Introdução
O aumento do número de profissionais no mercado de trabalho do fisioterapeuta é significativo. De acordo com dados do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional - CREFITO10, são 7.465 fisioterapeutas cadastrados e 19 instituições, sendo que algumas delas oferecem curso em dois pólos, totalizando 23 locais em Santa Catarina que disponibilizam o curso de fisioterapia reconhecido pelo Ministério da Educação - MEC do Brasil. (Crefito10, 2018).
Necessita-se conhecer a estrutura curricular dos cursos de graduação que colocam no mercado esses profissionais, na tentativa de entender se há formação baseada nas Diretrizes Curriculares Nacionais de 2002 e nos princípios do Sistema Único de Saúde - SUS. As diretrizes curriculares de 2002 marcavam a atenção integral como uma competência geral a ser desenvolvida pelos fisioterapeutas em formação colocando que os profissionais de saúde devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde, tanto em nível individual quanto coletivo e que cada profissional deve assegurar que sua prática seja realizada de forma integrada com as demais instâncias do sistema de saúde, sendo capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e de procurar soluções para os mesmos. (Brasil, 2002)
Além disso, considera-se as novas diretrizes curriculares para o curso de fisioterapia, formuladas e apresentadas pela Associação Brasileira de Fisioterapia - ABENFISIO e Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional - COFFITO ao Ministério da Saúde, com parecer técnico 161/2017 (Brasil, 2017, p.06) trazem que “a formação deve mobilizar afetos, saberes e fazeres entre o indivíduo, sua família, seu trabalho, seu território e comunidade em geral, sendo o fisioterapeuta inserido nesse processo como um ator que atua como agente transformador da sociedade em seus distintos aspectos que envolvam a garantia à saúde e à vida”. Embora ainda não estejam em vigor, as novas diretrizes nacionais curriculares para o curso de fisioterapia, abordam questões pertinentes a inclusão do fisioterapeuta no SUS.
A integralidade é entendida por Mattos (2009) como um conceito polissêmico que se revela em diferentes saberes e práticas expressas no cotidiano da saúde. O autor tece comentários sobre três dos sentidos que se aplicam ao termo: o primeiro refere-se às práticas dos profissionais de saúde; o segundo aplica-se à organização dos serviços e o terceiro diz respeito às respostas do governo aos problemas de saúde.
A reflexão proposta para este estudo teve seu início a partir do primeiro sentido referido pelo autor, tendo como propósito a produção de conhecimento sobre as potencialidades e limites da prática da integralidade em saúde e, também, porque esta é uma das premissas do Sistema Único de Saúde pretendidas pela Estratégia Saúde da Família - ESF. Na tentativa de auxiliar a instituir a plena “integralidade do cuidado físico e mental aos usuários do SUS por intermédio da qualificação e complementaridade do trabalho” da ESF foi criado em 2008 o Núcleo de Apoio a Saúde da Família - NASF, com o objetivo de ampliar a abrangência das ações da atenção básica, bem como sua resolubilidade. Para se atingir o objetivo, profissionais de diferentes áreas do conhecimento integram a equipe do NASF, sendo incluído nesta portaria, o profissional fisioterapeuta (Brasil, 2008).
Os professores exercem papel importante na formação dos futuros profissionais de saúde. Lembrando Freire (2016, p.23) “não há docência sem discência” e apesar das diferenças entre os sujeitos, “quem ensina aprende a ensinar e quem aprende ensina ao aprender”. A construção de uma identidade dos discentes baseia-se em interações sociais com o corpo docente e é moldada por valores e normas aprendidas no currículo formal e informal. Em detrimento disso, os educadores podem proporcionar aos seus alunos feedback avaliativo e estar aberto a novos saberes e novas práticas considerando as experiências e vivências trazidas pelo acadêmico para a construção da sua identidade profissional (Prato, 2013).
Formadores de opinião, mediadores de conhecimentos, os docentes têm a incumbência de repassar informações atualizadas e coerentes para o aprendizado desses profissionais. Saberes e práticas integradas consolidam uma formação voltada para a integralidade. Entretanto a separação de saberes, se estrutural, replica o problema que acaba se estendendo por várias gerações de formandos, perpetuando um trabalho inconsistente e desarticulado em razão da falta de conhecimento de muitos.
