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Sociologia, Problemas e Práticas
versão impressa ISSN 0873-6529
Sociologia, Problemas e Práticas no.82 Lisboa set. 2016
https://doi.org/10.7458/SPP2016827404
RECENSÃO
Mudanças Culturais, Mudanças Religiosas. Perfis e Tendências da Religiosidade em Portugal Numa Perspetiva Comparada [Eduardo Duque, 2014, Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus]
José Pereira Coutinho*
* Investigador, Númena. Taguspark Núcleo central, 379, 2740-122, Porto Salvo. E-mail: jose.coutinho@numena.org.pt
Eduardo Duque, professor auxiliar na Universidade Católica Portuguesa (Braga), apresentou em 2008 a sua tese de doutoramento em sociologia na Universidade Complutense de Madrid, recebendo pela mesma o Prémio Extraordinário. O presente livro atualiza a sua tese, diferenciando-a apenas em dois aspetos. Primeiro, um dos sete objetivos específicos da tese não foi desenvolvido neste livro (Indagar se a igreja católica continua a ser um dos grandes mobilizadores da sociedade portuguesa e consequentemente um dador de sentido). Segundo, sendo este livro posterior à última edição do European Values Study (EVS), realizada em 2008, o autor prescindiu das outras bases de dados internacionais utilizadas na sua tese, empregando unicamente o EVS. As conclusões dos dois trabalhos, na sua amplitude, são iguais, mesmo que haja ligeiras dissemelhanças nos resultados, decorrentes da aplicação de anos e de bases de dados diferentes.
Assente na sociologia compreensiva de Weber, o autor desenvolve uma abordagem sistémica, para examinar a realidade de forma alargada. A complexidade da realidade sociocultural, assim como da realidade religiosa inclusa na mesma, é demasiada para se optar por modelos simples de análise, de causalidade linear. Esta opção também se justifica pela aspiração do autor a analisar a realidade religiosa de várias perspetivas, expressas no elevado número de objetivos, sumarizáveis no seguinte: caracterizar a religiosidade dos portugueses, compará-la com os países católicos europeus e compreender a influência dos fatores sociais e culturais na mesma. Com a mudança sociocultural em curso abre-se caminho para reconfigurações do religioso que importa analisar, tanto na perspetiva a jusante, do religioso em si, como a montante, das transformações sociais e culturais. Além disso, a comparação com países com a mesma matriz histórica e religiosa possibilita situar Portugal no contexto europeu.
Para implementar estes objetivos, o autor aposta na metodologia quantitativa, recorrendo ao inquérito por questionário como instrumento de trabalho. O EVS, porventura a base de dados internacional mais indicada para o estudo da religião, pela variedade e adequabilidade dos indicadores disponíveis, foi usado exaustivamente e na maioria das vezes de forma longitudinal. Desdobrando-se em dimensões, indicadores e análises, o autor disponibiliza dados e informação em abundância, numa área pouco estudada no nosso país. A tese de doutoramento de Oliveira (1995), com pontos convergentes com a de Duque, concorreu no seu tempo para aumentar o conhecimento da realidade religiosa portuguesa, pela análise do contexto social, como pela caracterização minuciosa da população portuguesa em termos religiosos. No entanto, para além da sua perspetiva sincrónica, encontra-se relativamente desatualizada. Resumidamente, o contributo valioso de Duque com este livro, para além da atualidade, da diacronia e da comparação internacional, passa pela caracterização extensiva da religiosidade (desenvolvendo índices, analisando dimensões e cruzando variáveis) e pelo estudo da relação dos fatores socioculturais com a religiosidade.
