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Etnográfica
versão impressa ISSN 0873-6561
Etnográfica vol.19 no.3 Lisboa out. 2015
ARTIGOS
O mundo do crime e a lei da favela: aspectos simbólicos da violência de gangues na região metropolitana de Belo Horizonte
The world of crime and the law of the slum: symbolic aspects of gang violence at the metropolitan region of Belo Horizonte
Luís Felipe ZilliI
IFundação João Pinheiro (FJP/MG), Brasil. E-mail: felipe.zilli@fjp.mg.gov.br
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo discutir as dimensões simbólicas que perpassam as práticas de violência entre grupos de jovens delinquentes que atuam em favelas e bairros pobres das periferias da região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), capital do estado de Minas Gerais, Brasil. Por meio das categorias nativas de mundo do crime e lei da favela, estruturas simbólicas fortemente presentes na narrativa de adolescentes e jovens membros de gangues, pretende-se compreender melhor o universo moral e normativo que sustenta os episódios de violência e conflitos armados travados entre tais grupos. Neste texto, tal análise é feita com base em material qualitativo, obtido entre os anos de 2010 e 2011, a partir da realização de 40 entrevistas em profundidade com adolescentes e jovens que possuíam trajetória de envolvimento com dinâmicas criminais como tráfico de drogas e homicídios, praticados enquanto membros de grupos criminosos armados que atuam em favelas da RMBH.
Palavras-chave: violência, criminalidade, gangues, favelas, violência juvenil, grupos armados
ABSTRACT
This article aims to discuss the symbolic dimensions that underlie the practice of violence between groups of young offenders in slums and poor neighborhoods of the suburbs of the metropolitan region of Belo Horizonte (MRBH), capital of the state of Minas Gerais, Brazil. Through the native categories of world of crime and law of the slum (favela), strongly present in the narrative of adolescents and young gang members, we intend to better understand the moral and normative universe that sustains the episodes of violence and armed conflicts between such groups. In this text, such analysis draws on extensive qualitative material, obtained between the years 2010 and 2011, from 40 in-depth interviews with young people who had intense trajectory of involvement with criminal dynamics as drug trafficking and murders, committed as members of armed criminal groups operating in the MRBH slums.
Keywords: violence, crime, gangs, slums, youth violence, armed groups
Segundo registros do Ministério da Saúde, o Brasil foi palco de pouco mais de 1,2 milhões de homicídios entre os anos de 1980 e 2012. Isto significa que, em média, uma pessoa foi assassinada no país a cada 15 minutos, ao longo de todo este período. Em 1980, um ano após o Ministério da Saúde dar início à contabilidade oficial dos homicídios no país, o Brasil possuía uma taxa de 11,7 assassinatos para cada grupo de 100 mil habitantes. Em 2012, essa proporção atingiu a marca de 29 mortes para cada 100 mil habitantes, um crescimento bruto de aproximadamente 147% (Waiselfisz 2014). O gráfico a seguir ilustra a trajetória ascendente da violência letal no Brasil.
Apresentadas desta forma, tais cifras induziriam a pensar que o problema da violência letal explodiu de forma endêmica no país. No entanto, a análise destes indicadores desagregados demonstra que o agravamento dos homicídios atingiu um perfil bastante específico da população: em termos médios, a vítima de homicídio no Brasil mora em um grande centro urbano, é homem, preto ou pardo, tem entre 15 e 24 anos, baixa escolaridade, foi ferida por arma de fogo leve e morreu em via pública. Tomando a variável escolaridade como proxy de renda, também é possível inferir que as vítimas são, em sua esmagadora maioria, oriundas de classes de baixo status socioeconômico (Soares 2008; Cruz e Batitucci 2007; Zaluar e Monteiro 2012; Waiselfisz 2014).
Além de vitimar preferencialmente um segmento bastante específico dentro do conjunto da população, os homicídios no Brasil também demonstraram, ao longo dos últimos anos, ter um padrão de distribuição espacial bastante específico. Mesmo dentro das grandes cidades, os assassinatos encontram-se extremamente concentrados em áreas de favelas e/ou bairros de periferia, regiões estas ocupadas por populações de baixa renda e caracterizadas por pouca ou nenhuma provisão de serviços, presença rarefeita do poder público, infraestrutura urbanística precária e baixos índices de desenvolvimento humano. Ou seja, existe no Brasil uma correlação espacial bastante forte entre indicadores de vulnerabilidade social e a manifestação de altas taxas de homicídios (Beato Filho et al. 2001; Paim et al. 1999; Rivero 2010; Cano 1998; Cano e Borges 2012; Barcellos e Zaluar 2014; Cruz e Carvalho 1998; Yi et al. 2000; Szwarcwald e Castilho 1998).
Somado à concentração em áreas de favelas e bairros de periferia, os homicídios também apresentam um caráter extremamente endógeno no que diz respeito ao ambiente em que se dá a interação entre vítimas e autores. Estudos elaborados a partir de registros oficiais demonstram que, na maioria dos assassinatos, a distância média entre as residências da vítima, do autor e o local onde o crime ocorreu não ultrapassa 1,5 quilômetros e que, em boa parte das ocorrências, este triângulo territorial não chega a ter nenhum de seus lados maior do que 500 metros (Peixoto 2003; Beato Filho 2012; SSP-SP 2010).
Esta informação ganha ainda mais relevância quando pensada em consonância com dados que tratam do perfil dos autores dos homicídios: em 2006, um levantamento feito junto às polícias civis de 24 estados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) demonstrou que adolescentes e jovens de 12 a 24 anos respondiam pela autoria de 51% dos crimes entre as 14.090 investigações sobre homicídios dolosos concluídas entre os anos de 2004 e 2005. Tal informação demonstra o fenômeno da dupla entrada dos jovens no contexto da violência letal brasileira, ora como vítimas, ora como autores (Senasp 2006).
O que se observa, portanto, é que, em grande parte dos casos de homicídio registrados no país, autores e vítimas possuem basicamente o mesmo perfil sociodemográfico (jovens, não brancos, pobres e com baixa instrução formal), moram na mesma vizinhança (favelas e bairros de periferia) e, ao que tudo indica, matam e morrem em função de conflitos estabelecidos e resolvidos de forma violenta e privada, em seus próprios territórios. A configuração assumida pelo fenômeno dos homicídios no Brasil permite inferir que, ao longo dos últimos anos, o país experimentou não apenas uma explosão de seus indicadores de homicídios (com um forte e continuado crescimento das taxas de mortalidade violenta, principalmente a partir do início da década de 1990), mas também um processo de implosão desta violência, dado o perfil de grande concentração socioespacial deste tipo de crime. A escalada das mortes no país atingiu áreas pontuais de suas grandes cidades, vitimando, de maneira focalizada, um perfil populacional bastante específico (Zaluar 2004; Soares, Batitucci e Ribeiro 2007; Beato Filho, Marinho e Oliveira Júnior 2008; Soares 2008).
