Introdução
O cuidado de enfermagem à pessoa em situação crítica (PSC) tem evoluído de forma significativa, no que concerne à qualidade da assistência, em resposta ao considerável investimento tecnológico que tem sido realizado nesta área (Sweet & Foley, 2019). A evidência mostra que a mudança num dos membros do sistema familiar, através do impacto da doença, produz modificações nos outros membros da família (Shajani & Snell, 2019). A situação de doença crítica de um ente querido impõe desafios significativos à família, sobretudo pela vivência da finitude da vida, incerteza do prognóstico e o ambiente tecnologicamente desconhecido, provocando quadros psicológicos em que emerge a ansiedade, a depressão e o luto complicado (Kreuz & Netto, 2021). Assim, numa abordagem holística, centrada na pessoa doente, na pessoa família e na pessoa profissional de saúde, onde se inscreve a intervenção de enfermagem, importa cuidar da família da PSC, no serviço de urgência (SU).
A experiência vivida dos enfermeiros é uma fonte fundamental de conhecimento, quando se pretende diminuir a distância entre a evidência e a prática clínica, otimizando a transferibilidade do conhecimento em enfermagem (Moxham & Patterson, 2017). A experiência dos enfermeiros reporta a intencionalidade no cuidar, em que as dimensões do fenómeno representam os constituintes integrantes da essência da consciência em direção ao Outro. O estado da arte sobre esta temática revela estudos sobre as experiências e as necessidades da família no SU (Barreto et al., 2019; Berbís‐Morelló et al., 2019; Hsiao et al., 2017; Yildirim & Özlü, 2018), contudo conhece-se pouco sobre as experiências dos enfermeiros (Sá et al., 2015). Logo, perspetivou-se um estudo para dar resposta ao seguinte objetivo: compreender a experiência vivida dos enfermeiros no cuidado à família no SU.
Enquadramento
Em Portugal, a presença da família no SU foi formalizada através do direito de acompanhamento dos utentes do SU (Lei n.º 33/2009). O brotar de uma cultura institucional que assente em respostas integradas e centradas na família requer a reorganização do funcionamento do SU. No processo de admissão a pessoa tem o direito de nomear um acompanhante ou na sua impossibilidade, por alteração do estado de consciência, será também atribuído um acompanhante mediante comprovativo de grau de parentesco (Lei n.º 33/2009). O SU é um contexto altamente diferenciado e tecnologicamente desafiante, no qual o processo de tomada de decisão em enfermagem é complexo, por isso os enfermeiros necessitam frequentemente de dar prioridade ao cuidado da PSC (Sweet & Foley, 2019), colocando as necessidades da família para segundo plano. Ainda assim, os enfermeiros possuem competências para avaliar e intervir face às necessidades da família (Shajani & Snell, 2019), sendo os profissionais de saúde com presença mais assídua junto das famílias neste contexto, o que cria uma janela de oportunidade para a intervenção diferenciada.
A família da PSC experiencia um enorme sofrimento, que é na sua natureza diferente do da própria pessoa (Kreuz & Netto, 2021), que se encontra frequentemente sedoanalgesiada e sem consciência temporal dos intermináveis minutos de espera experienciados pela sua família entre salas de espera, visitas esporádicas, exames complementares de diagnósticos, cirurgias e procedimentos de reanimação. A família encontra-se numa situação de grande vulnerabilidade com necessidade de intervenções terapêuticas de enfermagem (Yildirim & Özlü, 2018). A integração da família no cuidado otimiza o cuidado de enfermagem à pessoa doente (Shajani & Snell, 2019). Num estudo realizado a nível nacional, verificou-se que os enfermeiros atribuem níveis elevados à importância das famílias nos cuidados de enfermagem, no que se refere aos diferentes contextos de cuidados, inclusive no SU (Fernandes et al., 2015). Contudo, cuidar a família da PSC exige do enfermeiro competências especializadas pelas particularidades e desafios impostos pelo contexto de urgência (Sweet & Foley, 2019). Deste modo, importa desocultar a experiência vivida do enfermeiro no cuidar de enfermagem à família da PSC neste contexto.