Passemos agora a olhar para cada capítulo. Após justificar a pertinência do seu estudo no capítulo primeiro (introdução), o autor faz o enquadramento teórico no capítulo segundo. Começa pela definição de religião, cuja dificuldade, que o autor menciona e discute, se coloca habitualmente nos estudos desta área. Seguindo Berger, Duque considera que a definição tem de ser construída em função de determinada pesquisa, pois a validade universal das definições torna-se impossível devido à enorme variedade de objetos religiosos. A sua definição parece oportuna, tanto pelos autores escolhidos (por exemplo, Durkheim ou Luckmann), como pelo ajustamento à realidade estudada. De seguida, o autor desenvolve a sua narrativa sobre a evolução da razão na modernidade, na secularização e no desencantamento do mundo como sua consequência, o que demonstra bem a influência de Weber. Como refere Duque, não estando consumada a modernidade, na pós-modernidade tudo se torna possível, nomeadamente o retorno do religioso, porventura renovado e consolidado, mas agora marcado pela subjetividade, pela abertura e pela contingência. Talvez a arte pudesse ser mais explorada. Sobre a secularização, os trabalhos de síntese de Dobbelaere ou Tschannen, os contributos de Bruce, Davie ou Taylor poderiam ser lembrados; Martin e Casanova poderiam ser referidos não só em notas de rodapé, mas no corpo do texto. Autores como Hervieu-Léger, Heelas ou Woodhead poderiam ser bastante úteis para melhor definir a religiosidade pós-moderna, indo ao encontro do pretendido por Duque. As recomposições religiosas, a religião à la carte, a bricolage são assuntos centrais em Hervieu-Léger, enquanto a dicotomia religião/espiritualidade é discutida por Heelas e Woodhead. Para terminar o enquadramento teórico Duque desenvolve e explora as três teorias que subjazem à mudança sociocultural atual e que são testadas diretamente neste trabalho (individualização, materialismo /pós-materialismo e centro/periferia); daí justamente o seu destaque relativamente às outras questões teóricas.
No capítulo terceiro, Duque expõe a metodologia usada, quantitativa, assente em desenhos longitudinais, com dados de 1990, 2000 e/ou 2008, tendo em vista entender as tendências ao longo do tempo. Relativamente às fontes, o autor baseia o seu estudo no EVS, apoiando-se ainda, a nível internacional, nas bases de dados do Vaticano e, a nível nacional, no INE e nos dados fornecidos pela igreja, o que parece a melhor opção. Termina descrevendo os indicadores e as análises usadas (univariadas, bivariadas e multivariadas), as quais são muitas e variadas, o que demonstra o empenho do autor na qualidade da sua obra.
No capítulo quarto, passa-se para a análise dos resultados da dimensão religiosa, com quatro partes. Na primeira parte, na autoidentificação religiosa, enquadram-se os seguintes indicadores: sentimento religioso, pertença religiosa e matriz religiosa dominante. Refira-se, todavia, que, devido à subjetividade inerente à interpretação dos mesmos, a sua utilização requer cuidado. Na segunda parte, na assistência aos serviços religiosos, relembre-se que este é o indicador mais antigo da religiosidade e, apesar das suas limitações, talvez seja dos mais fiáveis. Basta lembrar que os censos da igreja e os vários estudos portugueses realizados neste domínio, tal como o estudo mais recente de Teixeira (2013), sempre se apoiaram neste indicador. A terceira parte começa pela dimensão religiosa (importância de Deus, importância da religião, consolo e fortaleza na religião). No final desta análise o autor apresenta um índice de religiosidade baseado nas seguintes variáveis: prática religiosa, frequência de oração, importância de Deus na vida, importância da religião na vida, sentimento religioso, crença em Deus, conceção de Deus. Consciente da complexidade da realidade em estudo e da inadequação de análises anteriores baseadas somente na prática religiosa, porventura mais adequadas para sociedades menos complexas, o autor desenvolve justamente este índice, assente tanto nas práticas como nas crenças e nas atitudes. Depois da dimensão religiosa passa para a dimensão valorativa (atitudes frente a diferenças sociais, aceitação de comportamentos sociais, importância da família). Com bases em indicadores desta dimensão desenvolve uma análise de componentes principais, para reduzir a informação existente, chegando a três fatores: consciência moral, tolerância e dimensão relacional. Passa de seguida para a dimensão crencial (Deus, vida depois da morte, inferno, céu, pecado e reencarnação; e conceito de sobrenatural). Com todas as variáveis, exceto a última, o autor cria um índice de crencialidade. Por fim, Duque apresenta a dimensão institucional (atitudes perante a igreja confiança nas instituições, pertença a organizações e atividades de voluntariado; resposta institucional ritos e sacramentos, outras respostas da igreja aos problemas morais, problemas da vida familiar, necessidades espirituais, problemas sociais do seu país). No final do capítulo o autor analisa a desinstitucionalização religiosa, criando uma escala para medir a religiosidade privada e pública com indicadores apropriados. Na primeira usa os indicadores: crença num Deus pessoal, importância de Deus, sentimento religioso, frequência à oração e se encontra consolo e fortaleza na religião. Na segunda usa os indicadores: prática religiosa, grau de confiança na igreja, importância dada aos três ritos de passagem. Por último, define novas dimensões de religiosidade conjugando três indicadores (sentimento religioso religiosidade privada, prática religiosa religiosidade pública, e posição religiosa religiosidade privada e pública).
