Introdução
O número de casos de crianças e adolescentes com diabetes mellitus tipo 1 (DM1) tem aumentado em muitos países. No mundo, anualmente, existem cerca de 98.200 diagnósticos de DM1 em menores de 15 anos, aumentando para 128.900 quando a faixa etária se estende a menos de 20 anos. Índia, Estados Unidos da América e Brasil têm a maior incidência e prevalência deste diagnóstico em crianças e adolescentes, especialmente na faixa etária dos 0 aos 14 anos. Em países com acesso limitado aos serviços de saúde, esta população pode apresentar desfechos clínicos indesejáveis e mortalidade precoce (International Diabetes Federation, 2019), constituindo-se como um grande problema de saúde pública.
Além das exigências impostas pela doença, os adolescentes com DM1 têm que lidar com as mudanças físicas, psicológicas, sociais e comportamentais próprias dessa fase do ciclo vital (Feitor et al., 2020). Nessa fase, começam a assumir a responsabilidade pelo autocuidado com a doença, entretanto, muitas vezes, esta é dada sem a avaliação da sua maturidade para gerir adequadamente o cuidado de si, requerendo, para tal, autonomia comportamental, cognitiva e emocional (Jones & Foli, 2018).
Assim, justifica-se a importância deste estudo ao evidenciar os problemas que interferem na construção da autonomia do adolescente com DM1, de modo que, a partir desse conhecimento, os profissionais de saúde, especialmente enfermeiros, possam traçar estratégias proactivas no cuidado a essa população a fim de facilitar esse processo. Este estudo teve como objetivo analisar o processo de construção da autonomia para o autocuidado de adolescentes com DM1.
Enquadramento
A DM1 é uma doença metabólica autoimune manifestada por um quadro de hiperglicemia persistente, devido à ineficiência da produção e/ou ação da insulina. Pode ser subdividida em DM tipo 1A e 1B, em que a primeira é definida conforme haja comprovação laboratorial de autoanticorpos que destroem as células β; e a segunda quando estes não são identificados, considerado de natureza idiopática (Sociedade Brasileira de Diabetes, 2019).
A Organização Mundial da Saúde define adolescência como o período compreendido entre 10 e 19 anos de um indivíduo (World Health Organization, 1986). Esta fase traz consigo várias mudanças psicobiológicas intrínsecas à transição desse ciclo de vida, que, quando somadas à DM1, podem repercutir-se negativamente no processo de autonomia na manutenção do regime terapêutico necessário (Feitor et al., 2020).
Perante este contexto, entende-se a relevância de se avaliarem as três dimensões da autonomia, que estão inter-relacionadas, com a finalidade de identificar a maturidade do adolescente com DM1 para a realização do autocuidado. A autonomia cognitiva refere-se à capacidade de o adolescente confiar em si para tomar decisões com base nos seus conhecimentos, valores e crenças de modo independente, sem precisar de aprovação externa. Já a autonomia comportamental diz respeito à capacidade para executar as ações necessárias de acordo com as suas decisões, como as ações de cuidados com a diabetes (monitorizar a glicemia, calcular o consumo de hidratos de carbono, determinar e administrar a dosagem de insulina). Por sua vez, a autonomia emocional ocorre quando o adolescente começa a ver os pais como pessoas com características e necessidades fora do relacionamento pai-filho. Quando isso acontece, o jovem começa a cortar dependências infantis sobre os pais e a assumir a responsabilidade pelo próprio comportamento (Jones & Foli, 2018).
Nessa dupla transição, da fase de vida e de responsabilidades para o autocuidado, podem ocorrer desajustes na glicemia, por vezes com picos hiperglicémicos (glicemia acima de 140 mg/dL) ou hipoglicemia (glicemia abaixo de 70 mg/dL; Beck et al., 2019). Tal, decorre da imaturidade do adolescente para gerir o tratamento, comprometendo a sua saúde (Mok et al., 2019).
Destarte, as três dimensões da autonomia devem ser avaliadas continuamente, assim como os fatores que contribuem ou dificultam a sua construção, a fim de saber se o adolescente alcançou a maturidade completa para realizar de maneira efetiva as atividades de autocuidado relacionadas à DM1 (Jones & Foli, 2018). É importante prestar atenção a este processo, de construção da autonomia, uma vez que interfere diretamente no autocuidado, ou seja, nas atitudes adotadas para o cuidado de si.