A integralidade necessita, para sua efetivação, ações interdisciplinares por parte dos profissionais de saúde, ela nega a fragmentação na qual cada profissional fica responsável por uma parte do indivíduo diante dos problemas de saúde. A atuação do profissional, considerando os aspectos da interdisciplinaridade, precisa ser trabalhada desde a formação, capacitando o futuro profissional a respeitar o outro, aceitar sugestões, comprometer-se com o SUS, ouvir a opinião do outro, colocar-se no lugar do outro, respeitar as diferenças e estar preparado para aprender ou mudar, se necessário, atuando com liderança pactuada e democrática (Santos et al, 2015).
A intercomunicação entre profissionais de saúde, professores de cursos de graduação e comunidade é fundamental para que se obtenha a substituição do modelo biomédico (ainda presente nos cursos de graduação) para o modelo ampliado de saúde (Marco, 2006). E, especialmente, para os profissionais da saúde ressalta-se “a importância da formação profissional e da educação permanente como duas das várias dimensões que configuram o exercício profissional como uma prática socialmente construída” (Ghizoni, Arruda & Tesser, 2010, p. 825).
A produção de conhecimentos por meio da interdisciplinaridade acontece pela articulação entre diferentes saberes considerando que “conhecimentos específicos de cada área se mantêm”. Nesse sentido, ressalta-se a importância de integrar cursos de graduação, mesmo que com propostas pedagógicas diferentes, mas que se unem na preocupação da “não fragmentação do processo ensino-aprendizagem”.
Nesta direção e como atualização as novas diretrizes curriculares da Fisioterapia apontam para a formação e atuação interprofissional, implicadas na interação entre as profissões com vistas à colaboração em torno de um objetivo comum que é a atenção integral individual e coletiva em saúde. Para tanto, é imprescindível o apoio e estímulo da universidade na formação interprofissional desde o início da graduação (Toassi & Lewgoy, 2016, p.459). O estudo ora apresentado teve como objetivo conhecer as faces da integralidade em saúde dos cursos de graduação em fisioterapia das instituições de ensino superior de Santa Catarina por meio de análise das ementas das discplinas que compoem a grade curricular.
Adotou-se a ideia de “faces” por considerar que integralidade se traduz nos vários sentidos encontrados nas descrições dos conteúdos das matrizes curriculares das disciplinas oferecidos pelos cursos de fisioterapia de acordo com estudos realizados por Ghizoni, Arruda e Tesser (2010), que destacaram as faces da integralidade em saúde como resultado da percepção de fisioterapeutas.
Observa-se ainda que a história brasileira da formação profissional em saúde registra uma forte tendência ao conhecimento hospitalocêntrico e biologicista . Os modelos tradicionais de ensino seguem valorizando a superespecialização ignorando um ensino problematizado tendo como base o saber coletivo sem levar em conta conhecimentos gerados a partir de uma visão ampliada sobre o humano que é, ao mesmo tempo, biopsicossocial. Segundo Morin (2000), ser ao mesmo tempo biopsicossocial não significa que uma destas dimensões se sobreponha à outra, significa que, sendo humano, qualquer uma de suas ações apresenta, simultaneamente, as dimensões biológica, psicológica, social e cultural pois são indissociáveis. Esse conceito de ser humano guarda as bases teóricas do ensino da condição humana proposto por Morin (2011).
O homem, como uma unidade complexa, deve ser cuidado como tal, sem ser dividido em partes, sob a perspectiva de um paradigma de complexidade. Mas só abandonando os modelos reducionistas de ensino-aprendizagem poderemos assumir uma perspectiva integradora de elementos novos capazes de promover um desenvolvimento pessoal para que haja a compreensão da complexidade humana.
1. Métodos
Tratou-se de um estudo do tipo exploratório, descritivo, documental de abordagem qualitativa e quantitativa, tendo a integralidade em saúde e o processo de formação dos fisioterapeutas como eixos teóricos. A pesquisa documental tem como principal característica que sua fonte de coleta de dados está restrita a documentos (Marconi & Lakatos, 2005)
A presente pesquisa classificou-se como documental, pois a busca de informações foi em endereços eletrônicos das universidades de Santa Catarina. A pesquisa qualitativa “preocupa-se com a compreensão interpretativa da ação social (...) atua levando em conta a compreensão, a inteligibilidade dos fenômenos sociais e o significado e a intencionalidade que lhes atribuem os atores” (Minayo & col., 2005, p.81).