A existência de um padrão tão claramente identificável para o fenômeno dos homicídios reforça a importância de se compreender, de maneira mais aprofundada, um fenômeno exaustivamente estudado nos Estados Unidos e na América Latina desde os anos 1920 (Thrasher 1927; Shaw e Mckay 1942; Cohen 1955; Miller 1958; Cloward e Ohlin 1960; Spergel 1992; Anderson 1999; Esbensen et al. 2001; Asbury 2002; Bourgois 2002; Hagedorn 2008; Spindler e Bouchard 2011), mas que, no Brasil, só nas últimas duas décadas tem recebido atenção mais direcionada da literatura acadêmica: o envolvimento de adolescentes jovens em gangues ou grupos armados ilegais e seu protagonismo em dinâmicas de violência e processos de estruturação de atividades criminosas nas favelas e bairros pobres das grandes cidades.[1]
Ainda hoje, parte considerável da produção científica nacional aborda o problema do envolvimento de jovens em grupos armados ou gangues de modo tangencial, tendo como foco principal não os grupos em si, suas representações, estruturas ou modos de organização, mas sim os mercados criminais nos quais eles encontram-se inseridos. Muitos desses estudos ainda possuem como foco os altíssimos níveis de violência decorrentes de seus conflitos. Prova disso são as diversas pesquisas já realizadas sobre a atuação de tais grupos em redes de comércio varejista de drogas ilícitas em favelas brasileiras (Zaluar e Monteiro 2012; Misse 2008; Beato Filho 2012; Beato e Zilli 2012).
Alguns estudos, no entanto, dedicam seus esforços a compreender o rico universo de elementos simbólicos e culturais que caracteriza o envolvimento de jovens em grupos armados no Brasil. O argumento central destas pesquisas é o de que, para além de questões criminais e financeiras, boa parte da violência protagonizada por gangues juvenis nas grandes cidades do país também pode ser explicada a partir da consolidação, entre os membros destes grupos, de representações simbólicas e códigos morais que, de certo modo, adotam a violência enquanto elemento estruturador das próprias relações entre indivíduos e seus coletivos (Ramos 2009; Zaluar 2004; Zilli 2011, 2014). E é precisamente dentro desta perspectiva que o presente texto pretende se inserir.
Gangues e subcultura da violência
Para que se estabeleça uma compreensão mais aprofundada do problema da delinquência relacionada à atuação de gangues, também se faz necessário analisar questões relacionadas ao universo moral, normativo, cultural e simbólico que sustenta a própria existência destes grupos. Até porque, se trabalhamos com a hipótese de que as gangues são mais do que simplesmente grupos criminosos, constituindo, por vezes, verdadeiras instâncias de socialização juvenil, adotamos a hipótese análoga de que tais grupos só conseguem influenciar e moldar o comportamento de seus integrantes na medida em que as ações e atitudes socialmente prescritas por eles são respaldadas por algum tipo de sistema normativo, ainda que compartilhado somente pelos membros do próprio grupo.
Existe uma longa tradição de estudos internacionais dedicada a analisar aspectos (sub)culturais e simbólicos inerentes à formação de gangues e grupos de pares delinquentes. De maneira geral, o pressuposto teórico que sustenta este programa de pesquisa é o de que os grupos de pares, enquanto instâncias de socialização primária, desenvolvem sistemas normativos, representações simbólicas e códigos morais próprios que orientam, de maneira diferencial, a ação de seus integrantes. No caso das gangues e grupos delinquentes, tais orientações atuariam no sentido de incentivar, entre seus próprios membros, a emergência de um conjunto de valores e comportamentos socialmente rotulados como desviantes, mas que, dentro do grupo, recebem reforços simbólicos positivos. Esse seria o esquema descritivo geral do que diversos autores chamam de subcultura delinquente (Cohen 1955; Miller 1958; Cloward e Ohlin 1960; Katz 1988; Anderson 1999).[2]
No Brasil, mesmo sem fazer uso claro do termo subcultura, alguns autores também relacionam o fenômeno das gangues ao desenvolvimento de sistemas normativos e simbólicos particulares que, por sua vez, contribuem para a conformação de diversas modalidades de violência e crime. Zaluar (1996), por exemplo, chama a atenção para o surgimento de uma estrutura simbólica e normativa atrelada à violência entre grupos de jovens envolvidos com narcotráfico nas favelas do Rio de Janeiro. Dentro das quadrilhas, os jovens são expostos a uma vasta gama de valores e definições favoráveis ao uso da violência, constituindo o que a autora chama de ethos guerreiro, ou ethos da masculinidade. A posse de armas de fogo, a predisposição para usar a violência enquanto modo preferencial de resolução de conflitos e a disposição para matar marcariam a saída definitiva da infância e a aceitação, por parte dos pares, dos jovens no mundo dos homens. Para além das disputas pelo mercado das drogas, Zaluar chama a atenção para a complexa rede de representações e significações presentes em muitos dos episódios de violência entre gangues (Zaluar 1996).
Outro autor que também enfoca o desenvolvimento de subculturas violentas entre gangues ou grupos delinquentes é Paes Manso (2005). Por meio de pesquisa realizada junto a jovens homicidas da cidade de São Paulo, o autor argumenta que o uso da violência entre gangues paulistanas não pode ser visto apenas a partir da ótica utilitária do enfrentamento e da eliminação dos inimigos. Mais do que isso, a adesão a uma série de condutas violentas por parte daqueles jovens derivaria da necessidade de reforçar laços sociais e identitários entre os membros de gangues, cujo padrão normativo e simbólico é umbilicalmente vinculado às práticas criminosas e violentas (Paes Manso 2005).