Neste sentido, necessita-se de dar voz ao adolescente com DM1, para que exponha as suas vivências com a doença e os aspetos que interferem na construção da autonomia para o autocuidado, com o intuito de identificar estratégias para potencializar a superação das adversidades. O estudo de Cruz et al. (2018) reconhece a relevância de a equipa de saúde identificar as barreiras que os adolescentes enfrentam no quotidiano, ao realizar o autocuidado, a fim de planear ações que visem a prevenção de complicações e melhor qualidade de vida.
Através desse trabalho é possível construir um plano de cuidados direcionado para a implementação de acordos mais efetivos, que favoreçam o desenvolvimento da autoeficácia para o alcance da autonomia na gestão da DM1 (Collet et al., 2018). Decorrente do impacto que a DM produz na vida desses adolescentes (Zanatta et al., 2020) é importante que os profissionais de saúde procurem estratégias para os ajudar a minimizar esse impacto, como a do autocuidado apoiado.
Questões de investigação
Como é que os adolescentes com DM1 desenvolvem a autonomia para o autocuidado? Quais as dificuldades vivenciadas no processo de construção dessa autonomia?
Metodologia
Pesquisa exploratório-descritiva com abordagem qualitativa, realizada em ambulatório pediátrico de um hospital de grande porte e em domicílios de adolescentes com DM1 no Estado da Paraíba, Brasil. A recolha de dados ocorreu entre setembro e dezembro de 2017. Para assegurar a validade dos resultados e diminuir os erros de interpretação desse estudo, utilizaram-se as recomendações do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ).
Os participantes da pesquisa foram nove adolescentes, que atenderam aos critérios de inclusão: ter o diagnóstico de DM1, estar na faixa etária entre 10 e 19 anos e fazer insulinoterapia regularmente. Esta faixa etária foi escolhida por possibilitar a análise do processo inicial de construção da autonomia para o autocuidado, além das histórias dos que já alcançaram essa autonomia. Como critério de exclusão considerou-se: presença de problemas cognitivos e/ou de comunicação. Todavia, nenhum potencial participante precisou de ser excluído.
Para a seleção dos participantes utilizou-se o método snowball, em que informantes-chave, denominados sementes, indicavam novos respondentes que correspondessem ao perfil da investigação (Costa, 2018). Desta forma, iniciou-se a seleção com o contacto prévio com as sementes no serviço ambulatorial e, a partir destes adolescentes, conseguia-se o número de telefone de outros e dos seus responsáveis, para convite à participação na investigação. Caso aceitassem, a entrevista era agendada nos seus domicílios.
Os dados foram colhidos através de entrevista semiestruturada, após apresentação da investigadora aos participantes. Esta, foi norteada pelas seguintes questões: “fale-me como é realizado o seu autocuidado em relação à diabetes”; e, “quais dificuldades você encontra para realizar esse autocuidado?”
No ambulatório, as entrevistas ocorreram após a consulta com o especialista e, nos domicílios, por agendamento de data e horário conveniente aos adolescentes. As entrevistas foram conduzidas por uma investigadora experiente e realizadas individualmente, gravadas em áudio, com duração média de 60 minutos, e transcritas na íntegra para análise. Como critério de encerramento da recolha dos dados utilizou-se a saturação, quando o objetivo do estudo foi considerado alcançado, e as informações repetidas já permitiam a compreensão do fenómeno de estudo, não havendo necessidade de inclusão de novos participantes (Minayo, 2017).
Para a interpretação dos dados foi utilizada a análise temática indutiva (Braun & Clarke, 2013), realizada por meio de avaliação cruzada de dois investigadores, a qual possibilitou identificar, analisar e relatar temas padrão presentes nos dados. Nesse processo, inicialmente, realizou-se digitação das entrevistas, que proporcionou maior familiarização com os dados. A partir desse ponto, os investigadores individualmente procuraram codificar o banco de dados, e agrupá-los, conforme afinidade para a formação dos pré-temas. Estes, tiveram os seus códigos revisados e refinados para construção dos temas, que foram confrontados na avaliação cruzada, e posteriormente ocorreu a elaboração do relatório final.