Por outro lado, a pesquisa quantitativa trabalha com dados numéricos e emprega rígidos recursos e técnicas estatísticas para classificá-los e analisá-los, tais como a porcentagem que será utilizada nos gráficos de levantamento de dados do Curso (Silva, 2004). A pesquisa foi realizada em sites de Instituições de Ensino de Santa Catarina (IES )que disponibilizam o curso de fisioterapia, reconhecido pelo Ministério da Educação - MEC. Foi consultado o Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da 10ª região - CREFITO10 para obtenção dos nomes das instituições de ensino.
De acordo com dados obtidos no site do Conselho de Fisioterapia, dezenove instituições de ensino oferecem o curso de fisioterapia reconhecido pelo MEC, sendo que dentre essas apenas 11 apresentavam matrizes curriculares e ementas disponível no site, sendo integradas neste estudo.
Como recurso às buscas da dimensão “Integralidade em saúde” nos documentos, utilizou-se o programa de computador para análise qualitativa MAXQDA (VERBI Software. Consult. Sozialforschung. GmbH, 2016). Este programa auxilia a equipe de pesquisadores no processo de localização e marcação do conteúdo, destacando-se pela facilidade no tratamento dos dados e apresentação de novas visões das informações recolhidas pelo pesquisador. Neste sentido, o investigador é o principal responsável pelas análise dos dados, auxiliado por uma ferramenta informatizada (Bogdan & Biklen, 2013; García-Horta & Guerra-Ramos, 2009; Pope, Ziebland & Mays, 2000).
O tabela 1 refere-se às categorias e palavras-chave para pesquisa no MAXQDA e para sua cosntrução baseou-se nos sentidos da palavra integralidade utilizados por Mattos (2004), pois o conhecimento e abordagem nas disciplinas do curso das categorias educação em saúde, princípios do SUS e formação em fisioterapia com base na integralidade são fundamentais para que seja possível que o aluno conheça e exercite a integralidade em saúde nos estágios durante a formação e após formados, como profissionais.
PALAVRAS-CHAVE PARA PESQUISA NO MAXQDA12 | ||
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Categoria/Códigos | Palavras-Chave/Subcódigos | |
Educação em Saúde (Lei 8080/1990, DCN 2002, Política Nacional de Educação Permanente em Saúde 2004, Proposta de novas DCN para os cursos de graduação em fisioterapia, 2017) | Conceito de saúde e doença Saúde e doença Promoção da saúde Prevenção de doença Saúde coletiva Saúde pública SUS/ Sistema Único de Saúde Epidemiologia Educação em saúde Saúde Comunitária Educação Permanente em Saúde Qualidade de vida Saúde da família Programa de saúde Política de saúde | |
Princípios do Sistema Único de Saúde (Lei 8080/1990) | Universalidade e equidade; Integralidade; Regionalização Hierarquização Resolutividade Descentralização; Participação/controle social Sistema Único de Saúde/SUS | |
Integralidade em Saúde (MATTOS, 2004, 2009; LAPPIS, 2018) | Integralidade da atenção Assistência integral Atendimento integral Atenção integral Atenção a saúde Trabalho em equipe interdisciplinar Trabalho integrado Interdisciplinaridade na saúde Interdisciplinaridade na atenção a saúde Estratégia Saúde da família - ESF Programa Saúde da Família - PSF Ações integradas de promoção e prevenção Prática integrativa | |
Formação em fisioterapia com base na integralidade (DCN, 2002, Proposta de novas DCN para os cursos de graduação em fisioterapia, 2017) | Fisioterapia na saúde coletiva Fisioterapia na promoção da saúde Fisioterapia preventiva Fisioterapia Comunitária Fisioterapia na comunidade Fisioterapia na atenção integral à saúde Formação integral em saúde |
Fonte: autores
Foi cadastrado no programa MAXQDA cores às categorias do estudo e as IES foram codificadas com letras do alfabeto de A a K, aleatoriamente, preservando o sigilo e anonimato da instituição, respeitando assim aspectos éticos relacionados a pesquisa. Os dados obtidos na coleta realizada em julho de 2018, foram tratados separadamente por universidade participante.
