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Etnográfica
versão impressa ISSN 0873-6561
Etnográfica v.14 n.1 Lisboa fev. 2010
Peter Geschiere
The perils of belonging: autochthony, citizenship, and exclusion in Africa and Europe
Chicago, The University of Chicago Press, 2009, 283 páginas.
Peter Geschiere, antropólogo africanista de nomeada, escreve um livro sobre autoctonia em que compara a emergência recente do conceito na vida política da África Oriental e da Holanda, seu país natal. Aí, a ênfase no conceito responde a uma viragem da vida política na primeira metade dos anos 2000, ocasionada por dois assassinatos políticos altamente mediatizados. Entretanto, a morte em 2005 de onze migrantes ilegais num fogo acidental numa prisão temporária veio alertar a opinião holandesa para os perigos de uma política apressada de combate à imigração.
Um país que se tinha visto sempre como território de migração foi confrontado com a necessidade urgente de repensar as bases das suas concepções de cidadania. Se, antes, o equilíbrio entre católicos, protestantes, liberais e socialistas (os famosos quatro pilares do pós-Guerra) tinha conformado uma divisão política na unidade nacional, no novo século, claramente, a questão punha-se noutros termos. O país teve de remodelar-se, construindo uma nova dinâmica de cidadania. O livro de Peter Geschiere faz parte desse esforço mas tem uma relevância maior, já que um pouco por toda a parte nos anos 90 os discursos políticos de indigenismo e regionalismo foram promovidos por recurso à noção de autoctonia. Está em causa, de facto, uma questão pendente em toda uma vasta gama de processos políticos e sociais com implicações tanto locais como globais.
Enquanto nos últimos vinte anos os antropólogos têm prestado muita atenção ao apelo do sangue como processo de identificação social, menos atenção tem sido dada ao apelo do solo. Assim, a questão levanta-se: estaremos aqui perante uma oposição caracteristicamente ocidental (jus solis v. jus sanguinis), como argumentava David Schneider nos meados dos anos 80? Ou, pelo contrário, tratar-se-á de uma polarização que tem hoje abrangência universal? Na verdade, os dados apresentados por Geschiere sugerem que há uma equivalência na forma como a questão da autoctonia emerge na Holanda dos nossos dias, na Atenas clássica e um pouco por toda a África dos anos 90 o autor dá exemplos detalhados dos Camarões e da Costa do Marfim, mas também do Congo oriental e da África do Sul.
Na Atenas do período clássico, o recurso à autoctonia para delimitar as fronteiras da cidadania útil demonstrou-se efémero e implicava a exclusão de muita gente do acesso à participação política. Já aí na sua origem, portanto, o conceito terá dado azo a conflitos insanáveis por estar ferido de uma ambiguidade essencial. A inspiração central de Peter Geschiere é o famoso argumento de Achille Mbembe segundo o qual a autoctonia é basicamente impossível porque ela propõe um universo sem Outro.[1] A alteridade é anterior à identidade e o que caracteriza a humanidade é a comunicação e a mobilidade, pelo que o apelo à radicação como fonte de validação política será sempre ferido de inumanidade. Tal como em Atenas, a história é sempre sobre uma migração inicial (p. 61) frase feliz que urge recordar.
É curioso que Peter Geschiere não tenha escolhido alargar a sua perspectiva remetendo para uma visão mais abrangente dos processos de identificação e de objectivação identitária. O óbvio paralelismo entre os dispositivos solo e sangue, que estão na base de tantos dos processos de identificação política que marcam a nossa contemporaneidade, parece não o interessar. O seu objectivo é demonstrar que a pertença ao solo é um fenómeno ambíguo e caracterizado por uma qualidade recessiva isto é, quanto mais se procura identificá-lo mais ele nos escapa. O que isso significa é que, sempre que o discurso político opta por recorrer a processos de exclusão de alóctonos (como se diz agora na Holanda), ele dá azo a processos recessivos tendencialmente paranóicos de procura de maior e maior purificação. Os resultados, tais como exemplificados pela infame Operação Nacional de Identificação levada a cabo por Laurent Gbagbo e os seus sequazes na Costa de Marfim, foram realmente demoníacos.