No capítulo quinto passa para a análise da dimensão sociocultural, estudando a individualização, o materialismo/pós-materialismo e a posição social. Na individualização, após aplicação de análise fatorial verificam-se as variáveis que melhor explicam os valores tradicionais e de individualização, respetivamente. Com base na polarização dos dois valores mais importantes de cada, constrói um índice, analisando-o de seguida. No segundo aspeto, usam-se quatro indicadores apropriados para se construirem escalas e assim determinar os materialistas, os pós-materialistas e os mistos. Para se analisar a posição social, constrói-se um índice com base em sete variáveis sociodemográficas. Por fim, o autor faz a correlação entre a segunda dimensão e as duas outras, para testar as hipóteses: quanto maiores o grau de individualização e a posição social maiores os valores pós-materialistas.
No capítulo sexto procede-se ao estudo da relação entre as dimensões religiosa e sociocultural. Cruza-se a posição religiosa e a prática religiosa com os índices/escalas acima referidos. Analisa-se a capacidade preditiva de modelos sociodemográficos, valorativos e socioculturais sobre a religiosidade. Por último, analisa-se a predição das variáveis dos modelos sobre a religiosidade. Depois de se concluir que são as variáveis do modelo sociocultural que predizem mais a religiosidade, segue-se para a sua análise.
No capítulo sétimo, discutem-se os resultados e apresentam-se as conclusões. Na discussão aborda-se a confirmação das três hipóteses do livro. A primeira hipótese não é rejeitada, ou seja, à medida que as sociedades se desenvolvem reestrutura-se a dimensão valorativa, o que reconfigura uma nova mentalidade. A segunda hipótese também não é rejeitada, ou seja, a reconfiguração da mentalidade leva à criação de novas formas de religiosidade de foro mais privado e desinstitucionalizado. A terceira hipótese não é igualmente rejeitada, ou seja, embora Portugal partilhe muitos valores com os outros países, ao contrário deles, a religião tem ainda forte expressividade. Na conclusão, Duque sintetiza primeiro os principais resultados do estudo, o que parece acertado em vista do acervo produzido. Por fim, apresenta as principais conclusões do estudo, que se resumem no seguinte: Fica, assim, claro, que se assiste a uma reconfiguração da religiosidade portuguesa motivada, em parte, pelos valores emergentes, o que demonstra que esta religiosidade não é alheia às mudanças socioculturais, próprias do desenvolvimento da sociedade, mas sim, que se metamorfoseia, adaptando-se às particularidades que definem a mentalidade contemporânea.
Referências bibliográficas
Duque, Eduardo (2008), El Fenomeno Religioso y Sus Influencias Sociales. Perfiles y Tendencias del Cambio Religioso en Portugal, Madrid, Universidade Complutense de Madrid, tese de doutoramento em Sociologia. [ Links ]
Oliveira, Carlos (1995), Atitudes e Comportamentos Religiosos dos Portugueses na Actualidade, Évora, Universidade de Évora, tese de doutoramento em Sociologia. [ Links ]
Teixeira, Alfredo (2013), A eclesiosfera católica: pertença diferenciada, Didaskalia, XLIII (1/2), pp. 115-205. [ Links ]