A experiência vivida está intimamente ligada à vivência da experiência primitiva do ser humano, ou seja, o facto sentido enquanto se constrói a realidade de um ponto de vista humanista e existencialista (Van Kaam, 1959). A experiência vivida é a experiência do ser humano no cerne da sua relação com o mundo que o rodeia e o fundamento basilar no seu processo interno de consciencialização de si e dos outros. A experiência vivida centra-se sobretudo na perspetiva individual ao descrever o modo como o fenómeno afeta o corpo, a existência e o mundo de cada ser humano, num equilíbrio entre o individual e o universal (Husserl, 2017). O fenómeno não é neutro para o ser humano e acarreta uma série de constructos mentais inconscientes, que só por força de evocação intencional submergem na palavra, dando voz ao fenómeno em estudo. Logo, o foco foram as experiências humanas circunscritas numa determinada situação e moldadas por um contexto único, o SU, onde os enfermeiros são atores e co-construtores de um fenómeno no processo de saúde-doença, o cuidado à família da PSC, que interessa conhecer na essência das suas dimensões constituintes para melhor cuidar.
Questão de investigação
Qual a experiência vivida dos enfermeiros no cuidar da família da pessoa em situação crítica no serviço de urgência?
Metodologia
Na investigação qualitativa, o investigador procura apreender o objeto de investigação de forma holística, considerando a sua totalidade, as suas particularidades e o contexto do fenómeno (Creswell, 2013). Ao considerar a subjetividade da experiência vivida, assume-se uma compreensão mais lata das vivências humanas, suportada pelo raciocínio indutivo. A fenomenologia enquanto abordagem metodológica permite à enfermagem conhecer a realidade além do visível, percebendo o que significa vivenciar um determinado fenómeno (Moxham & Patterson, 2017). A fenomenologia permite dar resposta à questão de investigação, acedendo à experiência vivida dos enfermeiros, partindo do cuidado como é vivido e se estrutura moldando a prática.
Adotou-se a perspetiva fenomenológico descritiva de Van Kaam (1959), que procura capturar a essência da consciência em si mesma antes da conceção teórica do indivíduo sobre a experiência. Assim, desenvolve a capacidade preceptiva dos indivíduos, focando a sensibilidade das relações humanas numa situação concreta em que é importante compreender as formas de participação e suas vivências.
As fontes de narrativas na área da saúde podem ser as mais variadas e ao serem proferidas com uma voz na primeira pessoa expressam sentimentos, autoconhecimento e desejos terapêuticos perante a situação pré-refletida (Creswell, 2013). Os participantes deste estudo foram onze enfermeiros, pertencentes todos à mesma unidade hospitalar, que cumpriam os critérios de inclusão definidos: exercer num SU; ter vivenciado uma experiência significativa de cuidar de família de PSC; possuir aptidões internas para a descrição do fenómeno; e aceitar a participação voluntária no estudo. Os critérios de exclusão abrangiam os enfermeiros que não estavam alocados à prestação direta de cuidados de enfermagem, desempenhando sobretudo funções de gestão no SU. A seleção dos participantes foi realizada segundo o método de amostragem não probabilística, de conveniência (Streubert & Carpenter, 2013), em que todos foram informados dos objetivos do estudo e da possibilidade de desistência do mesmo em qualquer das suas etapas. Obteve-se o parecer favorável da Comissão de Ética (n.º 2923) e a autorização do Conselho de Administração do centro hospitalar, respeitando-se os pressupostos éticos ao longo da investigação.