Segundo o argumento de Paes Manso, a violência que marca o cotidiano dos grupos de jovens delinquentes não ocuparia um papel simplesmente utilitário, ou seja, um meio com vistas à obtenção de fins concretos ou materiais dentro da lógica criminal. Impregnada no próprio processo de formação dos grupos, o uso da violência acaba se transformando em uma espécie de estrutura normativa a partir da qual os jovens e seus grupos orientam suas ações, representações e modos de relação. Tanto que esta violência extrema se manifesta em situações corriqueiras de interação entre estes atores como, por exemplo, discussões sobre futebol, disputas por mulheres e outros desentendimentos banais. Como produto desta subcultura, destaca-se o apelo constante às práticas de violência, enquanto instrumento socialmente legítimo de resolução de conflitos.
Mesmo movido por uma discussão banal, o autor do homicídio tinha um revólver e tomou uma medida aceita apenas no universo criminal. Não foi por morar na periferia, ser jovem e pobre que ele agiu dessa maneira. Mas porque, muito provavelmente, se relaciona com pessoas que agem da mesma forma no mundo do crime, onde as normas de relacionamento admitem o homicídio. [ ]
Este indivíduo não deve ser visto como alguém inserido numa organização criminosa, mas como alguém que vive em um ambiente em que é forte a cultura da justiça privada. [ ] A pessoa deve mostrar que não admite desaforos e, quando se sente ameaçada ou desafiada, deve se antecipar à própria morte, tentando matar para não ser morto. Em virtude dessa situação, os homicídios que parecem banais para os que observam de fora são considerados necessários pelos seus autores. Até mesmo mortes decorrentes de brigas em bares acontecem por conta desses valores (Manso 2005: 105).
Uma perspectiva ainda mais radical sobre a importância de se compreender os aspectos (sub)culturais que perpassam as práticas de violência entre grupos de jovens delinquentes é adotada por Machado da Silva (2010). O autor argumenta que, principalmente entre membros de gangues, a violência não constituiria somente um meio de ação regulado por fins que se deseja atingir. Usando o conceito de sociabilidade violenta, o autor argumenta que a violência seria um princípio que estrutura e ordena a própria ação e as relações entre sujeitos, tornando-se um fim em si mesma, inseparável de sua função instrumental como recurso para a ação (Silva 2010).
Dentro dessa perspectiva e no intuito de contribuir para esta discussão, o presente texto debaterá alguns dos principais achados de um estudo realizado na região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH/MG) ao longo do ano de 2011, sobre o envolvimento de adolescentes e jovens em gangues ou grupos armados ilegais.
Metodologia
A pesquisa cujos resultados serão explorados neste texto teve como base 40 entrevistas em profundidade, realizadas com adolescentes e jovens com intensa trajetória de envolvimento com grupos criminosos armados que atuam em favelas e bairros pobres da periferia da RMBH. O acesso a atores com este perfil se deu dentro de unidades de internação da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS), onde jovens sentenciados cumpriam medidas socioeducativas de privação de liberdade.[3]
Dentro do universo total de jovens custodiados em unidades da SEDS, foram selecionados para as entrevistas aqueles cuja sentença de internação havia sido aplicada em função da prática de atos infracionais mais usualmente relacionados à violência de gangues: homicídios, tentativas de homicídio, tráfico de drogas, associação para o tráfico de drogas, assaltos, porte ilegal de armas e formação de quadrilha.[4] Mesmo dentro deste perfil mais específico, foram convidados a participar do estudo apenas aqueles que, em entrevista preliminar, demonstraram com clareza que sua trajetória pessoal e infracional recente vinculava-se à dinâmica de gangues.
Durante as entrevistas, foram tratadas questões referentes à rotina dos jovens dentro das gangues, assim como seu envolvimento com atividades criminosas e conflitos territorializados com outros grupos. Especificamente neste texto, serão discutidas questões referentes ao complexo universo simbólico que caracteriza a vivência dos jovens dentro destes grupos. Antes, no entanto, torna-se necessário oferecer ao leitor uma breve contextualização de como se apresenta o problema das gangues na RMBH.
A violência das gangues na RMBH
Ao contrário do que se observa em algumas favelas do Rio de Janeiro, onde parte significativa dos grupos de jovens delinquentes atua sob a bandeira de apenas três grandes confederações criminosas ou fações (Comando Vermelho – CV, Terceiro Comando Puro – TCP, e Amigos dos Amigos – ADA), o fenômeno das gangues na região metropolitana de Belo Horizonte assumiu, ao longo das últimas décadas, uma característica mais fragmentada. Enquanto grandes favelas da capital fluminense costumam ser dominadas por um único grupo, na RMBH a imensa maioria dos aglomerados violentos têm seus territórios divididos entre vários pequenos grupos, sem filiação evidente a qualquer franquia mais ampla.
Em princípio, o caráter fragmentado (e aparentemente menos estruturado) das gangues que atuam na região metropolitana de BH poderia denotar um fenômeno menos violento do que aquele que se observa no Rio de Janeiro. No entanto, se as taxas de homicídio de ambas as capitais forem tomadas como indicador da violência associada ao problema das gangues, observa-se que o fenômeno de Belo Horizonte é tão ou mais violento do que o do Rio de Janeiro, como demonstra o quadro 1. Inclusive, boa parte da explicação para os altíssimos níveis de violência letal relacionados à atuação de gangues na RMBH pode estar justamente no caráter fragmentado do fenômeno, com dezenas de pequenos grupos rivais circunscritos a reduzidos ambientes comuns.
Entre os anos de 2007 e 2009, uma instância interinstitucional de inteligência formada por agentes das polícias civil e militar de Minas Gerais organizou informações sobre gangues que atuavam na RMBH. Em 16 favelas mapeadas, foram catalogados 55 grupos, com um total de 672 integrantes criminalmente ativos, como demonstra o quadro 2.
Com base em diversas entrevistas realizadas com membros de gangues e com policiais que trabalham nestas localidades, bem como a partir da análise de boletins de ocorrência e de inquéritos policiais, esta mesma instância interinstitucional de inteligência tentou determinar os territórios de atuação de alguns grupos delinquentes dentro das favelas. O resultado pode ser observado nas figuras 4 e 5.
O que os dados policiais indicam, portanto, é que o problema das gangues na RMBH se manifesta de maneira extremamente fragmentada, com vários pequenos grupos de jovens delinquentes ocupando simultaneamente pequenas frações de diversas favelas. A coexistência de grupos diferentes dentro de um mesmo espaço aumenta significativamente o potencial de conflitos entre eles, seja por problemas pessoais entre membros das gangues, seja por questões de estabelecimento de território e consolidação de poder local, seja por disputas criminais, como é o caso do tráfico de drogas.