A análise documental e levantamento quantitativo foi realizado com auxílio do MAXQDA. Optou-se pela análise documental como estratégia complementar; uma vez que os documentos representam uma versão específica de realidades construídas para objetivos específicos e, portanto, devem ser vistos como uma forma de contextualização da informação (Flick, 2009). A análise documental pode ser definida como “uma operação ou um conjunto de operações visando representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente da original, a fim de facilitar, num estudo ulterior a sua consulta e referenciação” (BARDIN, 2011).
A análise de conteúdo teve enfoque quanti-qualitativo e indutivo pautado na pesquisa documental, para a busca de indícios que sinalizassem a presença da integralidade em saúde como princípio do SUS na composição das ementas.
A análise de documentos é uma técnica importante de abordagem de dados qualitativos, segundo Richardson (1999, p. 230) “consiste em uma série de operações que visam estudar e analisar um ou vários documentos para descobrir as circunstâncias sociais e econômicas com as quais podem ser relacionadas.”. Assim, a dimensão Integralidade em saúde norteou a busca de dados para a pesquisa.
Em relação à análise dos dados da pesquisa quantitativa, utilizou-se a análise descritiva, aquela que visa apenas registrar e descrever as características de uma determinada população, uma vez que o objetivo do estudo é apenas descrever o fato em si (Marconi & Lakatos, 2005). Sendo assim, os dados quantitativos foram organizados e tabulados no programa Excel 2010 e, posteriormente realizada análise descritiva.
Este projeto não passou pela aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Planalto Catarinense - UNIPLAC por se tratar de pesquisa documental em base de dados de domínio público.
2. Resultados e discussão
As faces da integralidade em saúde nos cursos de graduação de fisioterapia das instituições catarinenses
Considerando as categorias de estudo e as palavras-chave, descritas no tabela 1 encontradas em cada uma das instituições, utilizou-se as faces da integralidade em saúde com base no estudo de Ghizoni, Arruda e Tesser (2010) para relacionar os dados obtidos facilitando assim o entendimento. Nesse sentido, admitiu-se a caracterização de seis faces, conforme demonstrado no tabela 2.
Face | Significado/Conceito |
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Face holística (universidade B) | Apresenta todas as categorias de análise, trabalhando o todo da formação com base nas diretrizes curriculares e preceitos do SUS |
Face ampliada (universidades C e G) | Percebe-se um olhar ampliado na saúde e não somente enfoque na doença, há menção ao SUS, à qualidade de vida, à saúde coletiva. |
Face integrada (universidade D) | Observa-se integração entre os conteúdos, pois se trabalha saúde coletiva e SUS, trabalho integrado como disciplina, integrando as disciplinas do curso. |
Face fragmentada (universidades H e I) | Observa-se desassociação dos conteúdos, de forma que o SUS é trabalhado desarticulado da educação em saúde, não há integração das categorias. |
Face oculta (universidades E, F, I) | Observa-se a presença da categoria e palavra-chave princípios do Sistema Único de Saúde, mas não aparece a palavra-chave integralidade explicitamente. Entende-se que há possibilidade de ser trabalhado o tema, ainda que ocultamente. |
Face nula (universidades A e K) | Não há menção ao Sistema Único de Saúde/ SUS em nenhuma das categorias de estudo, o que caracteriza o nulo. |
Adaptado de Ghizoni (2009)
No presente trabalho, a palavra face foi utilizada no sentido figurado, sendo entendida como aspecto ou característica do curso oferecido pelas universidades pesquisadas considerando e relacionando aos sentidos da palavra integralidade em saúde. As faces descritas na tabela 2, foram adaptadas do trabalho de Ghizoni (2009) e conceituadas a partir dos sentidos do termo integralidade atribuídos por Mattos (2001).
Para compreender os sentidos e significados do princípio da integralidade que emergiram dos cursos, tratou-se os dados a partir das concepções teóricas de Pinheiro & Mattos (2001, p. 12); segundo eles “integralidade é uma palavra que não pode ser nem ao menos chamada de conceito”. Estes autores acrescentam que “na melhor das hipóteses é uma rubrica conveniente para o agrupamento de um conjunto de tendências cognitivas e políticas com alguma imbricação entre si, mas não completamente articuladas”.