No primeiro semestre de 2019, foram realizadas entrevistas em profundidade com a duração média de 60 minutos, não tendo existido uma restrição formal no tempo disponível, num local à escolha dos participantes. A maioria dos entrevistados selecionou uma sala privada dentro da unidade hospitalar, onde foi feito o convite aos participantes para responderam à seguinte questão: “É capaz de me contar uma situação, que tenha sido significativa para si, de cuidar da família da pessoa em situação crítica?”. Ao colocar esta questão aberta pretendeu-se aceder a um momento específico do tempo interno do indivíduo no qual estão presentes as retenções e antecipações dos processos pré-conscientes da experiência (Husserl, 2017). Logo, pretendeu-se que o fenómeno experienciado fosse explorado em profundidade, permitindo que os participantes percorressem livremente a experiência vivida até que a essência da estrutura fosse totalmente iluminada. Recorreu-se a um Diário de Viagem do investigador enquanto fiel memorando dos aspetos contextuais e de interação entre o entrevistador e entrevistado, como a linguagem não verbal do entrevistado e as perceções do investigador, permitindo uma compilação e aferição de dados, na medida em que o que não é verbalizado pode ser tão significativo para a compreensão do fenómeno como o que o é.
Após a recolha de dados, procedeu-se à transcrição na íntegra da gravação áudio das entrevistas. Foi realizada a codificação dos entrevistados, de P1 a P11, e das variáveis sociodemográficas (sexo, idade, habilitações literárias, estado civil e familiar). Na análise dos dados, realizada por dois investigadores, utilizaram-se as etapas processuais do método de Van Kaam Modificado por Moustakas (1994): 1) Listagem e Agrupamento Preliminar: Horizontalização; 2) Redução e Eliminação; 3) Categorização e Tematização dos Constituintes Invariantes; 4) Identificação Final dos Constituintes Invariantes e Temas pela Aplicação: Validação; 5) Construção de Descrição Textural Individual; 6) Construção de Descrição Estrutural Individual; e 7) Construção de Descrição Estrutural-Textural: Descrição Composta. O método, apesar de assente numa abstração pura e transcendental, procura um saber racional e focado na complexidade da realidade, através de um retorno sistemático às narrativas como forma de estruturação e validação dos achados, alicerçando os significados no discurso dos participantes (Moustakas, 1994). Todas as dimensões do fenómeno foram discutidas por ambos os investigadores até ao consenso. A leitura e releitura das entrevistas, entrecruzando os constituintes que emergiam dos dados, permitiu alcançar a estrutura essencial do fenómeno.
Resultados
A narrativa experiencial encontra-se repleta de descrições da vivência emocional de situações limite e complexas pelos enfermeiros. Os dados mostram que as situações relatadas pelos enfermeiros, como significativas de cuidar da família da PSC, envolvem maioritariamente jovens adultos em fim de vida, devido a um acontecimento súbito de origem traumática, tais como acidentes de viação, quedas e atos de violência com trauma perfurante, por exemplo, por arma de fogo.
Nos participantes entrevistados verifica-se um equilíbrio do sexo feminino (45%) e masculino (55%), a média de idade é de 34 anos, com uma média de 11 anos de experiência profissional. A maioria possui habilitações académicas ao nível pós-graduado (especialidade, mestrado e pós-graduação; 82%). Relativamente à situação familiar, a maioria estão casados ou em união de facto (64%) e têm filhos (73%).
A compreensão da estrutura essencial do fenómeno desoculta uma descrição composta da experiência vivida dos enfermeiros constituída por 8 dimensões: 1) “Sentir-se responsável”; 2) “Acolher, inicialmente, a família”; 3) “Hospedar a família no serviço de urgência”; 4) “Estar, plenamente, presente”; 5) “Aconchegar no sofrimento”; 6) “Dançar, com a família, numa situação-limite”; 7) “Confortar, pautadamente, com a informação”; e 8) “Deixar-se tocar, com cuidado, pela vivência da família”.
A descrição composta do fenómeno, de acordo com Moustakas (1994), deve ser apresentada de forma gráfica. Assim, através de uma figura geométrica, apresentam-se as oito dimensões essenciais e estruturais da descrição composta do fenómeno, evidenciando a forma como estão interligados e ilustram em si a essência do fenómeno de cuidar da família da PSC no SU, na perspetiva do enfermeiro (Figura 1.).
