Introdução
Tornar-se mãe de um segundo filho, enquanto fenómeno de transição na parentalidade, representa um período de maior vulnerabilidade e de (trans)formação da pessoa, enquanto “ser-no-mundo” (Heidegger, 2005; Watson, 2012), no encontro da sua nova identidade e do seu (re)equilíbrio (O’Reilly, 2004; Guarda-Rodrigues & Rebelo-Botelho, 2021).
Em Portugal, embora em média, a fecundidade desejada se situe nos 2,3 filhos, a fecundidade intencional encontra-se nos 1,8 filhos (Instituto Nacional de Estatística & Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014), sendo que a fecundidade realizada, efetivamente, se situa num único filho (Instituto Nacional de Estatística, 2020). Esta realidade deixa transparecer que a transição na parentalidade consubstanciada com a presença do segundo filho, embora desejada pelos portugueses, dê sinais de ser, cada vez mais, difícil de alcançar, podendo, inclusive, vir a comprometer a renovação da população, situada nos 2,1 (Instituto Nacional de Estatística & Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014).
Apesar da transição na parentalidade, inerente ao nascimento de um segundo filho, contemplar um processo complexo, com potenciais modificações nos padrões de interação previamente estabelecidos, que traz desafios para todos os subsistemas e intervenientes, parece ser sentido com forte intensidade na relação com a mãe (Brazelton & Sparrow 2006; Piccinini et al., 2007).
Ao tornar-se mãe pela segunda vez, a mulher, para além de experienciar as questões que afetam uma mulher quando é mãe pela primeira vez, como a redefinição de papéis, rotinas e relacionamentos, é confrontada com problemas específicos deste período do ciclo vital, na medida em que à singularidade de cada bebé se liga um momento particular da vida da mulher, que precisa de se tornar mãe de um novo ser e acolher cada criança na sua própria vida e na da família (Krieg, 2007; Mercer, 2004). O ajustamento inerente ao crescimento e à transformação (Mercer, 2004) que a vivência desta transição na parentalidade requer ao ser da mulher, que sendo mãe pela segunda vez, necessita de (re)nascer e (re)começar de novo, pode ser muito exigente, desgastante, caótico e levar à exaustão. Mais, pode ter implicações na saúde e bem-estar da mulher (Krieg, 2007; Vivian, 2010), face à necessidade de se adaptar ao seu novo papel e à nova identidade do seu ser (O’Reilly, 2004), como também, gerar novas tensões no relacionamento conjugal e/ou familiar (Vivian, 2010), bem como no desenvolvimento físico e emocional saudável da(s) criança(s) (Krieg, 2007). Acresce ainda que o nascimento de um segundo filho dá origem à fratria e pode também despoletar conflitos de papel e intrageracionais, na medida em que torna as relações mais complexas (Krieg, 2007; Vivian, 2010).
Todavia, encontrando-se atualmente esta transição pouco investigada (Krieg, 2007; O’Reilly, 2004), nomeadamente em Portugal (Rodrigues & Velez, 2018), torna-se relevante aceder ao sentido atribuído à experiência vivida da mulher que se torna mãe pela segunda vez, de forma singular e conforme é vivida.
Face ao exposto foi definido como objetivo do estudo: compreender, a partir do ponto de vista da mulher, o sentido da experiência vivida de se tornar mãe de um segundo filho.
Enquadramento
A mulher, que é pessoa, um “ser-no-mundo” (Heidegger, 2005; Watson, 2012), um ser humano de horizontes temporais, que sendo-e-estando-no-mundo-com-os-outros, mais concretamente com o outro - com o seu ente especial, que é o seu segundo filho -, vive quotidianamente, num percurso transitivo, complexo, vivido, de transformação, em que se torna mãe (Mercer, 2004; Vivian, 2010).
Tornar-se mãe, embora possa ser um acontecimento de vida previsível, implica reorganização e adaptação devido a todas as mudanças que lhe estão associadas (Mercer, 2004), sendo um fenómeno que vai muito mais além da maternidade enquanto ato de se ser progenitora.
A transição é, neste contexto, considerada como uma passagem de uma fase, condição ou estado para outros, podendo traduzir uma mudança no estado de saúde, nas relações de papel, nas expectativas ou competências, significando uma mudança nas necessidades de todos os sistemas da pessoa humana (Chick & Meleis, 1986).
Sendo a parentalidade considerada uma transição, a presença de um segundo filho emerge enquanto uma transição na parentalidade (Guarda-Rodrigues & Rebelo-Botelho, 2021), que envolve o conhecimento e a aquisição de habilidades (O’Reilly, 2004).