Alves (2005, p. 43) destaca, de acordo com sua percepção, que o termo integralidade representa:
Integrar ações preventivas, promocionais e assistenciais; integrar profissionais em equipes interdisciplinar e multiprofissional para uma compreensão mais abrangente dos problemas de saúde e intervenções mais efetivas; integrar partes de um organismo vivo, dilacerado e objetivizado pelo olhar reducionista da biomedicina, e reconhecer nele um sujeito, um semelhante a mim mesmo; nisto implica a assimilação do princípio da integralidade em prol da reorientação do modelo assistencial.
No trabalho de Alves (2005), a integralidade é analisada na ESF (Estratégia Saúde da Família), mas os sentidos acima mencionados podem ser atribuídos a todos os níveis da atenção. O importante é que sejam assimilados na atuação profissional, pelos profissionais envolvidos.
Mesmo se tratando de uma diretriz do Sistema de Saúde brasileiro, a integralidade também é vista como um ideal de atendimento, o que pressupõe ser um princípio de atendimento à saúde.
Em cada nível aqui nomeado de categoria, alguns indicadores foram destacados. As categorias foram utilizadas para que o programa MAXQDA12 fizesse a busca lexical do vocábulono documento todo. Utilizou-se diferentes cores para cada categoria de análise. A cor amarela foi utilizada para categoria educação em saúde, a cor azul para princípios do SUS, vermelho para integralidade em saúde e verde para formação em fisioterapia com base na integralidade como demonstrado na figura 1 a seguir.
Foram encontradas um total de 111 palavras-chave de todas as pesquisadas, sendo que 80% pertenciam a categoria educação em saúde, 10% à formação da fisioterapia com base na integralidade, 6% princípios do SUS e 4% sobre integralidade em saúde. Mesmo sendo um estudo de natureza qualitativa, os percentuais aqui apresentados foram construídos para organizar e auxiliar o processo de análise qualitativa.
A universidade B, entendida como aquela que apresentou a face holística do princípio da integralidade em saúde. Isso porque nas disciplinas do curso dessa instituição pôde-se observar a preocupação em formar profissionais a partir das diretrizes curriculares, fisioterapeutas preparados a atuar no sistema de saúde vigente no país. Todas as categorias de análise deste estudo foram identificadas, diferente do que ocorreu nas demais. Observou-se na mesma instituição que a palavra-chave saúde coletiva apareceu 7 vezes, saúde da família 3 vezes e fisioterapia na saúde coletiva também 3 vezes, esta última sendo parte integrante da categoria formação em fisioterapia com base na integralidade.
Uma face holística, porque esta visão abre nova perspectiva aos fisioterapeutas. A possibilidade de se considerar o todo acrescentando o movimento de religação a um conjunto desmontado, à totalidade fragmentada. A construção de conhecimento/processo de formação do fisioterapeuta, segundo Morin (1998), inclui estabelecer relações. O autor chama a atenção para o fato de que não há um único modo de aprendizado. O processo cognitivo é processo complexo, porque é preciso ampliar o pensamento para ver o objeto de estudo e suas relações com outros objetos.
As universidades C e G articulam diferentes possibilidades para a ampliação do pensamento a partir do curso que oferecem, ou da forma como articulam epidemiologia com educação em saúde, articulam prevenção de doença com promoção da saúde, que é um dos sentidos da palavra integralidade, segundo Mattos (2004).
A face integrada aparece de forma mais destacada na universidade D, que teve preocupação de inserir nas matrizes curriculares dos cursos o “trabalho integrado”, além de trabalhar SUS e saúde coletiva na sua ementa. De acordo com Ghizoni, Arruda & Tesser (2010, p 08) “com o desenvolvimento do conhecimento humano, a perspectiva de interconexão amplia a visão, permitindo a compreensão da complementaridade entre os sabres e as profissões”, assim é fundamental que a prática da interdisciplinaridade aconteça desde a formação dos futuros profissionais da saúde, pois quando forem atuar estarão familiarizados com essa forma de abordagem, em que se aprecia o humano na sua totalidade, com auxílio de diversos olhares voltados a uma mesma finalidade, tanto individualmente quanto no coletivo. Um processo de formação que inclui em seu currículo o “trabalho integrado” possibilita pensar na relação entre teoria e prática, contribuindo para uma formação que coloca o curso e os educadores frente a novos desafios.