Assim, a descrição composta do fenómeno engloba estas oito dimensões da experiência, surgindo como coexistentes no mesmo tempo e espaço, tendo igual significação para os enfermeiros e sendo parte integrante do mesmo fenómeno.
Discussão
A família, o enfermeiro e a PSC são elementos centrais da existência do fenómeno e apesar da fugacidade dos momentos que vivem juntos, neste encontro terapêutico estão envoltos numa esfera de tempo, pois o tempo abranda e fá-los vivenciar esta experiência de forma singular. O tempo é um fenómeno imaterial, pois o ordenamento temporal é uma experiência sincronizada com a consciência e os estados emocionais, ora apreendido perpetuamente pela experiência vivida ora pela inteligibilidade (Marcel, 2013), enquanto realidade distinta e paradoxal do meio englobante, infinito e universal. A temporalidade subjetiva traduz a experiência do tempo à luz da interioridade do ser (Van Kaam, 1959), englobando os pensamentos, sensações, perceções e sentimentos no momento da vivência. Estas influenciam a própria vivência do tempo na situação particular, dando aos intervenientes uma sensação de mestria das propriedades do próprio tempo. Seguidamente, exemplificam-se as diferentes dimensões do fenómeno através de excertos ilustrativos provenientes das narrativas dos enfermeiros.
A dimensão Sentir-se responsável emerge quando os enfermeiros narram um ímpeto para ir ao encontro da família em sofrimento.
Não era uma situação nada fácil . . . Entretanto, lembrei-me dessa solução de trazer a filha para junto do doente, pois os minutos, não os segundos, passavam. E o estado do doente estava a deteriorar-se ali, a olhos vistos, mesmo à nossa frente. Senti que tinha que fazer algo! (P11)
O sentido de dever profissional e moral na impossibilidade de não agir e a ambivalência face aos desafios surge na resposta ao apelo do outro para a ação ética (Levinas, 2011). Nesta dimensão do fenómeno emerge um sentimento de dever de ajudar aquele que sofre.
Na sala de reanimação, na abordagem inicial, a família não entrou e ficou lá fora. Disse às filhas e à neta para se sentarem que assim que possível já lhes ia dar alguma informação, mas dizer isto é o quê? Para quem está ali com o coração nas mãos. Sem saber o que se está a passar . . . assim que consegui fui logo ter com elas, pois só imaginava o que estariam a passar. (P10)
De um ponto de vista deontológico e ético, a família tem que ser incluída como parte integrante da humanização do cuidado de enfermagem (Shajani & Snell, 2019), pois não se trata meramente de um alargar da esfera de cuidado, mas sim um olhar direcionado para a família como parte integrante dessa mesma pessoa e foco do cuidado de enfermagem.
A dimensão Acolher inicialmente surge porque a família vivencia um evento de vida inesperado, que a leva a se dirigir ao SU, onde contactam com os enfermeiros que cuidam do seu ente querido numa situação limite.
A senhora vem para aqui completamente sozinha, sem saber nada, sem saber do filho, como é que ele estava, se estava vivo, se estava morto . . . Chegou aqui num pranto e não conseguia sequer falar . . . mas levei-a para a sala, disse-lhe que o filho estava estável e que já o iria ver, até lhe dei um copo de água. (P2)
O acolhimento em enfermagem permite o início da relação interpessoal, sendo mediado pela escuta ativa e diálogo (Costa et al., 2016). As famílias entram no SU em busca do seu ente querido, frequentemente ansiosas, procurando informação sobre o seu estado e expressando desejo de o ver.