Após a queda do Muro de Berlim, como resultado das novas políticas neoliberais do Banco Mundial e do FMI, ocorreu uma inflexão na vida política das nações africanas. Para Peter Geschiere, o nacionalismo autoritário do período pós-colonial tinha assumido uma engenharia social que tomava forma em rituais repressivos e distantes. Pelo contrário, o apelo à democratização e descentralização promovido pelas agências internacionais que controlam economicamente as actuais elites africanas permitiu a emergência de um discurso essencialista que promove a xenofobia. Nas suas próprias palavras: A ênfase anterior numa cidadania nacional poderia ter tido as suas desvantagens também, mas pelo menos essa identificação tinha uma base formal clara que está totalmente ausente no género de identidades regionais e até locais que a descentralização favorece (p. 95).
O conceito de autoctonia apresenta-se inicialmente como self-evident para logo se revelar, afinal, fugaz e evanescente. Por isso, seria politicamente perverso. O que o autor parece esquecer, contudo, é que muitos dos conceitos que mais têm ocupado a humanidade são desse tipo: fugazes e evanescentes. Isso não significa que não existam ou que não façam sentido. Sobretudo, isso não significa que não tenham sido usados por gerações e gerações de seres humanos como meios de mobilizar acção colectiva e que, quando as pessoas falavam umas com as outras sobre eles, não tenham sabido do que falavam. Enquanto é fácil concordar com o autor no sentido de rejeitar a promoção política da xenofobia através do conceito de autoctonia, tanto na Europa como em África, já não é tão fácil concordar que a solução seja procurar maior segurança noutros conceitos que sejam menos fugazes e menos evanescentes.
O autor empenha-se numa tentativa de usar alguns conceitos neofoucaultianos, tais como techniques du corps e subjectivação, para analisar os rituais funerários que, nos Camarões, marcam a pertença última à aldeia. Segundo Peter Geschiere, os anteriores rituais nacionalistas teriam sido muito menos eficientes como instrumentos de subjectivação. É fácil ao leitor concordar que o conceito de autoctonia é muito subjectivante, mas quais as implicações a tirar dessa constatação? No decorrer da leitura fica-se com a sensação de que, face ao horror do conflito recente, o autor talvez sinta alguma nostalgia retrospectiva por um nacionalismo autoritário que, na África Ocidental pelo menos, não terá sido tão sanguinário e destrutivo quanto a democratização subsequente. Mas se assim é, os exemplos de Moçambique e Angola deveriam afastar essa nostalgia.
Estamos aqui perante um dos maiores desafios à nossa contemporaneidade: saber encontrar formas de promover projectos políticos locais na presente conjuntura da globalização; projectos que respeitem as condições da tarefa colectiva local mas que não se afastem do respeito da nossa mais abrangente condição humana e, portanto, que sustentem os direitos humanos (no sentido mais lato e muito fugidio da expressão). Se o apelo à localização através de autoctonias fantasiosas tem resultados tão nefastos, tal prende-se com a inexistência de instâncias políticas mais abrangentes que assegurem os direitos humanos. Se os apelos à democratização e à autonomia regional em África deram resultados tão perversos, isso não tem a ver com as características perversas do conceito de autoctonia. Deve-se, outrossim, à inexistência de instâncias globais que protejam os africanos da exploração desenfreada de matérias-primas, da sobreexploração do trabalho, da promoção desenfreada da venda de armas, do desemprego estrutural de várias gerações sucessivas. Instâncias que permitam alguma justiça no acesso legítimo de todos os humanos aos bens de consumo que a modernidade oferece e que são incontrolavelmente fascinantes para todos os humanos por igual, em todas as partes do mundo. Se o mundo não chega para satisfazer todos como parece estar a tornar-se evidente , a solução não parece ser a construção de muros para conter a pobreza. A tragédia que se vive do outro lado desses muros não pode deixar de nos co-mover, de nos impelir a procurar outras soluções.
Em suma, não me parece adequado confundir as críticas ao modelo neoliberal de globalização a que fomos obrigados a assistir horrorizados nas últimas décadas, com democratização e descentralização. Primeiro, porque não há como voltar atrás, aos nacionalismos africanos anteriores. Se tal fosse possível, eles revelar-se-iam tão vácuos e perigosos como se revelaram todos os nacionalismos desenfreados a história da Europa já devia ter-nos ensinado isso de forma definitiva. Segundo, porque o problema não está nem com a democracia nem com a autonomia local aspectos em si mesmos valiosos , mas com a inexistência de instâncias de co-responsabilização global.
João de Pina Cabral
ICS Universidade de Lisboa
[1] Cf., por exemplo, A. Mbembe (2000), A propos des écritures africaines de soi, Politique Africaine, 77: 16-43.