O estudo seguiu os preceitos éticos do Conselho Nacional de Saúde do Brasil sobre pesquisa com seres humanos e obteve parecer favorável nº2.046.382. Os adolescentes com 18 anos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e os menores o termo de assentimento e os seus responsáveis o TCLE. Como garantia do anonimato, foi utilizada a letra “A”, de adolescente, seguida do numeral ordinal de realização das entrevistas e das idades dos entrevistados.
Resultados
Os adolescentes tinham entre 10 e 18 anos, sendo a maioria do sexo masculino (A1, A3, A4, A6, A7, A8). A escolaridade variou do quinto ano do ensino fundamental ao ensino superior incompleto. Já a escolaridade dos seus cuidadores variou do ensino fundamental incompleto ao ensino superior completo. Quatro participantes residiam no município em que a pesquisa foi realizada, (A1, A6, A8, A9), dois na região metropolitana (A5, A7) e três no interior do estado (A2, A3, A4).
Quanto ao tempo de diagnóstico destaca-se: A1, A5 e A7, 7 anos; A2, 3 anos; A3, 4 anos; A4, 1 ano; A6, 12 anos; A8, 13 anos; e A9, 15 anos. Os tratamentos eram realizados através do uso de insulina e seringa (A1, A4), caneta de insulina (A2, A3, A5), bomba de insulina (A7, A8, A9), e bomba e caneta de insulina (A6). Apenas quatro dos adolescentes possuíam plano de saúde (A5, A6, A7, A9), estes não frequentavam a unidade de saúde da família (USF). A frequência na USF dos demais variou entre semanal e bimestralmente.
Os seguintes temas foram identificados após a análise dos dados empíricos: Processo de construção da autonomia de adolescentes com DM1 para o autocuidado e Dificuldades vivenciadas na construção da autonomia para o autocuidado de adolescentes com DM1.
Processo de construção da autonomia de adolescentes com DM1 para o autocuidado
Nesta construção da autonomia, os adolescentes necessitam de receber tanto o suporte externo quanto aprimorar o seu conhecimento sobre a doença e o tratamento, a fim de acreditar no seu potencial para gerir os cuidados, conforme a Figura 1.
Sendo assim, o início deste percurso ocorreu quando o adolescente desejou procurar mais conhecimento sobre a DM1 para melhor controlo da doença: “Comecei a pesquisar sobre a doença e quanto mais eu pesquisava, mais eu entendia . . . mais eu tinha controle sobre a doença em si. Saber o que eu estou enfrentando me ajuda a lidar com ela” (A7).
O desejo de aprender aprimora a autonomia cognitiva e comportamental, e o apoio da família e dos profissionais de saúde é fundamental. Dentre esses suportes, encontra-se o aconselhamento e o acompanhamento da aplicação da insulina: “Porque eu via ele (pai) aplicando, e me dava vontade também. . . . Aí ele passou a me ensinar e o pessoal do PSF (Programa de Saúde da Família) me ajudou também. Desde então, eu venho aplicando” (A1).
A abertura dos pais para que o adolescente realizasse as ações de autocuidado contribuiu para a autonomia emocional: “Com oito anos de idade comecei a aplicar. Papai falou que já dava para eu ser responsável. Ele me ensinou . . . Eu gosto de aplicar em mim e ter responsabilidade comigo mesmo” (A3).
O apoio dos pais ao longo da vivência com a DM1 foi apontado como fator essencial no processo de construção do conhecimento acerca da DM1 para a autonomia cognitiva, o que favoreceu o enfrentamento da doença. “Meus pais me ajudaram. À medida que eu ia crescendo e amadurecendo, comecei a entender o porquê de tudo, o que é a doença e o tratamento. Hoje convivo de boas com isso” (A7).
O apoio recebido potencializou esse conhecimento ao longo do tempo, e resultou em melhor distinção dos sinais e sintomas de intercorrências agudas, bem como a realização de intervenções para corrigi-las. Esse aprimoramento contribuiu para a autonomia comportamental dos adolescentes no seu autocuidado. “Quando está baixa a pessoa fica fraca, perdendo o equilíbrio das pernas . . . Tem que fazer o teste. Se der alta, toma a dosagem certa da insulina que está no papel (A2)
A hipo(glicemia) . . . sinto tremor, faço glicemia e se tiver baixa eu corrijo com algo doce. Quando está hiper, está alta, fico com a visão turva, com sono e bebo muita água. Aí faço o teste e corrijo com a Novorapid. (A5).