Embora a transição para a parentalidade pela primeira vez tenha sido investigada, nomeadamente por enfermeiros, em Portugal, tal como a nível internacional, tem sido desenvolvida investigação no âmbito da transição para a parentalidade e do exercício do papel maternal/paternal, sem que o foco incida sobre a transição vivida com o nascimento do segundo filho (Rodrigues & Velez, 2018; Rodrigues & Rebelo-Botelho, 2020).
Em 2018, na revisão scoping publicada por Rodrigues e Velez, com os objetivos de identificar e mapear a evidência científica disponível sobre a transição da mulher ao tornar-se mãe de um segundo filho foram identificados 9 estudos que foram publicados entre 1997 e 2013, não tendo nenhum deles sido realizado em Portugal. Num desses estudos, a transição é caracterizada, pelas mulheres participantes, pela procura de um novo equilíbrio, tendo emergido sete temas como elementos comuns às suas vidas: “1) equilibrando os elementos positivos e os negativos das primeiras semanas; 2) sabendo o que esperar; 3) estabelecendo uma nova rotina; 4) mantendo a relação conjugal; 5) fazendo uma pausa; 6) procurando suporte; e 7) nutrindo os relacionamentos entre os membros da família” (O’Reilly, 2004, p.455). Nos restantes estudos identificados nessa revisão emergem sobretudo questões de género e conjugalidade e em apenas num dos estudos o enfoque é dado à licença parental.
Estes estudos reforçam a necessidade de compreender de modo aprofundado e na perspetiva da mulher o fenómeno humano, tornar-se mãe pela segunda vez, para que possam ser encontradas formas de cuidar centradas na pessoa e que atendam à sua complexidade, bem como à sua singularidade.
Questão de investigação
Qual é o sentido da experiência vivida da mulher ao tornar-se mãe de um segundo filho?
Metodologia
O presente estudo adota uma metodologia qualitativa, de desenho fenomenológico hermenêutico. A colheita de dados foi realizada em duas creches privadas de Leiria, Portugal.
O material experiencial foi recolhido a partir de entrevistas fenomenológicas, com a duração aproximada de sessenta minutos, a 11 mulheres, com um segundo filho, de idade compreendida entre os 18 e os 24 meses de idade. As participantes que preenchiam os referidos critérios de elegibilidade, e com interesse em participar no estudo, foram identificadas conjuntamente pela direção das creches e pelas educadoras. As 11 mulheres, participantes no estudo, tinham entre os 26 e 43 anos de idade, coabitavam com o seu companheiro, que era do sexo masculino e o pai dos seus dois filhos. Apenas o companheiro de uma das participantes tinha dois filhos de relações anteriores, que não coabitavam diariamente com o casal. As participantes trabalhavam a tempo inteiro, com exceção de uma das mulheres, que não trabalhava, mas estudava. O intervalo de tempo entre o nascimento dos filhos variou entre os 21 meses e os cinco anos.
Foi efetuado um convite por escrito e combinado o momento e local da entrevista. O investigador teve treino prévio à realização das mesmas.
Tendo sempre em mente a intenção fenomenológica deste momento, bem como a questão principal da pesquisa, as participantes foram convidadas a descreverem uma experiência significativa e concreta, uma situação, um episódio, um evento ou momento particular que para elas tivesse sido significativo na experiência de se tornarem mães de um segundo filho. Para além da descrição do que aconteceu foi-lhes solicitado que descrevessem o que faziam, disseram e sentiram naquela situação, nomeadamente em relação ao corpo, ao espaço, ao tempo, às coisas e aos outros (van Manen, 1997, 2014). As entrevistas foram gravadas em suporte áudio e transcritas com o intuito de uma análise detalhada dos relatos. Foram também realizadas notas de campo através de um bloco de notas, que foram associadas às respetivas entrevistas.
As atividades desenvolvidas no processo de análise de dados tiveram em consideração as orientações de van Manen (1997, 2014). Assim, depois de reunido o material experiencial, seguiu-se um momento de familiarização, com imersão no fenómeno em investigação (van Manen, 1997, 2014). Posteriormente, deu-se início à edição do material e à construção do texto narrativo de modo a tornar compreensível algo que poderia eventualmente passar despercebido.
Após a leitura e releitura foram isolados os temas, ou estruturas experienciais, inerentes ao fenómeno em estudo.
Para a construção dos temas recorreu-se também à análise colaborativa (van Manen 1997), onde participaram orientadores, docentes e investigadores especialistas em enfermagem pertencentes à área de investigação Experiência Vivida e Epistemologia.
Após a imersão nos temas essenciais, procurou-se descrever o fenómeno através da arte da escrita e da reescrita, estando sensível aos subtis caminhos da linguagem (van Manen, 1997).