Quando a filha cá chegou (SU), dirigiu-se a mim, agarrou-me as mãos e disse-me logo que queria ver a sua mãe. Estava muito ansiosa e preocupada. E a doente estava em suporte ventilatório e circulatório para colheita de órgãos… Por isso, foi muito complicado gerir toda aquela situação, mas apresentei-me e depois levei-a para a sala onde comecei ali com ela no ponto onde tinha ficado com a sua mãe na última vez que a viu . . . antes do atropelamento. (P1)
O acolhimento como um cuidado de enfermagem permite ao enfermeiro receber a família de forma humanizada, entendendo-a como sujeito e participante do processo de cuidar, ampliando a qualidade do cuidado (Costa et al., 2016). Os enfermeiros são os profissionais de saúde na primeira linha de ação, com quem a PSC e a sua família contactam primeiro, portanto, os responsáveis pela manifestação do acolhimento neste contexto.
A dimensão Hospedar no SU revela-se porque a hospitalidade distingue-se do acolhimento na medida em que hospedar o outro implica um conjunto de ações concertadas a prolongar no tempo a presença confortável do outro, tornando-o parte integrante da cultura do contexto. ”Os pais puderam estar sempre presentes e foi-lhes dada a possibilidade de estarem sempre próximos do seu filho. Pus lá umas cadeiras, na reanimação, que fui buscar, e portanto, mantiveram-se sempre ali junto ao filho.” (P4).
Os enfermeiros procuram criar um lugar para a família, para que esta se sinta confortável, depois de ter sido acolhida. É a hospitalidade que surge habitualmente no momento de maior tensão e sem ser convidada, “Quando uma pessoa experiencia uma perda profunda, o seu estar essência-alma, está perturbado e precisa ser cuidado e alimentado.” (Watson, 2002, p. 151), o que coloca a família da PSC numa posição que requer esta hospitalidade de enfermagem.
Ao início, a única coisa que pude oferecer foi uma cadeira para estar ali junto ao doente. E também baixei a cama até ao mínimo possível para o filho poder estar ali ao mesmo nível e ficarem de mãos dadas. Depois acabei por transferir o doente para a cama X, que fica num canto da sala, com um pouco mais de espaço e privacidade. Permite também puxar completamente as cortinas e as pessoas ficarem ali mais resguardadas naquele momento, com menor interferência do resto da dinâmica do serviço. E com o passar das horas, pois estas situações críticas, por vezes, arrastam-se no tempo, lá arranjei então ao filho um dos nossos cadeirões para poder passar aqui a noite com o pai. (P5)
O ser humano possui a infinita responsabilidade de acolher o outro vulnerável (Levinas, 2011), pelo que os enfermeiros na sua senda de cuidar da família, sentem-se impelidos a hospedar a família em sofrimento.
O pai entrou para a visita, mas a mãe e o irmão foram logo barrados à porta pelo segurança. Eu é que fui à porta buscá-los, para poderem entrar os três. Tive que arranjar o espaço para poderem estar os três ali junto à maca do doente. Fechei as cortinas da unidade e criei um ambiente mais acolhedor. Recordo que foi um grande choque para a família ver o jovem assim na maca Stryker, com o compasso craniano, e tudo o resto . . . mas assim todos juntos puderam apoiar-se . . . Ainda baixei a grade da cama só para estarem um bocadinho mais próximos e para poderem dar um beijo na face. (P9)
A gestão eficaz destas visitas inesperadas num contexto tão exigente tem um impacto relevante em toda a equipa transdisciplinar (Sweet & Foley, 2019). Tal requer a criação de condições, essencialmente físicas (Barreto et al., 2019), mas não somente, para a família exercer o seu direito de acompanhamento.
A dimensão Estar, plenamente, presente para as famílias emerge nas narrativas dos enfermeiros.
Por isso quando estava ali com o familiar do doente sentia que estava a 100%. E estava ali só para ele! Aliás uma das coisas que fiz questão de dizer foi: “Agora estou consigo e só consigo! É só para si! E vou-lhe explicar as coisas todas e vai dizer-me o que precisa da minha parte.” (P3)
O modo de ser presente surge na obra de Marcel (2013) associado à proximidade física e o autor distingue-o do estado de estar presente, pois este último não pressupõe o anterior. O estar presente implica uma forte conexão e consciência de presença para com alguém, frequentemente através da comunhão e disponibilidade para com o outro. Neste registo, as experiências dos outros são significativas para o ser e moldam a sua existência, pelo que o enfermeiro procurar apoiar plenamente e demonstrar total disponibilidade para aquela família naquele momento significativo.