Ao contrário da face integrada, está a face fragmentada (anti-interdisciplinaridade); pois as palavras-chave que apareceram sinalizam um trabalho pouco articulado, fragmentado, não relacionando os conteúdos, não integrando as categorias. Pensando nas necessidades sociais em saúde, é fundamental considerar a interdisciplinaridade na construção das matrizes curriculares para além dos setores educação e saúde (Rocha et al, 2010).
Em estudo com alunos dos cursos de graduação em saúde da Universidade Federal de Pernambuco, Nunes Junior, Vasconcelos e Arantes (2017) observaram que a percepção dos acadêmicos ainda mostra a necessidade de mudanças na estrutura curricular de seus respectivos cursos para favorecer uma melhor atuação profissional no SUS. Segundo os autores, faz-se necessário “sensibilizar as instâncias cabíveis sobre a importância da multidisciplinariedade, bem como a articulação entre as instâncias que compõe o Quadrilátero da Formação (instituição de ensino, serviços de saúde, a gestão e os dispositivos de controle social) na criação de práticas no SUS que envolvam os diversos níveis de atenção e complexidade do sistema” (Nunes Junior, Vasconselos & Arantes, 2017, p.25).
A face fragmentada pode simbolizar, devido a pouca integração das disciplinas e quase nenhuma menção ao SUS, a um modelo de fisioterapia reabilitadora, que segundo Bispo Jr (2010, p.1630) se limita, quase exclusivamente, ao controle dos danos de determinadas doenças. Segundo este autor, a “atuação na fisioterapia reabilitadora é destinada à cura de determinadas enfermidades e/ou a reabilitação de sequelas e complicações” sendo seu “objeto de intervenção é o sujeito individualizado, quando não, apenas partes ou órgãos isolados do corpo”, o que sinaliza uma face fragmentada, baseada no reducionismo, no modelo hospitalocênctrico, onde o profissional só se preocupa com casos de doenças já instaladas, onde ou há cura, sequela ou reabilitação.
Segundo Almeida, Martins & Escalda (2014,p.277) “o ensino em fisioterapia ainda não privilegia o SUS e seus princípios e eixos norteadores, como a integralidade”. Eles salientam a dificuldade de incorporar a “integralidade como tema transversal de modo que a mesma não esteja mais restrita a um núcleo de disciplinas, passando a estar presente em diferentes disciplinas de distintas áreas do conhecimento, como também sendo operacionalizada nas atividades práticas, estágios, projetos de pesquisa, extensão”.
Acredita-se na transformação do modelo hegemônico para um modelo baseado na integralidade em saúde, mas esse processo é longo e a mudança precisa iniciar nas instituições formadoras, alterando suas disciplinas e conteúdos, capacitando o corpo docente a estimular seus alunos na busca pela visão ampliada da saúde (Almeida, Martins & Escalda, 2014), como se conseguiu perceber nas universidades C e G, caracterizadas pela face ampliada de saúde, em que se observa a preocupação com o olhar ampliado na saúde, pois articula três categorias do estudo e as palavras-chave prevenção de doenças e promoção da saúde, ou reune palavras-chave saúde coletiva e Programa Saúde da Família (PSF).
Na face oculta, caracterizada na tabela 2, observa-se a preocupação em se estudar o SUS (embora não aborde explicitamente seus princípios). Consideram-se como face oculta as universidades E, F, I pois as palavras-chave e categorias que apareceram possibilitam a discussão sobre os princípios do SUS, mais especificamente sobre a integralidade, ainda que ocultamente. Ao passo que a Lei 8080/1990 traz a integralidade como diretriz do SUS, quando se estuda o Sistema Único de Saúde e a saúde coletiva nas instituições identificadas como face oculta, entende-se que há possibilidade de se abranger o estudo nos princípios que regem o sistema.