Assumir paulatinamente a responsabilização pela gestão terapêutica favoreceu a construção da maturidade para o autocuidado e o alcance da independência almejada pelo adolescente.
À medida que eu tinha mais responsabilidade de cuidar de mim mesmo, tinha mais liberdade. Antes minhas taxas eram muito elevadas, e eu só pensava ‘ah, não me deixam comer doces’ e eu comia escondido. Eu comecei a entender o porquê de não comer e porque alterava. E isso me ajudou a ser independente. (A6)
Novas tecnologias para o tratamento também contribuíram para a autonomia dos adolescentes na realização das ações de autocuidado, gerando segurança nas ações quotidianas.
Eu me sentia mal com a seringa, porque eu não gostava daquelas agulhas grandes. Na canetinha as agulhas são pequenas e já é tranquilo. Faço sozinha. . . . Na seringa eu tinha que ver quanto era a unidade, e na canetinha eu só rodo a roletinha, e já me diz a quantidade de unidade certa. (A2)
Com a caneta eu passei a aplicar . . . trouxe mais facilidade, porque a seringa a gente tinha que ficar andando com o isopor para conservar a temperatura, e não poderia ficar fora da geladeira por muito tempo. Já a caneta não precisa, só não pode expor ao sol. (A5)
A bomba de insulina facilitou a gestão da doença, desencadeando a perceção de uma vida normal, com menos restrições alimentares e melhor gestão, com o uso da técnica de contagem de hidratos de carbono.
Acho que posso dizer que agora eu tenho uma vida normal, porque eu não tenho mais a preocupação de fazer os testes várias vezes ao dia . . . Antes, a dieta era bastante restrita, tudo diet e contado. (Agora) eu posso comer de tudo, mas moderado. A bomba e a contagem me dão mais liberdade em tudo. (A7)
Voltar para a caneta foi muito ruim. Apesar de estar com 13 anos, eu não queria me furar muitas vezes, ao invés de apertar dois botões e pronto. Eu tinha mais liberdade com a bomba e com a contagem de carboidratos, assim como foi no teste . . . Me deu mais liberdade na alimentação, no esporte e na glicemia. (A8)
Dificuldades vivenciadas na construção da autonomia para o autocuidado de adolescentes com DM1
Os fatores que dificultam este processo de construção, descritos na Figura 2, estão vinculados à própria terapêutica da DM1. Dentre eles, a dieta, o acesso aos materiais para insulinoterapia e a habilidade para manuseá-los.
O controlo da dieta é parte integrante do autocuidado de adolescentes com DM1. Porém, o consumo restrito de alimentos foi explicitado como uma das dificuldades dos adolescentes na gestão da doença. “Foi muito ruim a primeira vez (primeira dieta), porque eu estava acostumado a comer as coisas normais do dia a dia . . . Agora eu tenho o diagnóstico, tenho mais consciência do que é uma dieta” (A4). “No começo do ano eu comecei uma dieta, perdi peso, passou um tempo e eu voltei com tudo. Influenciou de forma ruim no tratamento, porque minha taxa aumentou mais, aumentei mais o peso, a insulina também” (A5).
Realizar a autoadministração da insulina é uma atividade complexa para os adolescentes, necessitando de conhecimentos e habilidades técnicas. Além disso, os materiais utilizados para a administração foram apontados como fatores que dificultam o alcance da autonomia comportamental para o autocuidado. “Quando aplico (insulina com a seringa) fico nervoso e quando é meu pai fico mais calmo. Na coxa eu tinha medo de pegar alguma parte errada” (A1). “Foi melhor a caneta, porque era ruim estar sempre contando os tracinhos para aplicar, e também doía menos, porque a agulha era menor” (A5).