Ninguém estava à espera deste desfecho . . . E tentei dar algum apoio à família. Perguntei aos pais: “Então, não têm ninguém da vossa família ou amigos que possam vir aqui, estar convosco agora?” Recordo perfeitamente que perguntei umas dez vezes se precisavam de mais alguma coisa, se não queriam ligar a mais alguém da família . . . e eles sempre a dizer que não. E eu recordo-me aí da serenidade dos pais e que fiquei ali, em silêncio, junto a eles. (P7)
A presença da família no SU é percebida pelos profissionais enquanto positiva pelos benefícios que daí decorrem para os doentes e a própria família, como maior tranquilidade, segurança, confiança e conforto (Barreto et al., 2019), pelo que os enfermeiros procuram dar de si à família, dar do seu tempo às famílias. Emerge a dádiva de si ao outro para construir e criar tempo para a relação, conseguindo assim estar presente para o outro (Marcel, 2013). Destaca-se o cariz transcendental, pois os enfermeiros sentem que estão plenamente presentes para as famílias, mesmo quando fisicamente não estão a totalidade do tempo junto a elas. Também aqui a esfera tempo, em que se constrói e molda a relação desta presença terapêutica de enfermagem importa analisar na medida em que não limita, mas pelo contrário, expande a relação em intensidade.
A dimensão Aconchegar no sofrimento a família surge associada à situação crítica do ente querido, perante a imprevisibilidade e o risco da finitude da vida.
Recordo perfeitamente aquela mãe e o seu sofrimento! Sinto que consegui estabelecer uma relação única com aquela mãe, tanto que naquele momento da morte do seu filho ela pediu-me . . . um bocadinho de cabelo do seu filho. E eu estendi a minha tesoura para lhe dar, porque a mim também me estava a custar muito toda aquela situação. E ela pediu-me para ser eu a cortar... E disse-me: “Eu tenho o cabelo dele guardado de quando ele nasceu e agora graças a si também tenho comigo o de quando ele morreu”. Abracei-a enquanto chorava . . . Foi um momento muito emotivo! (P4)
O sofrimento não afeta somente a pessoa doente, pois a doença de um membro torna-se um assunto de família (Shajani & Snell, 2019) e a família sofre com ela. Na sala de emergência a família vivencia sentimentos como incerteza, angústia, medo e pesar (Barreto et al., 2019), que expressam o seu sofrimento face à situação.
Naquele momento, apercebi-me no olhar dela (filha), daquele cair da ficha de que a situação é irreversível e não se pode fazer mais nada . . . Olhou para mim e perguntava: “Mas porquê? Porque é que isto aconteceu?” e chorava agarrada a mim. Recordo aquela mágoa, aquele sofrimento . . . Tentei dar algum conforto e ela libertou algumas coisas que tinha para dizer, desabafou. (P5)
A morte súbita dificulta o processo de luto familiar na medida em que o sistema familiar não teve tempo para se preparar para a perda, lidar com assuntos pendentes e /ou despedir-se da pessoa (Kreuz & Netto, 2021). O estabelecer de uma relação terapêutica, descrita pelos enfermeiros como uma interação significativa com o elemento da família, torna-os elementos de referência para aquela família e permite-lhes aconchegá-la na sua vivência de sofrimento.
A dimensão Dançar, com a família, numa situação limite acarreta um compasso de espera, entre exames complementares de diagnóstico e a observação por diversas especialidades médicas, até ao tão aguardado diagnóstico e, sobretudo, prognóstico.