O protocolo de investigação foi analisado pela Comissão de Ética da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa (n.º 817/2016) e pela Comissão Nacional de Proteção de Dados (n.º 4156/2016), tendo sido obtidos pareceres favoráveis para a realização do estudo. Foram também solicitados os consentimentos informados das direções das creches e das participantes do estudo. Para assegurar o anonimato e a confidencialidade dos dados, foram utilizados pseudónimos para todos os nomes referenciados.
Resultados
O sentido atribuído à experiência vivida da mulher ao tornar-se mãe pela segunda vez é marcado por um conjunto de temas essenciais: 1) O momento da decisão; 2) O momento do nascimento: do encontro e do (des)encontro com o outro ao (re)nascer da identidade familiar; e 3) O momento do regresso a casa e ao quotidiano: é tudo muito . . . preciso de mais . . . Momentos que revelam um percurso que ocorre ao longo do tempo e que retratam a diversidade da experiência humana.
Neste artigo é apresentado o tema, O momento do nascimento, e as suas variações temáticas: Era só eu e ele; Encontro(s) e (des)encontro(s) entre irmãos; e Nós somos quatro: a família como um uno.
“Era só eu e ele” - O encontro entre a mulher e o segundo filho, ocorrendo no momento do nascimento, é retratado pelas participantes, como um momento íntimo, de encantamento, de cumplicidade, emocionalmente intenso, apresentado como “só eu e ele”, um momento singular, distinto de outros vividos com o primeiro filho, tal como narram Rosa (E3) e Carolina (E4), respetivamente.
Fiquei muito feliz, chorei . . . foi muito bom. . . . No segundo filho, todo o percurso foi importante, mas de facto, o nascimento, foi vivido de outra forma. Completamente diferente. Muito mais sereno, muito mais tranquilo, muito mais . . . emotivo. Rosa (E3)
Carolina (E4), inclusive, reportando-se ao momento imediatamente após o parto, refere como, aos seus olhos, viu o seu segundo filho lindo e perfeito, como se sentiu plena, totalmente preenchida, completamente apaixonada. Aquele era, então, para aquela participante, um momento que era só deles, daqueles dois seres.
O mais importante, foi mesmo o nascimento dele . . . o facto . . . de o expelir, de o ter, no primeiro filho eu não conseguia, não saía. . . . senti-me muito emocionada, chorei de alegria . . . . Não conseguia tirar os olhos dele. . . . Era só eu e ele . . . . Foi bom, sermos só nós. Realmente, se estivesse mais alguém, se calhar, estragaria alguma coisa. Foi perfeito. Carolina (E4)
Embora a experiência do encontro seja narrada pelas participantes como um momento repleto de amor, um fenómeno emocional intenso e profundo, Carolina (E4) fala-nos de como, antes do nascimento, se interrogava, se inquietava sobre a sua capacidade para amar o segundo filho, tal como amava o primeiro, com quem já tinha uma experiência carregada de sentido(s). Contudo, Carolina (E4), Alice (E7) e outras participantes referem que, no agora, gostam de ambos, mas de maneira diferente.
O primeiro filho . . . é tudo para nós. E não sabia se ia amar da mesma forma o segundo, como eu amo o primeiro. Quando o Frederico [segundo filho] nasceu . . o primeiro filho já tem toda uma experiência . . . E, no entanto, quando ele nasceu [o segundo filho] . . . foi tudo tão diferente e foi tudo tão bom igual e . . . efetivamente o amor . . . foi igual, foi um arrebate total quando pus os olhos nele. Carolina (E4)
“Pode-se gostar de maneira diferente, porque eles são diferentes, mas… aquela emoção que se tem com o primeiro filho, despertam-me a mesma emoção como no segundo, de maneira diferente” Alice (E7).
Estas mulheres realçam, deste modo, um amor que se mostra de uma outra maneira, mas com o mesmo sentido.
“Encontro(s) e (des)encontro(s) entre irmãos” - O primeiro encontro entre os dois filhos é, amplamente, um momento de encontro na ternura e no amor. É também um encontro esperado e preparado, mas acima de tudo é um encontro quotidiano em que a afetividade e o amor crescem e (trans)formam o outro. Sofia (E6) apresenta um momento de manifesta felicidade, um “dos momentos mais felizes da sua vida”, ao observar o primeiro encontro dos seus filhos, ainda no hospital, pouco tempo após o nascimento do seu filho mais novo. Um momento em que a sua primeira filha acolhe o irmão, em que “queria tudo” com o irmão.