Para que se tenha uma ideia do impacto que as gangues juvenis exercem sobre a violência em curso nas favelas da RMBH, basta observar seu alto grau de participação na violência vigente em algumas localidades. Levantamento nas bases de inquéritos da Divisão de Crimes contra a Vida (DCcV), unidade policial responsável por investigar homicídios na capital mineira, demonstra que, dos 63 assassinatos registrados entre 2005 e 2008 no Conjunto Felicidade, favela localizada na região Norte da cidade, 37 tiveram participação direta e comprovada das gangues locais. O mesmo panorama pode ser observado no Aglomerado da Serra, conjunto de favelas localizadas na zona Sul de BH, onde inquéritos já concluídos pela DCcV demonstraram que, do total de 92 homicídios registrados na localidade entre 2000 e 2007, 43 foram cometidos por sete gangues locais (além de oito tentativas de homicídios). Entre as vítimas fatais, 30 eram membros dos próprios grupos delinquentes da região.
A despeito de todas as limitações e vieses inerentes ao trabalho de inteligência policial, as informações levantadas ajudam a confeccionar um primeiro esboço sobre a configuração assumida pelo fenômeno das gangues na região metropolitana de Belo Horizonte. Conforme observado anteriormente, a violência entre esses grupos não pode ser explicada somente a partir de seu envolvimento com dinâmicas de criminalidade. Questões simbólicas, afetivas e morais também precisam ser levadas em consideração para que se compreenda a fundo o problema da associação de jovens em grupos delinquentes e os altíssimos índices de violência que derivam desses coletivos.
É por isso que optou-se aqui por trabalhar com a fala e os discursos de jovens envolvidos com gangues e grupos armados. Por meio de suas narrativas, percepções e representações, acredita-se ser possível acessar justamente algumas das estruturas simbólicas que perpassam e sustentam normativamente o universo de conflitos, práticas criminosas e violência que caracteriza o fenômeno.
A lei da favela e o mundo do crime
Na narrativa dos jovens entrevistados, as dinâmicas de violência, conflitos, mortes, enfrentamentos armados e crimes protagonizadas pelas gangues quase sempre encontram-se associadas a uma complexa trama de valores, códigos morais e estruturas normativas particulares que, no linguajar dos próprios atores, materializa-se sob duas expressões: lei da favela e mundo do crime. Repetidas exaustivamente por praticamente todos os entrevistados em diversos momentos de suas narrativas, ambas as expressões parecem se referir a formas de sociabilidade específicas que, de certo modo, justificam a resolução privada e violenta de conflitos, os confrontos armados entre grupos rivais, a divisão simbólica das favelas em territórios de gangues e suas atividades criminosas.
O próprio ato de dar um nome específico a este conjunto de crenças, valores e práticas parece denotar, por parte dos jovens entrevistados, um processo de demarcação da orientação normativa a partir da qual os grupos operam interna e socialmente. Enquanto a lei da favela parece se referir a um conjunto mais amplo de valores e práticas que normatiza a relação entre as gangues e as comunidades locais, a noção de mundo do crime parece dizer respeito exclusivamente à complexa rede de significações, práticas de violência e regras de conduta inerentes à rotina dos jovens dentro das gangues, ou mesmo entre os muitos grupos que atuam nas favelas.[5]
A lei da favela
Na fala dos informantes, a lei da favela parece referir-se a um conjunto de crenças, normas, valores e condutas que regula as relações entre os jovens envolvidos com as gangues e suas comunidades locais. Essa estrutura normativa, no entanto, parece ser um amálgama de valores tradicionalistas, justificando e legitimando a adoção bastante frequente de uma série de práticas machistas e violentas, para lidar com determinadas situações de conflito dentro dos aglomerados. Nesse contexto, as gangues acabam tornando-se uma espécie de instância de poder local que, por meio da constante ameaça de uso de seu poder de fogo, se encarrega de operacionalizar e fiscalizar o uso desta estrutura normativa.
Dentro desta complexa teia de valores que os jovens definem como lei da favela, valores como lealdade, discrição, fidelidade, honestidade, hombridade e respeito adquirem contornos bastante particulares e discricionários, mas quase sempre integrantes de uma noção de conduta ética necessária para que um homem tenha conceito perante a comunidade local. A própria noção de conceito, sempre presente no discurso dos jovens, parece se referir a uma espécie de versão estereotipada e tradicionalista da força e da honra masculina, aparatos simbólicos claramente importantes para a constituição da identidade guerreira dos membros de gangues e sua consequente diferenciação e imposição pessoal sobre os demais moradores da comunidade. Não por acaso, os atores entrevistados demonstram valorizar uma versão exacerbada da figura masculina que consegue sustentar sua família, defendendo-a das muitas ameaças externas presentes no ambiente das favelas.
De certo modo, a noção de conceito presente na fala dos jovens entrevistados assemelha-se bastante à ideia geral de respeito, já extensamente explorada em diversos estudos sobre delinquência juvenil e violência (Zaluar 1996; Anderson 1999; Bourgois 2002; Manso 2005). No contexto vigente da cultura das ruas, ambientes violentos (Anderson 1998), tanto a ideia de conceito quanto a de respeito parecem se referir a uma espécie de capital simbólico almejado por aqueles envolvidos na complexa trama de conflitualidades que caracteriza principalmente a rotina de indivíduos e grupos envolvidos com dinâmicas de criminalidade.
No discurso dos entrevistados, a noção de conceito mostra-se intimamente relacionada à capacidade (potencial e/ou concreta) que os indivíduos ou grupos têm de exercer a violência e retaliar agressões (potenciais e/ou concretas). A conquista e a manutenção de conceito junto ao restante da comunidade e aos demais grupos delinquentes pode não apenas trazer vantagens (materiais e simbólicas) a uma gangue e seus membros, como também, em última instância, preservá-la de ameaças e agressões externas, ou conferir vantagens competitivas na eventual resolução de conflitos locais.
Parece ser por isso que, em nível comunitário (e pelo menos no discurso), as próprias gangues se arvoram do papel de protetoras de suas comunidades, principalmente frente às agressões de grupos delinquentes de outras localidades. Quando se estende, para os mais diversos âmbitos da vida comunitária, a lógica de que cabe às gangues defender a honra dos moradores e manter a ordem local, justifica-se o uso de violência para coibir a ocorrência de delitos na comunidade, bem como a manifestação de qualquer comportamento considerado inadequado como, por exemplo, acionar a polícia para registrar ocorrências, denunciar às autoridades a prática de delitos na localidade, prestar depoimentos sobre crimes já ocorridos.