A situação era a vinda dos filhos do estrangeiro. Então o difícil foi o manter aquela senhora ali na sala de reanimação connosco o máximo de tempo possível, depois de tudo o resto que tinha ainda que fazer, como deve calcular, até à chegada dos vários filhos para se despedirem da mãe. E a senhora acabou por falecer, mesmo quando chegou o último filho . . . impressionante! (P3)
Neste compasso, os enfermeiros gerem os recursos disponíveis de forma a dar resposta às várias necessidades da família (Hsiao et al., 2017). O enfermeiro e a família dançam na expetativa de um desfecho positivo, movidos pela esperança.
E eu assumi a situação e disse: “Venham, não há problema nenhum”, sabendo que teria que gerir as condições para que tal acontecesse. E então fui eu que estive ali mais de três horas com a família e amigos, num processo de cuidado, com eles a limparem, a conversarem, a lerem-lhe livros, a virá-lo, inclusive… fizeram questão de fazer rigorosamente tudo e estarem sempre com ele. (P6)
Os enfermeiros tomam decisões que promovem a humanização do processo de cuidar e da morte no SU (Berbís‐Morelló et al., 2019), envolvendo a presença da família. A metáfora da dança pretende ilustrar a relação dual entre enfermeiro e família, conduzida pelo enfermeiro, enquanto ambos procuram percorrer um tempo e um espaço necessário ao desenrolar da ação.
A dimensão Confortar, pautadamente, com a informação surge porque a família da PSC tem necessidades específicas, sendo uma das necessidades mais emergentes a de comunicação (Hsiao et al., 2017; Yildirim & Özlü, 2018). Na transmissão de informação é realizada a articulação com outros profissionais, responsáveis pelo diagnóstico e prognóstico da situação, nesse âmbito o enfermeiro advoga pela família ao mediar e ao apresentar de forma individualizada a família junto da restante equipa de profissionais de saúde.
Estive bastante tempo a conversar com a família, no fundo a ajudá-los a perceber melhor tudo o que se estava a passar . . . Consegui perceber que no final ficaram mais confortados e disseram-me que não se sentiam abandonados . . . não esqueço os seus rostos . . . ficaram mais tranquilos . . . também o choro vai-se dissipando e a pessoa fica mais calma. (P2)
Oferecer informação à família é relevante para a desconstrução mental do motivo que levou à ida ao SU, aceitação do processo de doença e para a progressiva construção de um prognóstico de situação crítica (Barreto et al., 2019). Num processo, em que a família sofre com a doença crítica do seu ente querido, a informação veiculada surge como uma estratégia portadora de sentido para a situação vivenciada.
Aqueles pais chamaram-me em grande aflição. Os pais não percebiam o que era estar inconsciente e depois não têm aquela noção se tem dor ou se está sedado, não é? No fundo também são nossas essas preocupações . . . e até o estar ventilado é assim um misto de questões, porque se vai morrer porque é que tem uma máquina a respirar por ela? É complicado responder a estas questões, sem dúvida . . . preocupam-se com o facto da sua filha poder estar a sofrer. E portanto, quando falo com eles, percebo claramente que é uma conversa de conforto para eles, são essas as palavras de conforto que eles entendem. Têm essa necessidade de saber que tudo o que é humanamente possível está a ser feito. (P7)
A comunicação eficaz com a família permite diminuir o seu sofrimento, porque clarifica a compreensão da situação, fornece suporte emocional e reduz a ansiedade (Shajani & Snell, 2019). Através da comunicação terapêutica, os enfermeiros procuram apaziguar o sofrimento da pessoa e deste modo, a família também consegue perceber a qualidade do cuidado que o seu ente querido está a ser alvo e de todas as diligências não visíveis que compõem esse cuidado complexo.
A dimensão Deixar-se tocar, com cuidado, pela vivência da família emerge quando o enfermeiro sofre com o outro, partilhando da dor vivenciada pelas famílias, pois “o enfermeiro, através do cuidar transpessoal e das transações do cuidar, pode entrar no relacionamento intensamente pessoal - subjetivo com a pessoa desgostosa - pessoa para pessoa - abraçando, segurando, partilhando a dor.” (Watson, 2002, p. 150). Deste modo, o enfermeiro vive a situação conjuntamente com a família, sentindo a tristeza, a revolta e a impotência face à situação crítica.