Uma tecnologia disponibilizada no Brasil a poucos adolescentes com DM1 é a bomba de insulina. Apesar dos inúmeros benefícios descritos pelos que a utilizam, muitos ainda não têm acesso e anseiam um dia poder tê-la no seu tratamento. “Queria usar a bombinha porque ela ajuda a regular (a glicemia). Meu pai ia pedir ao governo para comprar, porque os diabéticos estão precisando” (A3). “Eu acho que nos próximos anos as coisas vão evoluir mais, porque meu nome já está na lista para conseguir a bombinha, só que não chegou. Ele (governo) deveria investir mais nos diabéticos, a bombinha iria trazer mais independência” (A5). “Acho que se outras pessoas tivessem acesso à bomba de insulina, o controlo delas melhoraria . . . Porque muita gente ainda faz tratamento muito atrasado e doloroso . . . Ajudaria na aceitação” (A7).
Diante das vivências na realidade atual, os adolescentes explicitaram as suas expectativas em relação ao autocuidado e ao seu futuro com a DM1. Particularmente, preocupam-se com o acesso aos materiais para insulinoterapia.
O maior problema é conseguirmos os insumos (materiais para insulinoterapia) com o governo e o alcance dos nossos direitos. O diabético consciente entende a doença e se trata, então o problema maior não será o cuidado em si, mas ter acesso aos insumos para ter esses cuidados. (A6)
Discussão
Entende-se que o início da adolescência traz consigo a necessidade da transição da responsabilização pelo cuidado com a DM1 dos pais para os filhos (Collet et al., 2018; Jones & Foli, 2018) e o desenvolvimento da sua autonomia. No entanto, destaca-se que o envolvimento dos pais nesse processo, por meio do compartilhamento de responsabilidades, torna-se relevante para o alcance do controlo glicémico (Vloemans et al., 2019; Zanatta et al., 2020). Assim, o apoio recebido no processo de construção do conhecimento e no desenvolvimento de habilidades para o autocuidado é essencial para o alcance da maturidade na gestão segura da doença (Collet et al., 2018).
Ter conhecimento sobre a doença e ver os resultados positivos obtidos através dele, estimula os adolescentes a procurarem mais conhecimento para melhor controlar a sua condição. Além disso, ajuda-os a desenvolver habilidades de enfrentamento e aceitação para o alcance da autonomia comportamental.
Um estudo norueguês refere que o conhecimento adequado dos adolescentes com DM1 sobre a doença e o tratamento é de extrema relevância para fortalecer as habilidades para o autocuidado. Assim, podem realizar os procedimentos diários, observar e responder aos sinais e sintomas vivenciados no quotidiano (Strand et al., 2019).
Conhecer os sinais e sintomas da hiperglicemia e da hipoglicemia dará suporte para identificar e resolver prontamente valores glicémicos descompensados, variações alimentares e uso erróneo da dosagem de insulina. Essas alterações podem resultar em coma, complicações vasculares e cetoacidose diabética. Para evitá-las, o adolescente e os seus cuidadores devem saber a definição de hiper e hipoglicemia, reconhecer precocemente os sinais e sintomas de cada situação, bem como o seu tratamento e prevenção (American Diabetes Association, 2020).
Esse conhecimento, geralmente, é construído a partir das experiências vividas, bem como a partir de orientações de profissionais da saúde que integram a sua rede social. Um estudo (Cruz et al., 2018) enfatiza a importância do apoio dos profissionais e dos pais ao adolescente com DM1 para o alcance de melhor desempenho com o seu autocuidado, que se reflete positivamente na sua qualidade de vida.
Esse apoio potencializa o sucesso da implementação dessas ações de forma coerente com a situação vivenciada. Neste sentido, os profissionais podem realizar educação para a saúde para trabalhar questões que interferem na autonomia dos adolescentes identificadas neste estudo. Assim, enriquece-se o cuidado ofertado e garante-se a gestão adequada que, também, previne complicações futuras.
O adolescente com DM1 vivencia no seu quotidiano inúmeras modificações, exigindo força de vontade, mudança de comportamento e atitudes de adaptação. Neste processo, o suporte fornecido pelas redes sociais de apoio auxilia-o a adquirir autonomia para gerir a sua vida com a doença com qualidade (Collet et al., 2018).
