O dossiê que apresentamos enquadra-se na proposta mais geral de uma antropologia das políticas públicas (Bierschenk e Sardan 2021; Okongwu e Mencher 2000; Raposo e Aderaldo 2019; Shore e Durão 2010; Shore e Wright 1997; Shore, Wright e Però 2011; Tate 2020), orientada para a descoberta etnográfica das “constelações de atores, atividades e influências que configuram as decisões políticas, a sua implementação e os respetivos efeitos” (Wedel et al. 2005: 30). O nosso foco recai sobre as políticas sociais delineadas predominantemente pelo Estado, tendo em vista a proteção de sujeitos ou grupos considerados vulneráveis e a promoção geral do bem-estar social (welfare), embora possam ter efeitos paradoxais e perversos de intensificação do sofrimento social (Pussetti e Brazzabeni 2011). Por outro lado, e olhando para a complexa fileira destas e da generalidade das políticas públicas - desde a fundamentação política, científica e filosófica, textualização na letra da lei e contextualização organizacional e territorial até à sua efetiva concretização na vida quotidiana dos cidadãos -, circunscrevemos o âmbito deste dossiê aos espaços sociais em que as políticas enunciadas em texto são convertidas em “políticas em prática”, em resultado do sentido prático e contextual que estas adquirem nas ações profissionais dirigidas aos utentes dos serviços (Caria 2021a; Schon 1983).1
O intuito é explorar e ilustrar etnograficamente aquilo que Brodkin (2011) designa como “policy on the ground”, tendo em conta que muito do que acontece no terreno, embora enquadrado por diversas condicionantes administrativas e organizacionais, depende da agência dos profissionais-técnicos, das suas culturas e identidades, concretizadas na (re)ação a constrangimentos, contingências, tensões institucionais e prioridades gestionárias (Perna 2021). Estes “street level-bureaucrats” ou rosto humano das políticas (Lipsky 2010), atuando em relação direta com os cidadãos “quando o Estado encontra a rua” (Zacka 2017), tendem, por via dos saberes construídos na ação contextual,2 a evidenciar uma relativa autonomia profissional que se traduz em julgamento moral e em improviso prático, isto é, em agência e discricionariedade profissional. A dialética tensional entre as regulações formais e centralizadas, típicas das burocracias mecânicas do Estado,3 e as manifestações informais de discricionariedade profissional constitui uma das esferas de interesse da antropologia da burocracia e da administração pública (Bierschenk e Sardan 2021; Sharma e Gupta 2006), e assume-se como uma porta de entrada analítica para compreender o “Estado por dentro” (Lopes et al. 2017).
É no quadro desta dialética que a duplicidade da posição social dos profissionais-técnicos fica mais evidenciada: situam-se tanto num lugar social de subordinação formal face às burocracias como num lugar social de dominação face aos cidadãos. Esta duplicidade permite afirmar que os profissionais-técnicos não são agentes ativos na produção das políticas e dos conhecimentos abstratos que as suportam, mas também não são meros “aplicadores” das mesmas no terreno. São recontextualizadores das políticas, dado que, em função da duplicidade da sua posição social, realizam um trabalho de transformação do sentido legítimo, abstrato e formal dos textos políticos, em saberes de ação (Caria 2014, 2021b; Caria e Ramos 2015). Neste processo emerge a agência e a discricionariedade profissional atrás referidas e que, em larga medida, são indissociáveis da própria ambiguidade e polissemia que caracteriza a generalidade das políticas enquanto “categoria de um símbolo condensado” (Shore 2010: 34).