Ainda que seja discreta a abordagem ao princípio da integralidade durante a formação, pode-se estimular no estudante o interesse em aprofundar seu conhecimento no tema, desenvolvendo futuramente um trabalho baseado nas premissas do SUS, assim como sinaliza Mattos (2004, p.1415) afirma que “há muitos profissionais que, mesmo sem uma formulação teórica da proposta, ou mesmo sem utilizar o termo, praticam a integralidade no seu cotidiano”
Observa-se face nula nas universidades A e K, já que não há nenhuma menção ao SUS, princípios do SUS, nem a integralidade em saúde, a formação com base na integralidade, o que causa preocupação pois como preparar profissionais a atuar no sistema de saúde, estudar a saúde pública, ignorando o SUS e seus princípios? A face nula representa a total falta de abordagem sobre o SUS durante a formação dos profissionais. De acordo com Souza et al (2012), a fisioterapia precisa decidir seu objeto de intervenção e aproximar-se da saúde coletiva, sem deixar de lado suas habilidades de reabilitação. Os autores relatam que “os cursos de formação em Fisioterapia devem romper com o modelo reabilitador privatista e fundamentar-se nos princípios do Sistema Único de Saúde e no perfil populacional” (Souza et al, 2012, p.457). Precisa-se somar as possibilidades de atuação do profissional, apresentar-lhes durante o processo de formação a possibilidade de atuação na atenção primária, para tanto é fundamental o estudo da saúde coletiva, SUS e seus princípios.
De fato, a formação de profissionais com o pensamento sistemico e capaz de compreender de forma ampliada a ideia de Integralidade é um grande desafio para a prática docente e para as Universidades. As mudanças que aqui discutimos estão diretamente articuladas à mudança de paradigmas, que incluem redefinição de saberes e de práticas (Brehmer, 2016).
Conclusões
Conclui-se com o estudo, a importância de revisar periodicamnete em concordância com as DCNs, as matrizes curriculares e programas na busca de um processo de formação profissional que capacite os fisioterapeutas a atuar em todas as áreas e níveis de atenção à saúde em conformidade com a necessidade da população, para se alterar a visão reducionista e assistencialista do profissional fisioterapeuta.
Incluir nos conteúdos trabalhados nas disciplinas o SUS e seus princípios poderá garantir uma formação do profissional preparado a atuar no sistema. Infelizmente como visto nesta pesquisa, ainda existem universidades que insistem em ignorar o SUS em sua matriz curricular e conteúdo das disciplinas, o que é lamentável tendo em vista que o sistema acolherá muitos dos futuros profissionais da saúde, no caso dos futuros fisioterapeutas. Além disso, a falta de compreensão sobre o SUS, seus princípios podem gerar prevalência de um olhar nas atenções secundária e terciária à saúde. Compreendemos que se torna fundamental a apresentação da possibilidade da atuação de forma integral, interdisciplinar aos alunos para que possam decidir posteriormente qual caminho seguir profissionalmente.
O estudo mostrou que a integralidade ainda é traduzida em faces variadas fruto, possivelmente, de uma formação profissional oriunda de contextos institucionais diversos e, por vezes, dissociados das necessidades do SUS da produção de cuidado integral em saúde. Observou-se a presença de 6 faces: holística (em que todas as categorias de análise se fazem presente), ampliada (observa-se a preocupação com olhar ampliado de saúde, articulando conteúdos relacionados a integralidade), integrada (onde observa-se entre as disciplinas), fragmentada (desassociação entre conteúdos, onde se trabalha SUS separado da educação em saúde), oculta (há presença da palavra SUS, indicando possibilidade de que a integralidade seja trabalhada, ainda que ocultamente nos conteúdos) e nula (nenhuma categoria da pesquisa foi encontrada, sugerindo-se que a integralidade e o SUS não são trabalhados na graduação). Essas faces ainda que antagônicas, garantem a existência de uma prática profissional plural e diversa.
Este estudo mostrou a existência de um espaço favorável para o fortalecimento do modelo de atenção básica já no processo de formação, para que os alunos possam vivenciar desde cedo práticas que fortaleçam os serviços de saúde. Entretanto, as universidades não podem mais se configurar como uma estrutura fechada à mudança, perpetuando a dicotomia entre teoria e prática.