Este processo é favorecido quando existe o interesse do adolescente em desenvolver habilidades necessárias, aliada à abertura dos pais para que o mesmo realize as atividades de autocuidado, como por exemplo, a insulinoterapia e o teste glicémico. Deste modo, superam-se os receios face ao procedimento e contribui-se para a construção da autonomia emocional e comportamental do adolescente, impulsionando a sua maturidade. Não obstante, a avaliação da maturidade do adolescente para o autocuidado pelos profissionais de saúde é um ponto fundamental neste processo de transição e decisivo para a gestão adequada do autocuidado.
Quanto à insulinoterapia, a experiência desses adolescentes com a seringa para administrar a insulina foi descrita como difícil, dolorosa e ultrapassada, o que pode dificultar a construção da autonomia. Já a caneta de insulina por ter agulha menor e ser mais fácil de calibrar a dosagem fomenta o interesse dos adolescentes em aprender a realizar esse autocuidado, ao trazer mais segurança e autoconfiança na aplicação. Assim, infere-se com este estudo que a tecnologia contribui para a adesão ao protocolo estabelecido, ao facilitar o transporte, o manuseamento e a administração, favorecendo o desenvolvimento da autonomia emocional e comportamental.
Fortalecem estes resultados uma pesquisa realizada em São Paulo, Brasil, a qual destacou que os materiais utilizados na insulinoterapia estão relacionados com o seguimento da terapêutica e indica o uso de canetas aplicadoras como excelente alternativa para facilitar essa adesão. Contrariamente, podem existir barreiras à administração de insulina quando necessita de diferentes materiais decorrentes do armazenamento e do transporte ou quando são despertados sentimentos como medo, insegurança e dor pela forma de administração do injetável (Dias & Junqueira, 2020). Bariya e Nayberg (2017) da Universidade da Califórnia também enfatizaram os benefícios da substituição da seringa pela caneta aplicadora, ao minimizar a sobrecarga na gestão e permitir melhor performance, pois a seringa está associada à dor, inconveniência e estigma social.
Neste estudo, benefícios ainda maiores foram evidenciados com o uso da bomba de infusão contínua (BIC) de insulina que foi sinónimo de melhor qualidade de vida para os adolescentes. Esta tecnologia facilita a gestão terapêutica, contribuindo para um maior controlo da glicemia, diminuição das variações glicémicas e a liberdade de gerir a sua rotina sem muita intervenção de terceiros. A satisfação em usufruir dessa tecnologia motiva o seguimento terapêutico por promover maior autonomia.
A terapia com BIC envolve a libertação de insulina basal de ação prolongada, geralmente uma ou duas vezes por dia, e de insulina de ação rápida após as refeições. Ao comparar o uso desta terapia com a aplicação de múltiplas injeções diárias de insulina, um estudo apontou o efeito benéfico na redução das concentrações de hemoglobina glicosilada e nos casos de hipoglicemias (American Diabetes Association, 2020). Além destes, também foram destacados como benefícios a satisfação com o tratamento, a liberdade alimentar, a redução de complicações diárias e do stress parental, com impacto positivo na qualidade de vida do adolescente com DM1 (Beck et al., 2019), assim como da sua família.
O maior obstáculo para o acesso à BIC é o investimento insuficiente do governo em tecnologias de tratamento para pessoas com diabetes. Apreendeu-se, pelos relatos dos adolescentes, que as formas de tratamento disponibilizadas pelo governo influenciam na aceitação, na gestão e no autocuidado. Este é um aspeto relevante a ser considerado pelos profissionais de saúde ao cuidar dessa população e requer mudanças importantes nas políticas públicas.
Outra dificuldade para o autocuidado enfatizada pelos adolescentes foi a dieta. Identificaram-se diferentes comportamentos, pois, para alguns, o entendimento do objetivo do seguimento da dieta já se mostra suficiente para motivá-los a segui-la e para outros controlar a dieta vai além do entendimento e da consciência, e o desejo de comer algo proibido torna-se maior. A consciência das responsabilidades mostra-se positiva, mas as motivações e barreiras precisam de ser pontuadas na etapa da avaliação do autocuidado apoiado, e trabalhadas nas etapas de acordo e da assistência, refinando a autonomia para o controlo da dieta.