O trabalho de recontextualização do conhecimento abstrato desempenhado pelos profissionais-técnicos tem vindo a assumir particular evidência desde a década de 1980 através da chamada Nova Gestão Pública (New Public Management [NPM]).4 A NPM tem subjacente uma “audit culture”, entendida como “the process by which the principles and techniques of accountancy and financial management are applied to the governance of people and organisations - and, more importantly, the social and cultural consequences of that translation” (Shore e Wright 2015: 24). Ao substituir a agência profissional por critérios de desempenho padronizados e quantificáveis em função de uma ideia tecnocrática de eficiência, a “audit culture” pressupõe profundas implicações na organização do trabalho e nas práticas, subjetividades e identidades dos profissionais: “increasing bureaucratisation, occupational stress and burnout, employee disengagement and cynicism, gaming strategies, loss of trust and diminished professionalism” (idem: 26). Deste modo, geram-se crescentes exigências de subordinação formal da agência profissional à burocracia organizacional, visando inibir a discricionariedade indispensável para que os profissionais-técnicos respondam à diversidade sociocultural dos cidadãos, tal como a entendem (Brodkin 2012). Paradoxalmente, a par desta subordinação burocrática, espera-se - à luz da lógica empresarial que a NPM afirma querer mimetizar - que os profissionais assumam alguma proatividade, flexibilidade e capacidade de inovação (Shore e Wright 2015; Weller 2012) nos saberes de ação que constroem.
O paradoxo da subordinação flexível, subjacente ao novo managerialismo, decorre do facto de as políticas públicas ocorrerem num mundo pós-moderno, cada vez mais dependente de sistemas (sociais e naturais) complexos e incertos, potencialmente geradores de problemas sociais cujos diagnósticos, soluções e resultados são cada vez menos certos, previsíveis e padronizáveis. É neste contexto paradoxal - de (neo)burocracias que parecem querer ser flexíveis para melhor conseguirem enfrentar os problemas sociais complexos e incertos da atualidade (Caria 2013) - que mais é necessário o trabalho dos recontextualizadores das políticas públicas. Enquanto trabalhadores do conhecimento, são capazes de manipular e transformar os textos legais das políticas em ações que permitem assegurar alguma efetividade de resultados face, também, aos crescentes desafios da coexistência social da diversidade sociocultural dos cidadãos em tempos de transição social líquida (Bauman 2007).
Neste interface entre Estado e cidadãos, os profissionais-técnicos atuam não só como agentes que “entregam” as políticas, mas também como atores sociais que informalmente as atualizam e lhes conferem sentido prático (Brodkin 2016).5 Assim, além de poderem concretizar e legitimar as políticas, também podem ser agentes de resistência, de complementaridade, de retificação e até mesmo de “reparação do Estado” (Masood e Nisar 2021).6 Por vezes, estão em clara contramão dos quadros políticos e das orientações managerialistas que regulam as suas práticas, afirmando-se implicitamente como uma espécie de “sabotadores” (Williams e Graham 2014) ou de “guerrilha” (O’Leary 2010). Noutras situações, assumem responsabilidades e criativamente improvisam respostas num cenário de demissão do Estado e de insuficiência de recursos, ou ajustam as orientações políticas às particularidades dos contextos onde intervêm (Campos e Peeters 2021; Silva e Sacramento 2020). Ao condicionar de forma significativa o processo de implementação de políticas, esta capacidade de recontextualização configura uma relevante expressão de poder de quem está na base da pirâmide (neo)burocrática dos dispositivos de governação do Estado (Weller 2012).
Do ponto de vista da salvaguarda de direitos, a discricionariedade nas políticas sociais em prática tende para uma certa ambivalência, assumindo sentidos díspares e gerando distintas repercussões. Por um lado, constitui valor pragmático e metodológico para lidar com a alternidade e complexidade contextuais dos quotidianos de trabalho e pode conduzir a que sejam colmatadas falhas e neutralizadas perversidades das políticas em texto. Por outro lado, pode gerar enviesamentos que põem em causa direitos, sobretudo quando a prática profissional é impulsionada por disposições de teor emotivo-moral associadas a idealizações piedosas. Neste caso, a compaixão suplanta os direitos e assume-se como um filtro subjetivo que estabelece quem deve ser reconhecido como legítimo destinatário das políticas sociais, sendo que o reconhecimento profissional da legitimidade dos utentes tende a ser tanto maior quanto as suas identidades se aproximem de um modelo icónico de “vítima ideal” (Christie 1986) e evidenciem um corpo em estado de exceção e sofrimento que “merece” ser cuidado.7
Tendo como pano de fundo as relações entre as políticas em texto e as políticas em prática que vimos discutindo, os quatro artigos que compõem o dossiê apresentam-nos etnografias empiricamente diversificadas que, no seu conjunto, indiciam a multiplicidade dos constrangimentos político-burocráticos e das configurações da agência profissional na implementação de políticas sociais em três países (Portugal, Chile e Brasil). A análise é preferencialmente circunscrita à atuação dos profissionais, trabalhadores assalariados em entidades públicas e não governamentais, que realizam um trabalho de natureza intelectual mais ou menos associado a tarefas consideradas técnicas, e a quem foram concedidos legitimidade e mandato para executar determinadas políticas.