Eu realmente emociono-me e ponho-me naquela situação, e penso, nestas pessoas, as filhas e a neta, que vão-se embora e provavelmente não vão ver mais a senhora. E o que é certo, é que eu saí de turno e realmente a senhora por volta das duas da manhã faleceu. Eu lembro-me de estar a falar com elas e a pensar que a neta parecia gostar mesmo da avó e ser mesmo importante para ela. Lembro-me de estar a pensar, que eu estava a dizer-lhe: “Cada caso é um caso, que é tudo muito imprevisível nesta fase final”, mas se calhar aquilo era mesmo a despedida, não ia voltar a vê-la . . . É triste para nós, porque nós também temos família e também temos pessoas significativas para nós. (P10)
A ausência da família no SU também é um aspeto descrito como parte de uma situação marcante para alguns dos enfermeiros. As aprendizagens realizadas com base no testemunho da dor e do sofrimento de outras famílias potenciam a transferência e contratransferência das mesmas para o seu domínio pessoal familiar.
Na doença mental normalmente a gestão da doença é feita pela família, porque a doente está sem crítica nenhuma para a doença . . . por isso custa quando a família não está presente. No fundo, ela não tem ninguém . . . A ausência da família faz-me pensar na vida e na importância da família. (P8)
Os enfermeiros escutam também os ensinamentos de vida das famílias que cuidam, assim sentem que aprendem com as famílias, o que está relacionado com a característica da presença do reconhecimento da relevância da experiência do outro para o ser (Marcel, 2013). O sentido do sofrimento e da morte coloca aos enfermeiros questões profundas sobre o próprio sentido da sua vida e da sua vivência em família.
A análise da dimensão universal da experiência vivida permite um novo olhar sobre a construção descritiva composta, pois da reflexão fenomenológica, ancorada nas várias dimensões do fenómeno, emergem significados para a esfera de ação da enfermagem. O referencial teórico de Van Kaam (1959) advoga que a consciência humana é no mundo o resultado da direção e intencionalidade no encontro com o Outro, que o estudo desoculta na complexidade da relação profissional enfermeiro-família e na ênfase na comunicação eficaz, usando diversas estratégias. O estudo revela ainda que a maioria das situações envolvem a presença da família na sala de reanimação, onde habitualmente não se realiza o acompanhamento familiar, por isso surge também o cuidado dos enfermeiros em encontrar um local onde se possa conversar, habitualmente, uma sala para realizar uma conferência familiar.
Os achados deste estudo brotam do contexto, o que pode ser uma limitação na medida em que os resultados são válidos apenas para o contexto onde decorreu a investigação, contudo tal decorre do tipo de estudo, que procura sobretudo desocultar um fenómeno que interessa aprofundar para melhor cuidar.
Conclusão
O estudo permitiu revelar a descrição composta do fenómeno que é constituída por oito dimensões que permitem dar visibilidade aos significados na vivência dos enfermeiros do processo de cuidar de famílias da PSC no SU. Da reflexão fenomenológica emerge: a importância do desenvolvimento de competências de comunicação terapêutica com a família da PSC, o que impele a melhoria contínua do ensino e formação em enfermagem; a presença da família em situações de reanimação, que requer maior investigação a nível nacional; e a necessidade de conferências familiares, que mobiliza recursos humanos e materiais na área da gestão do próprio contexto para suportar a prática clínica. O conhecimento gerado através da abordagem fenomenológico-descritiva permitiu ampliar a compreensão da experiência vivida dos enfermeiros no cuidado à família no SU com potencial benefício para outras famílias, enfermeiros e profissionais de saúde. Sugere-se ainda a realização de estudos sobre o acompanhamento familiar no SU, considerando as atuais políticas em saúde.