implica disciplinar a alimentação, isto é, prescindir das iguarias pelas quais “se saliva”) são componentes da relação comprometida (isto é, competitivo-ascética) com a prática corredora que temos vindo a analisar.
Pelas suas propriedades sociais - é, sejam quais forem as circunstâncias, uma prova (no duplo sentido) de sofrimento e sacrífico -, a maratona constitui o momento em que esta cultura somática necessariamente se concretiza. Não se estranha, pois, que seja a maratona que mais atrai casos como o do corredor da maratona de Lisboa de 2016 que, lesionando-se cerca do km 30, teimou em (e conseguiu) alcançar a meta demorando quase o mesmo tempo a percorrer os últimos 12 km que o que consumira nos primeiros 30.
Que, todavia, não se encare esta cultura somática como meramente funcional, isto é, como um repertório de construções sociossimbólicas destinadas a gerar uma dada consequência: que o princípio heterogéneo do êxito atlético (baseado na classificação, na marca ou em ambas) seja reafirmado em cada prova de estrada. De facto, a cultura somática em questão não é alheia a uma gramática moral (Bale, 2004, pp. 166-187) que estende o sentido do êxito atlético muito para lá das classificações alcançadas, das marcas obtidas, dos recordes quebrados.
6. A trama moral da prova(ção) física “séria”: entre a ética do trabalho e o património biológico
Para entender a última afirmação referente à cultura somática, é imperativo introduzir mais uma dimensão analítica.
O significado do êxito das provas atléticas para corredores que corporizam o “ascetismo competitivo” decorre ainda, é crucial ressaltar, do facto de que essas provas atléticas acomodam dois registos simbólicos contraditórios (mas também num certo sentido complementares) sobre os quais se tramam as possibilidades de realização individual das pautas de reconhecimento e singularização incorporadas nos atores sociais envolvidos.
Por um lado, correr a sério encontra uma ética do trabalho que valoriza o trabalho longo e árduo de aperfeiçoamento dos gestos e das capacidades físicas (aumentar o VO2, logo a oxigenação celular, por exemplo).
A par (e em certo sentido a contrario), correr a sério oferece a possibilidade de valorizar a herança genética, as capacidades “naturais” que residem antes de mais nos mistérios da transmissão hereditária (ou racial) das propriedades físicas (morfológicas) ou neuromusculares (velocidade, elasticidade, etc.). Estas capacidades são objeto de medida comparada entre os atletas, por exemplo quando cotejam frequências cardíacas (ter uma frequência cardíaca baixa como condição “natural” para ser bom fundista).
É diante destes dois registos que a prova(ção) física tem lugar. Ela atesta um ser virtuoso, mas que lhe confere virtude? Ora bem, o ser virtuoso em causa é aquele que explora as suas aptidões naturais (que devem ser objeto de um trabalho de conhecimento biofisiológico de si mesmo) e capacidades adquiridas testando os seus limites, nunca (auto-)satisfeito, sempre disposto a abraçar um novo desafio, a desafiar a sua própria tolerância à dor e ao sofrimento, a renovar a prova da sua virtude, colonizando o futuro através das propriedades valorativas que empresta aos modos de envolvimento na ação atlética que protagoniza. No fim de contas, à maneira do célebre incentivo de Samuel Beckett, escritor e dramaturgo irlandês: Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better.
Apontamentos finais
Este esboço analítico que aqui traçámos deixa (muitas) incógnitas por formular e resolver, havendo duas que, até pelo vínculo que as liga, não queremos deixar passar sem reparo.
Por um lado, perguntar-se-á: em termos de perfil sociográfico, como se compõe o grupo dos “ascéticos competitivos” que aqui isolámos? Não sabemos, mas sabemos (Bourdieu, 1980) que essa constitui uma dimensão crítica da plena restituição da prática desportiva.
A escolha e as modalidades de envolvimento nas corridas de estrada, como quaisquer escolhas e formas de envolvimento em matéria de desporto ou de qualquer outro domínio de vida social, não são na verdade livres, isto é, realizadas fora de constrangimentos sociais que vão muito além da própria estrutura de oferta desportiva. Se aqui encetámos alguma reconstrução sociológica dos habitus atléticos, vinculando-a a uma “sociopráxica” (Pociello, 1995, p. 56), esse trabalho só ficará completo quando, além da moldura institucional (as formas sociais que as próprias provas de estrada revestem), formos capazes de fazer emergir as combinações de capitais (mormente económico e cultural) que levaram os seus praticantes a tornarem-se sujeitos da ação corredora, e desse modo a tornarem as injunções cognitivas e morais dessa ação parte constitutiva e generativa dos seus próprios habitus.
Por outro lado, ressaltar-se-á uma constatação tardia: a de que, traço que se acentua nas provas menos visíveis e mais homogéneas, as categorias de veteranos surgem francamente sobrerrepresentadas na composição das procuras das provas atléticas “populares” que vimos analisando (Tulle, 2008). Duas interrogações decorrem: a) porque assim será, explicar-se-á esta distorção como um efeito de acumulação de ex-atletas que, já não tendo condições atléticas para competir nas provas de pista (Tulle, 2007, pp. 340-342), reorientam a pulsão competitiva projetando-a agora num simulacro de prova de atletismo?; e b) essa sobrerrepresentação, quanto à composição social dos participantes, porventura reverterá a histórica clivagem entre as provas de pista, povoadas essencialmente por frações das pequenas burguesias, e as provas de estrada, colonizadas pelo operariado?
As pistas e conjeturas que poderiam ser aqui acrescentadas para responder a estas questões colidem no facto de que não podem ser cotejadas em prova empírica - prova empírica que o registo “etnográfico” de observação adotado neste trabalho não poderia constituir. Por isso, não nos resta alternativa se não “suspendê-las”.