Todos os artigos dão especial atenção, logo de início, à explicação do conteúdo do mandato político que se pretende pôr em prática, e em todos eles fica claro que os serviços e os profissionais afetos à implementação das políticas sociais não participam, direta e sustentadamente, no jogo político de disputas sobre a sua legitimidade. Por outro lado, mostram-nos diferentes graus e modos de implicação destes profissionais com o conteúdo das políticas, de que decorrem distintas configurações da relação entre subordinação burocrática e autonomia profissional. Nuns casos, a atividade profissional inscreve-se sobretudo na normatividade das políticas, com pouco espaço social (paralelo ou periférico) para uma agência profissional autónoma (artigos de Mara Clemente e Maria Belén Ortega-Senet). Noutros casos, a subordinação burocrática não impossibilita uma considerável margem de autonomia profissional, ainda que com efeitos díspares: uma autonomia marcada por uma forte duplicidade, estritamente disciplinar e muito comprometida com a defesa de interesses de classe, próprios dos profissionais (artigo de Flávio Eiró); ou uma autonomia pluridisciplinar desenvolvida em cumplicidade com os direitos sociais dos cidadãos (artigo de Marise Ramos).
O artigo de Mara Clemente, relativo ao combate ao tráfico de pessoas em Portugal, e o artigo de Maria Belén Ortega-Senet, sobre a (des)proteção social de crianças vítimas de maus-tratos no Chile, são aqueles que mais diretamente colocam em evidência o facto de os profissionais estarem numa posição de subordinação face aos jogos políticos em curso. Embora nestes dois estudos os enquadramentos organizacionais em que participam (rede de organizações não públicas e uma organização com mandato político para promover a inovação social) sejam, potencialmente, contextos favoráveis ao debate e à reavaliação das políticas públicas. No artigo de Mara Clemente, o contexto organizacional em rede parece fazer com que o controlo político externo seja percecionado como muito mais próximo e prescritivo, fazendo com que a autonomia profissional tenda a ser ocultada e silenciada, ainda que possa ser aflorada pontualmente como (im)possibilidade. No artigo de Maria Belén Ortega-Senet, o contexto organizacional é praticamente o inverso do anterior: descentralizado e, como referimos, comprometido com a inovação face ao reconhecido falhanço das políticas anteriores. No entanto, também aqui existe uma forte subordinação burocrática, ainda que se faça acompanhar pelo desenvolvimento de uma consciência crítica profissional que se mostra capaz de criar espaços sociais periféricos de autonomia: espaços facilitadores das interações pessoais profissionais-vítimas, sem que estas interações tenham, no entanto, relevância e alcance na implementação da política social em causa.
A ênfase que estas duas etnógrafas dão à posição de subordinação dos profissionais face às políticas sociais públicas decorre em grande medida de ambas as autoras se colocarem numa posição epistémica a priori crítica dessas políticas, assumindo-se, enquanto cientistas sociais, como parte interessada nas disputas sobre a legitimidade das políticas em análise.8 Em consequência, diremos nós, parecem manifestar, de modo implícito, algum desapontamento perante o facto de a agência profissional não assumir, explicitamente, um maior conteúdo político.
O posicionamento epistemológico crítico também pode ser encontrado no artigo de Flávio Eiró. Também aqui se pretende participar no debate sobre a legitimidade das políticas sociais, embora o caminho seguido para o efeito seja outro. O posicionamento do autor não parte de um a priori crítico sobre o conteúdo da política em análise (Programa Bolsa Família no Brasil), mas antes de uma análise a posteriori sobre a sua concretização no território de um município, mostrando-nos como atuam os profissionais-técnicos na passagem da escala macro de formulação da política para as escalas meso e micro de definição contextual de formas e conteúdos profissionais para a implementação da mesma política. É neste enquadramento analítico que a sua abordagem crítica emerge, pois consegue denunciar e desmistificar o alcance supostamente emancipador desta política, ao não circunscrever a análise apenas à política enunciada em texto.