Tem que aceitar. Segurança no morro quem é que faz? É os mano. Por que que não tem roubo dentro da favela? Porque se tiver, os cara vem e mata. Privilégio pra quem? Para os morador. Então eles não tem que falar nada se mata na porta da casa deles, se vende droga. É segurança [informante 29].
O que as falas dos jovens sugerem é que, a despeito do que poderia inferir o senso comum, estas práticas de violência não se explicam somente em função da implementação e da manutenção de uma estrutura de negócios criminosos. Elas são prenhes de significados e valores inerentes a uma estrutura normativa machista e tradicionalista, intimamente relacionada a processos de sociabilidade violenta e de conformação de uma espécie de ethos guerreiro entre os jovens envolvidos com as gangues (Zaluar 1996). De certo modo, a adesão dos jovens a esse conjunto de crenças ajuda a compreender melhor a aplicação de um sem-número de sentenças de morte a suspeitos de cometer estupros dentro das favelas e a expulsão sistemática de moradores em função da simples desconfiança de que eles possam estar passando qualquer informação para a polícia.
Em nível comunitário, a adesão a uma estrutura normativa genericamente definida como lei da favela parece justificar o velho ditado segundo o qual em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. Ou seja, na fala dos jovens, os problemas que ocorrem dentro da favela interessam somente aos envolvidos e, invariavelmente, devem ser resolvidos dentro da favela, sem qualquer intervenção do poder público. Daí a fala bastante recorrente de alguns jovens de que determinada pessoa resolveu uma parada que era do contexto dele. Caso o problema não possa ser resolvido diretamente pelos envolvidos, acionam-se os grupos delinquentes locais, que rapidamente tratam de restaurar a ordem que julgam ser a mais correta. A fala de um informante ilustra bem a crença que muitos dos jovens entrevistados depositam nesta lógica.
Nós não deixa roubar na favela, nós trata morador bem. Polícia do morro é nós lá mesmo, até os morador já fala isso. Nós não deixa rolar pilantragem no morro, os comércio pode ficar tudo de boa que ninguém rouba. [ ] Se alguém rouba um comércio, aí nós corre atrás, pega e dá um coro. E faz o cara devolver tudo. Não tem que chamar a polícia. E nós pede pra não chamar a polícia pra não lombrar pro nosso lado também, né? Porque na pista nós mesmo resolve esses trem. [ ] Estuprador? Passa o cerol. Porque isso aí ninguém aceita não. Duzentão? Já teve um cara lá que pegou uma menina de cinco anos e foi pra vala. X9 a gente passa o cerol também [informante 19].
O mundo do crime
A despeito de toda sua complexidade, a noção de mundo do crime talvez seja uma das estruturas normativas mais bem consolidadas e difundidas entre os jovens entrevistados. Em todas as falas, parece existir uma percepção bastante clara do que representa fazer parte desse universo (tanto em termos práticos, quanto simbólicos), de quais são as suas regras e de quais são as consequências, positivas e/ou negativas, para quem acaba se envolvendo. O próprio processo de envolvimento com o mundo do crime também se mostra demarcado por alguns indicadores e signos bastante claros e difundidos entre os jovens. Adquirir uma arma de fogo, andar em companhia ou frequentar festas de criminosos conhecidos na região e contrair guerras com outros jovens, por exemplo, são três dos principais fatores que, dentro das favelas, costumam demarcar a entrada dos jovens para o mundo do crime, envolvendo-os na complexa trama de conflitos, intrigas, traições, ganhos financeiros, normas de conduta, status e problemas que este envolvimento sempre acarreta.
Mas, a despeito de a percepção desses demarcadores ser bastante clara, o processo de envolvimento dos jovens no mundo do crime parece sempre se dar de maneira lenta e gradual. Em ambientes marcados por baixos níveis de controle social informal e uma forte presença de gangues ou grupos delinquentes, o envolvimento de alguns jovens com dinâmicas de violência e criminalidade às vezes se torna um desdobramento quase que natural de pequenos conflitos e desentendimentos vivenciados ainda na infância. O depoimento a seguir, por exemplo, ilustra como pequenas brigas entre grupos de crianças podem se tornar grandes conflitos entre gangues rivais, tragando diversos jovens para dentro do que eles próprios definem como mundo do crime.
Comecei a arrumar briga com os outro, muita treta. Nós ia pra quadra e os menino da outra rua batia. Aí eu fui guardando aquilo. [ ] Aí um dia cresceu tudo. Todo mundo cresceu, né? Aí foi se tornando nós hoje. Aí hoje ninguém conversa com ninguém não. [ ] Eu moro na São Martim. Aí a treta era com os menino da Silva Lobo. Aí brigava por causa de tudo. Por causa de bola, por causa de tudo. A gente ia pra quadra, eles fechavam a quadra e batia na gente. Eles achava que a gente nunca ia correr atrás. A única maneira que eu achei de correr atrás foi essa. Aí eu comecei. É muita raiva guardada dentro da gente. Fui até preso uma vez indo atrás deles. Aí começou. Comecei a trombar com eles dentro de cadeia. Começou o inferno [informante 27].
Mais uma vez, o que as falas indicam é que, em algumas favelas, o contexto de pouca ou nenhuma provisão democrática dos bens de justiça parece fomentar o desenvolvimento de uma espécie de cultura de resolução privada e violenta de conflitos. Nascidos e criados em ambientes historicamente violentos, alguns jovens acabam encontrando nas gangues um instrumento que potencializa sua capacidade de resolução de conflitos, uma vez que seus problemas passam a ser assumidos por todos os membros do grupo. Na fala de vários informantes, o simples fato de pertencer a uma gangue pode representar para eles o fim dos episódios de violência doméstica e comunitária.
Todo mundo te respeita. As pessoas que antes batia em você agora passa e abaixa a cabeça. Isso aí você pode perguntar pra qualquer um, porque é isso mesmo que acontece. É impressionante. Não sei se a pessoa fica com medo, ou o que que é. E você, tipo, se acha, né? Pô. Aquele cara já me bateu, hoje passa perto de mim e abaixa a cabeça. Aí quando eu comecei a andar com os cara, começou a acontecer comigo também, tá ligado? Tipo as pessoa que antes me batia, me xingava, agora passa perto de mim e me pede bênção [informante 25].