Corroborando os achados deste estudo, uma investigação realizada no estado do Ceará, Brasil, evidencia que faz parte do dia-a-dia dos adolescentes com DM1 o dilema entre seguir a dieta e cair na tentação de comer alimentos considerados inadequados pelos profissionais de saúde e/ou pelos pais. Isto acontece devido à dificuldade em enfrentar os desejos internos e os apelos aos estímulos externos em torno da alimentação, interferindo no seu autocontrolo (Fragoso et al., 2019).
Neste sentido, a contagem de hidratos de carbono associada ao uso da bomba de insulina proporciona maior sensação de liberdade na dieta, constituindo-se como fator motivador para manter o controlo glicémico. Neste método conta-se o número de hidratos de carbono em cada refeição, com base nos alimentos consumidos, sabendo que por dia 45 a 65% das suas calorias precisam de ser hidratos de carbono, com a finalidade de definir a dosagem de insulina a ser administrada (American Diabetes Association, 2020).
Quanto à gestão da doença, as boas expetativas do adolescente com DM1 para o futuro estão vinculadas ao uso da BIC de insulina. Entretanto, o acesso a essa tecnologia fica depende do governo. Este deve apoiá-los, fornecendo os materiais necessários, pois, por mais que o adolescente realize o autocuidado satisfatoriamente, sem o apoio do governo e da rede de atenção, os resultados esperados para o controlo da doença podem não ser alcançados por falta de condições favoráveis.
A equipa de saúde necessita de aprimorar atitudes que já fazem parte do quotidiano, orientando os adolescentes a assumirem o próprio cuidado, incentivando-os a aderirem às mudanças necessárias ao seu estilo de vida, tendo, assim, ferramentas potentes para autogerir a sua condição de saúde com mais autonomia (Fragoso et al., 2019). Não obstante, perante a complexidade dos cuidados diários exigidos pela terapêutica, para a construção da autonomia, apreende-se a importância do apoio dos profissionais de saúde, inclusive o enfermeiro, para os adolescentes com DM1 e para as suas famílias. Ao receber apoio, estes poderão compreender melhor a doença e os cuidados para a adoção de atitudes adequadas, de modo a empoderarem-se para autogerir a própria saúde.
Salienta-se que este estudo apresenta algumas limitações, como a seleção de adolescentes em apenas um serviço ambulatorial de referência da capital do nordeste brasileiro, bem como o número reduzido de participantes. Apesar disso, a abordagem qualitativa utilizada não procura a generalização dos achados, mas sim a singularidade nas falas daqueles que participaram no estudo. Este, por sua vez, trouxe contributos importantes relacionados com os fatores que podem contribuir ou interferir na construção da autonomia para o autocuidado do adolescente com DM1, agregando conteúdo para a construção de novos conhecimentos acerca da temática em estudo.
Conclusão
O processo de construção da autonomia do adolescente com DM1 inicia-se com o seu desejo em ter mais conhecimento sobre a doença e o tratamento para desenvolver as atividades de cuidado no quotidiano. A família e os profissionais de saúde são fundamentais nessa construção do cuidado em saúde, apoiando-os para que alcancem as autonomias cognitiva, comportamental e emocional, a fim de confiarem no seu potencial para realizar o autocuidado, superando os desafios para o alcance da maturidade.
Segundo os resultados, percebe-se que facilitar o acesso dos adolescentes aos recursos tecnológicos para administração da terapêutica favorece a autonomia comportamental e emocional. Ao analisar a relação custo-benefício da bomba de insulina, tecnologia não disponibilizada a todos pelo governo por ser alto custo, o uso pode reverter-se em economia para o governo, ao obter maior adesão ao tratamento e prevenir complicações clínicas que, certamente, gerarão maior ónus para o sistema de saúde, e interferência na qualidade de vida desses adolescentes e das suas famílias.
Este estudo possibilita ao enfermeiro ter uma compreensão mais aperfeiçoada do que pode potencializar ou dificultar o processo de autonomia dos adolescentes com DM1 e esse novo conhecimento pode sustentar o agir proactivo face às singularidades. Não obstante, sugere-se o desenvolvimento de estudos futuros com o intuito de identificar estratégias mais promissoras no autocuidado apoiado, que poderão ser utilizadas pelos enfermeiros para ajudar esses adolescentes no processo de construção da sua autonomia e mecanismos de resiliência.