Este autor também evidencia a existência de consciência crítica por parte dos profissionais em relação ao excesso de controlo externo sobre a política a implementar, mas esta consciência crítica acaba por ser suavizada, porque a governação central revela-se ambivalente. Há um controlo político centralizado prévio, mas a subordinação burocrática dos profissionais não é muito vincada, porque na estratégia montada pela governação central admite-se conceder poder profissional, a posteriori, para avaliar a adequação da política aos casos-famílias em que se concretiza. Por sua vez, os profissionais usam esta autonomia de uma forma explicitamente dúplice, configurando em simultâneo um posicionamento paradoxal, de dominação e de subordinação: (i) por um lado, consolidam e ampliam um poder de classe social que se afirma pela dominação simbólica e financeira das famílias destinatárias da política social; (ii) por outro lado, estão sujeitos a alguma instrumentalização política da sua autonomia profissional, pois a hierarquia da profissão aparece comprometida com o mandato político local e parece estar disponível para aceitar aquela instrumentalização. É esta conclusão que nos permite afirmar que o autor tem um posicionamento epistemológico crítico, porque denuncia a posição de classe dos profissionais e também, diremos nós, a posição de subordinação real (e não apenas formal) da agência profissional face ao mandato político municipal.
O artigo de Marise Ramos, relativo a políticas de promoção e educação para a saúde no Brasil, evidencia um cenário de maior autonomia profissional e, portanto, de menor subordinação burocrática. Para esta possibilidade concorrem três fatores, claramente diferenciados dos restantes três artigos: (i) uma atuação profissional, no terreno, em equipa pluridisciplinar, onde as delimitações e segmentações das competências específicas de cada profissional-técnico são muitas vezes desvalorizadas e suprimidas em benefício da efetividade do atendimento aos utentes; (ii) uma atuação profissional, no terreno, em bairros populares marginais (favelas das grandes metrópoles brasileiras) onde a presença do Estado é continuadamente posta em causa, contribuindo para uma certa dissipação do controlo dos processos de implementação das políticas públicas; (iii) o desenvolvimento de uma cultura profissional que se identifica com as grandes finalidades da política social em causa, fazendo com que, em consequência, a agência profissional procure explicitamente processos de interação com as populações que permitam o desenvolvimento de relações de poder mais informais e horizontais, comprometidas em servir os interesses dos cidadãos tidos como mais vulneráveis.9
No entanto, o poder desta agência profissional não deixa de ter algumas limitações, pois a cultura profissional que é descrita não é inteiramente partilhada por toda a equipa, sendo construída fundamentalmente pela iniciativa dos trabalhadores profissionais-técnicos auxiliares, ainda que não deixe de ter a anuência das chefias e dos profissionais com maior capital cultural e simbólico. Neste contexto podemos afirmar que o posicionamento epistemológico desta autora não é de natureza crítica, dado que a sua análise encontra uma cultura profissional que está longe de ser dúplice: transforma e recontextualiza a subordinação formal à política central enunciada numa vantagem para um agir contextual autónomo com os cidadãos, ao mesmo tempo que preserva a sua identificação (e reinterpretação) com os propósitos políticos de realização dos direitos sociais das populações.
Olhando para os quatro artigos num registo mais prospetivo, assumimos que os processos de recontextualização das políticas e a sua maior ou menor inscrição em ordenamentos burocráticos implicarão formas distintas de mobilização de saberes nas práticas profissionais quotidianas, facilitando ou inibindo a reprodução de saberes tácitos (não baseados na evidência científica) e a sua interatividade com os saberes explícitos e formais (Caria e Sacramento 2017). Com base nesta hipótese, em geral pouco explorada nestes artigos, julgamos pertinente a realização de pesquisas etnográficas que permitam alongar a linha de trabalho deste dossiê, procurando compreender como as condições político-organizacionais e as distintas configurações de autonomia e discricionariedade profissional se relacionam com os saberes convocados no decurso das práticas através das quais as políticas passam do texto para o quotidiano da vida profissional.