Em meio ao ambiente de violência, precariedade, escassez de recursos e baixa consolidação normativa vigente em algumas favelas, as gangues ou grupos delinquentes parecem projetar uma imagem de poder que se estende a seus integrantes, dando a eles a oportunidade de obter, de maneira mais fácil e rápida, bens materiais e simbólicos muito valorizados entre os jovens. O depoimento de um informante ilustra bem o fato de que o status desfrutado localmente por uma gangue é algo extremamente desejado por alguns jovens, que enxergam nos grupos uma possibilidade de rápida ascensão social e financeira dentro do ambiente hostil de algumas favelas.
A gente andando com os caras lá, disposição. É igual eu pensava antes de envolver. Os cara ficava lá naquele naipe, só relojão, só as panagem Eu passava lá, cumprimentava os cara e pensava: nó, os cara é daquele naipe! Aí os cara me via, começou a cumprimentar eu. Aí eu pensei: os cara tá me dando oportunidade. Aí eu comecei a colar e a mesma coisa que acontecia com eles aconteceu comigo. O pessoal começou a respeitar. O pessoal vê que você é atitude e respeita [informante 24].
Neste ponto, cabe chamar a atenção para alguns aspectos simbólicos que se mostram muito importantes para compreender o envolvimento de alguns jovens com grupos delinquentes e dinâmicas de criminalidade violenta. Em praticamente todas as entrevistas, os informantes afirmaram que as razões que mais os atraíram para as fileiras das gangues e, consequentemente, para o mundo do crime, foram a possibilidade de obter, de maneira rápida e fácil, bens materiais e simbólicos que, em ambientes marcados por escassez de recursos e processos de sociabilidade violenta, parecem ser fundamentais para a constituição de sua imagem masculina (pelo menos nos moldes do que foi discutido anteriormente) e que seriam difíceis de alcançar por vias tradicionais.
Os jovens argumentam que, dentro das gangues, eles conseguem não apenas colocar fim às muitas formas de violência às quais são submetidos dentro de suas comunidades, como também potencializar sua capacidade de retaliação àqueles que os agrediram no passado, ou ainda agridem. Além disso, todos os jovens entrevistados ressaltam que, uma vez dentro dos grupos delinquentes, passaram a ter acesso mais fácil a mulheres e dinheiro, consolidando sentimentos que parecem compor as bases fundamentais para a própria constituição de suas identidades masculinas dentro do ambiente das favelas.
Entretanto, os jovens entrevistados também percebem de maneira bastante clara que, da mesma forma que a entrada para as gangues e para o mundo do crime pode conferir status, poder de defesa e retaliação, respeito comunitário, dinheiro, mulheres e uma série de outras vantagens competitivas no ambiente hostil das favelas, também traz consigo um mundo de regras, normas de conduta e códigos morais próprios, quase todos invariavelmente pautados em práticas de extrema violência. Segundo os informantes, dentro dos grupos delinquentes e do mundo do crime, encontra-se vigente uma versão muito mais rígida e brutal das formas de sociabilidade violenta já difundidas de maneira mais ampla entre algumas comunidades de favelas.
Enquanto um morador que denunciou criminosos para a polícia pode ser punido com espancamento e expulsão do aglomerado, um jovem membro de gangue suspeito do mesmo desvio certamente será executado, às vezes por seus próprios companheiros de grupo. Se, na comunidade, a prática daquilo que os próprios jovens chamam de pilantragem já é considerado um crime gravíssimo, passível de um vasto leque de punições físicas e morais, entre os membros do grupo, a prática é quase sempre punida com a morte.
Geralmente, o que os jovens definem como pilantragem ou vacilo é qualquer tipo de conduta que atente contra a integridade da gangue ou de seu negócio criminoso (como denunciar seus crimes à polícia, roubar drogas, armas ou qualquer outro bem pertencente ao grupo, passar qualquer informação sobre a gangue à polícia ou a grupos rivais, etc.), ou de algum de seus integrantes em particular (assediar ou ficar com a namorada de um membro do grupo, interferir em algum assunto pessoal dos jovens membros da gangue, ou fazer intrigas sobre seus integrantes). Além disso, qualquer quebra de uma regra localmente imposta pelo grupo também é vista como uma afronta à autoridade da gangue e passível de punição. Os depoimentos a seguir ilustram a visão dos jovens sobre algumas das regras e normas de conduta vigente dentro das gangues e no mundo do crime.
Bandido de verdade é o cara que tem disposição e fortalece com os parceiro na firmeza mesmo. Ser bandido é não entregar os irmão. É preferir morrer do que entregar os irmão. Bandido de verdade não fica de conversa com ladrão na rua. Se tiver que meter as parada mete mesmo e não tem que ficar se fazendo pra ninguém não. Se tá a fim de jogar o cara fora, sequestra na miúda e joga fora, ponto final. Não tem que ficar de resenha na rua. [ ] E é isso. Eu quero morrer na mão de bandido de verdade. Uma troca limpa. No duelo mesmo. Aí é guerra, né? O que estiver melhor, mais fortalecido, tem que matar mesmo porque senão roda. E eu não vou ficar com raiva do cara que me matar porque se ele não me matar, eu mato ele. Então eu não tiro a razão dele [informante 05].
Dependendo do vacilo os cara mata mesmo. Tipo assim, o cara da minha gangue estuprou uma menina lá na sua área lá. E eu tô até sabendo que ele estuprou. Você pode chegar em mim e conversar pra eu tomar a providência. Mas não. Você é tão alterado que você chega e mata o cara. Se eu tô sabendo, pode até ficar baixo. Mas às vez eu não tô sabendo e você também não conversa. Aí começa a guerra. Às vez, se você tivesse me falado, até eu mesmo mandava matar ele. Porque quando eu vejo, eu tô defendendo um estuprador e não tô sabendo [informante 29].
Alguns depoimentos oferecem indícios de que, especialmente dentro das gangues, a violência constitui um elemento estruturante das relações sociais, quase que um fim em si mesmo. Como a própria existência das gangues se fundamenta, em grande parte, no exercício potencial ou aplicado da violência, a disposição para exercê-la não pode ser colocada em dúvida em nenhum momento, ou sob nenhuma circunstância. Talvez a imposição de regras mais rígidas aos membros das gangues se deva à própria necessidade de fortalecer mecanismos de coesão interna e demarcar a posição dos grupos dentro das comunidades nas quais eles se encontram inseridos.
Um indicador de que as leis e valores do mundo do crime se institucionalizaram e ganharam legitimidade entre os jovens membros de gangues está na percepção de que, apesar de duras, as regras devem valer para todos, inclusive para amigos próximos. Daí os relatos de vários jovens sobre assassinatos cometidos dentro da própria gangue, quando algum integrante quebra uma regra importante do grupo, ou é reincidente em transgressões leves. No caso das gangues envolvidas com o tráfico de drogas, as mortes geralmente se dão em função de algum desacerto na condução do negócio ou mesmo no caso de desaparecimento ou furto de uma quantidade expressiva de drogas. Em muitos destes casos, a transgressão é vista como pilantragem e deve ser punida com a morte, mesmo que se trate de um amigo próximo.
Perdi muito amigo nessas guerra Esses dia mesmo eu tive notícia que eles matou um colega meu lá. Mas ele deu mole. Parece que ele roubou uma droga do patrão lá, aí o patrão foi lá e matou ele. Tipo, e cresci com ele, né Zé? Nós andava só junto. Onde que ele ia, eu ia, nós rodava a favela toda junto, nós dois junto. Aí deu desacerto, né? [ ] Se pedisse pra eu matar eu ia desembolar com o patrão: Ô, Zé Pede outro aí pra matar, tá ligado? O cara tipo cresceu comigo, é parceiro daquele naipe, é tipo irmão pra mim. Tô ligado que o cara tá errado, mas não vou matar o cara não, tá ligado? Não dá não. Pede outro irmão pra fazer esse serviço aí [informante 35].
Em ambientes intensamente perpassados por dinâmicas de sociabilidade violenta, baixa consolidação normativa e uma cultura que legitima a resolução privada e violenta de conflitos, a capacidade de reação ou a disposição para matar de um membro de gangue nunca pode ser colocada em dúvida ou ser desacreditada. Para um jovem sistematicamente envolvido no mundo do crime, é extremamente importante transmitir, para a comunidade local, para seus colegas de gangue e para seus inimigos, a certeza de que possui disposição para matar caso isso seja necessário.
Imersos em uma subcultura que valoriza a capacidade de exercer a violência, muitas vezes torna-se uma questão de sobrevivência consolidar uma imagem de homem que consegue se defender, defender seus parceiros e vingar as ofensas sofridas por seu grupo e por sua comunidade. Ao deixar claro que possui disposição para matar e que não deixa passar nenhum tipo de desafio, o jovem diminui a chance de ser denunciado por moradores locais, fortalece sua posição dentro do grupo, ganha o respeito dos demais membros e se torna temido pelos integrantes dos grupos rivais. Por isso, em alguns casos, a decisão de matar parece mais atrelada às regras do mundo do crime (onde não ser desacreditado representa quase uma condição de sobrevivência) do que a uma motivação associada a uma lógica utilitária, inerente ao negócio criminoso.
Tipo assim, você é um bandido, aí tem um outro bandido lá e você é amigo desse bandido. Aí eu fico falando mal desse outro bandido. Aí você vai lá e fala pra ele: Ah, tal fulano tá falando mal de você lá, tá falando que você tá demais já. Isso aí também já é motivo pra guerra. Quem tá no crime, qualquer coisa tem que matar. [ ] Se não matar, não fica à vontade. Vai ficar com aquele peso na consciência: Ah, o cara tá me tirando e eu não faço nada. Se ele deixar baixo, os outros vão achar que ele é otário. Aí neguinho vai começar a querer subir em cima do cara. Se ele não matar pra mostrar que tem moral, que tem respeito, todo mundo vai querer fazer com o cara o que o primeiro fez. O cara passa imagem de fraco. E o cara não pode deixar, tem que colocar o respeito dele. E nessa vida, o respeito o cara faz é mostrando que tem disposição. Senão os outro engole ele. Ou você engole, ou os outro engole você [informante 37].
Por outro lado, os jovens entrevistados argumentam que o rótulo de matador geralmente funciona de maneira ambivalente: por um lado, aumenta o prestígio de quem o carrega, por outro, torna-o um alvo mais cobiçado por quem quer ganhar fama no mundo do crime. O depoimento a seguir mostra esta percepção.
Depois desse homicídio aí eu fiquei conhecido no bairro todo. Polícia me caçando, maior problema. [ ] Mas os colega começou a me tratar mil grau, né? O tratamento deles comigo mudou. Mudou que os outro começou a me respeitar mais. Sabia que eu matava mesmo, aí começou a me respeitar mais. Todo mundo começou a olhar pra mim com aquela cara: nó, o menino mata mesmo. Mas isso é bom e é ruim. É bom porque você tem respeito; todo mundo te respeita. Mas é ruim porque você sabe que respeita porque tem medo de você [informante 18].
Em contextos fortemente marcados por dinâmicas de exclusão social, por desconfiança mútua, baixa consolidação normativa e pela percepção de que o Estado não se mostra capaz (nem mesmo interessado) em prover, democrática e eficientemente, os serviços de justiça, instaura-se a crença de que a violência constitui um meio legítimo de resolução de conflitos. Por isso, o que os jovens definem como o mundo do crime se parece tanto com um estado de guerra de todos contra todos, com ciclos de ação e retaliação que se autoalimentam e provocam centenas de mortes.
O depoimento a seguir ilustra a percepção que os jovens têm sobre a necessidade de antecipar-se ao risco da agressão, por meio do assassinato de seu detrator. De acordo com eles, no mundo do crime, qualquer ameaça de morte, por mais improvável que pareça, deve ser levada a sério e respondida à altura. Da mesma forma que um membro de gangue não pode admitir ser desacreditado (sob o risco de perder a confiança de seus parceiros e se tornar um alvo fácil para seus inimigos), também não pode desacreditar aqueles que o ameaçam (sob o risco de ser morto em uma emboscada).
Que nem teve um cara lá da quebrada mesmo que começou a tirar a gente. Ele era bandido lá, mas não andava com a gente. Aí ele começou a passar lá, falou que ia matar a gente. A gente não deu mole pra ele não. [ ] Quando alguém fala que vai matar, a gente não desacredita não. Nem eles desacredita. Eles mata mesmo. Aí a gente tem que matar antes que eles mata nós. [ ] Não dá pra saber o que que passa na cabeça do cara. Não dá pra desacreditar. Já vi muita gente tomar tiro porque desacreditou. Até usuário dá tiro. Já vi gente tomar tiro de usuário porque desacreditou [informante 23].
Considerações finais
Ao longo das últimas décadas, o problema da violência letal adquiriu contornos bastante claros no Brasil: trata-se de fenômeno impulsionado pela morte de adolescentes e jovens, moradores de favelas e bairros pobres das grandes cidades do país. Mas, a despeito de apresentar uma configuração socioespacial tão evidente, a compreensão desse fenômeno em toda sua abrangência e complexidade ainda constitui grande desafio para estudiosos da área e formuladores de políticas públicas de segurança.
Diversos estudos têm tentado compreender melhor a relação entre processos de segregação socioespacial e a emergência de dinâmicas de violência. É dentro desse campo temático que se localizam, por exemplo, pesquisas sobre a consolidação de gangues e grupos criminosos em favelas e bairros pobres de periferia, seus conflitos armados e processos de estruturação de atividades criminosas (Zaluar 2004; Ramos 2009; Manso 2005; Beato e Zilli 2012).
Na tentativa de contribuir para este debate, o presente texto procurou discutir as dimensões simbólicas que perpassam as práticas de violência entre gangues que atuam nas favelas e bairros pobres da região metropolitana de Belo Horizonte. Partiu-se aqui do princípio de que as muitas conflitualidades que caracterizam a rotina desses grupos não possuem apenas caráter instrumental, sendo simplesmente recursos necessários à consolidação de empreendimentos criminosos. O argumento desenvolvido aqui foi o de que, dentro do universo das gangues, o uso frequente e intensivo da violência funciona como elemento de constituição das identidades (individuais e grupais) e de estruturação e ordenação das próprias relações sociais.
A análise do discurso de jovens envolvidos com gangues permite inferir que, dentro dos grupos, desenvolvem-se processos de socialização e sociabilidade regulados e fundamentados não apenas no uso instrumental, mas, também e principalmente, no uso simbólico da violência. Por meio de referências frequentes à lei da favela e ao mundo do crime, estruturas ordenadoras das relações sociais, os jovens constroem coletivamente suas identidades enquanto membros do grupo, orientam suas ações e justificam, interna e externamente, uma série de práticas de violência.
A constituição dessa espécie de sociabilidade violenta entre os jovens membros de gangues ajuda a explicar, em parte, o caráter fortemente tradicionalista dos conflitos territorializados mantidos pelos grupos nas favelas da RMBH. Para além da sua relação com a consolidação de mercados ilegais, as guerras entre gangues parecem guardar, já em sua origem, relação com complexos processos de constituição de identidades pessoais e grupais, com dinâmicas de imposição e manutenção de poder local, bem como com intrincadas redes de conflitos pessoais, familiares e comunitários.
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NOTAS
[1] Desde o início do século XX, existe na literatura sociológica uma acirrada discussão a respeito do próprio conceito de gangue. A despeito desses esforços, ainda não existem definições precisas e unanimemente aceitas sobre quais seriam as características e principais estruturas do fenômeno social ao qual o termo gangue faz referência (Spergel 1992; Esbensen et al. 2001; Spindler e Bouchard 2011). Ciente dessa discussão, mas com a clareza de que este não é seu foco, o presente texto utiliza o termo gangue para se referir ao seguinte fenômeno: grupos de jovens que compartilham uma identidade comum, sistematicamente envolvidos com práticas violentas e/ou criminosas e conflitos territorializados. Ainda que de modo bastante exploratório, tal definição tenta ressaltar algumas das principais estruturas geralmente presentes nos estudos sobre gangues: (1) caráter grupal; (2) fenômeno jovem; (3) questões simbólicas/identitárias; (4) violência e criminalidade; (5) conflito; (6) territorialidade.
[2] Existe uma longa tradição de estudos sociológicos que busca compreender a relação entre a consolidação de arranjos simbólicos, comportamentais e normativos particulares, ou subculturas, em meio a determinados segmentos populacionais e a emergência de padrões de violência e criminalidade. Segundo tal programa de estudos, iniciado de maneira mais sistemática por expoentes da Escola de Chicago nos anos 1930, as subculturas da violência seriam, grosso modo, conjuntos de regras, valores e definições que oferecem suportes normativos e simbólicos ao uso da violência enquanto elemento de estruturação das relações interpessoais e grupais na sociedade (Miller 1958; Wolfgang e Ferracuti 1962; Kornhauser 1978; Gottfredson e Hirschi 1990; Stewart e Simons 2006). Em termos teóricos, o uso e a aplicabilidade do conceito de subcultura são ainda hoje bastante polêmicos. Não apenas em função de certo dissenso acadêmico em torno da própria validade do conceito (a ideia de derivação ou subordinação a uma cultura maior, contida no prefixo sub é, por si só, controversa), mas também em função do debate sobre as estruturas necessárias para a caracterização do fenômeno. Ciente dessas questões, mas com clareza de que tal discussão não prejudica seu argumento central, este texto não apenas faz uso do conceito, mas também trabalha com uma definição de subcultura mais próxima àquela proposta por Elijah Anderson (1999), quando este se referia a jovens inseridos em uma cultura de rua, ou seja, um conjunto de regras informais que orientam comportamentos públicos e privados e que encorajam o uso da violência, com vistas à manutenção da honra e à defesa da reputação.
[3] Todas as entrevistas foram realizadas em salas isoladas, com gravação de áudio, resguardando a privacidade e o anonimato dos informantes. As conversas só se deram após autorização do Ministério Público e do Juizado da Infância e da Juventude de Minas Gerais, bem como mediante assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido por parte dos próprios jovens e da direção dos centros de internação.
[4] No Brasil, delitos praticados por adolescentes e jovens com idade entre 12 anos completos e 18 anos incompletos estão sujeitos às penalidades previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo o texto da lei, crianças e adolescentes que cometam atos infracionais (conduta descrita como crime ou contravenção penal) estão sujeitos ao cumprimento de medidas socioeducativas, entre as quais está prevista a medida de internação em estabelecimento socioeducativo, por prazo máximo de três anos.
[5] A separação entre as categorias lei da favela e mundo do crime deve-se mais a uma estratégia analítica do que à existência de uma segmentação claramente identificável, na fala dos jovens, entre estas estruturas normativas. Na prática, ambas as noções mostram-se extremamente fluidas e difusas no discurso dos jovens entrevistados. A divisão analítica facilita a compreensão de uma distinção que praticamente todos os informantes construíram durante as entrevistas: de um lado, colocam-se as normas de conduta, os códigos morais e os valores que normatizam a relação entre os grupos de jovens delinquentes e suas comunidades locais; de outro, a complexa rede de significações, regras, códigos e formas de conduta que orientam a ação destes jovens, não apenas dentro de seus grupos, mas principalmente com relação a outras gangues.