Ver a minha filha chegar ao hospital . . . olhar para aquela coisa pequena… Ela sentou-se . . . pus o Lourenço na caminha e ela assim ficou ao pé dele. Tocou muito, primeiro era assim a medo, depois queria agarrá-lo… Agarrou-o, depois queria abraçá-lo, depois queria tudo. . . Vimos que ela gostou do irmão . . . Ela dizia “oh mano, depois tu vais pa casa”. . . Foi uma emoção muito grande e uma força para não chorar . . . . A alegria era tanta . . . . Aquele momento para mim . . . foi dos momentos mais bonitos da minha vida . . . Foi vê-los aos dois. Senti que valeu a pena ((risos)), aquele sacrifício todo outra vez. [Sinto-me] Feliz. Sofia (E6)
Mas o afeto entre irmãos é narrado pelas participantes mesmo ainda durante a gravidez. Leonor (E2) recorda como o seu filho mais velho, ainda antes de ter nascido a irmã, se referia a ela, com um sentimento, simultaneamente, de posse e de carinho ao nomear a irmã como sendo a sua irmã, mais precisamente a sua “mana”.
“E logo, desde muito cedo, o José dizia “é a minha mana” . . . mas com aquela coisa de orgulho . . . e de carinho com ela” Leonor (E2).
Mas este encontro de amor e ternura entre irmãos é também quotidiano, é habitual. A aceitação natural, a proteção de um filho pelo outro, promove um sentimento de missão cumprida, um sentir tão profundo e emocionalmente intenso que é referido como não sendo possível de explicar.
O importante para mim, é ver que o Francisco aceitou muito bem o irmão, que adora o irmão, que o protege e quer sempre dar beijinhos . . . . De manhã tem de dar um beijo ao irmão. . . . Ver ali o amor fraterno . . . Carolina (E4)
“O Frederico já gosta de abrir e fechar portas e . . . e o irmão vai e . . . agarra nele e “não, que te podes entalar”. E já . . . é giro ver. É protetor . . . ” Carolina (E4).
Por sua vez, Sofia (E6) tendo verbalizado que “nunca quis ser mãe” - e que apenas o foi da primeira e da segunda vez por desejo e vocação do seu companheiro -, expressa como admira e se sente feliz ao observar a cumplicidade existente entre os seus filhos, que se mostra, entre outros momentos, na forma como comunicam e brincam sempre juntos.
Esta semana achei lindíssimo. A Lara, que está naquela fase de querer brincar às mamãs e aos papás, . . . ele é o bebé e ela é a mãe e diz-lhe “come tudo, se não eu ralho contigo” . . . . Ela depois senta-o no carrinho dos bebés, que por acaso é o carrinho das bonecas e passeia-o . . . . Eu acho que isto é lindíssimo . . . a cumplicidade de um com o outro . . . . Sinto-me feliz. Acho que . . . foi a melhor coisa que eu fiz. Sofia (E6)
Embora o encontro entre o primeiro e o segundo filho se revele como um encontro na ternura e no amor, a ocupação do espaço por um outro, que é o irmão mais novo, também é sentida e vivida. Ana (E9) narra como se sentiu triste, ou mesmo desesperada, ao perceber o sofrimento sentido e demonstrado pelo seu primeiro filho quando, ao regressar a casa após o parto, este verbalizou num misto de espanto e tristeza ao constatar que a mãe não vinha sozinha, mas que trazia um bebé com ela, que transportava um outro ser, que era o seu irmão.
Assim que me viu, ficou todo contente, correu para mim e abraçou-me . . . “a mamã chegou”. Mas . . . quando viu o irmão Tiago, ficou assim muito calado . . . . “Ah, ele também veio, ele também está aqui ((disse em tom de voz baixo))”. . . . Ele não gostou, ficou muito incomodado, era como se fosse uma invasão ao espaço dele. Marcou-o muito. . . . É aquele desespero de querer tão bem a um e tão bem a outro, mas saber que realmente estava a causar sofrimento . . . Ana (E9)
Por sua vez, Ana (E9) retrata as birras, as guerras, as lutas, as provocações e os simultâneos gestos de amor que observa na interação dos filhos.
Se tiverem aqui os brinquedos todos, eles vão-se interessar pelo mesmo. Na mesma altura, hão de querer o mesmo. Mas daí um bocado, se algum não está, já estão a perguntar, “mãe, onde é que está o Tiago? Mãe, o Tiago deve estar a fazer asneiras. Mãe, onde é que anda”. Apesar . . . desta coisa toda das . . . guerrilhas entre eles, mas . . . acho que já não conseguem estar um sem o outro. Ana (E9)
Para as mulheres participantes do estudo a experiência vivida de se tornarem mães pela segunda vez, manifesta-se em momentos de encontro no amor e na ternura. Mas, também em momentos de desencontro entre irmãos, ou melhor, de manifestação da presença de um eu, face à compreensão da ocupação de um espaço por um outro.
“Nós somos quatro: a família como um uno” - Procurando compreender a experiência vivida destas mulheres, perceciona-se que o encontro e o (re)nascer da família como um todo, um uno, é uma preocupação para estas mulheres, nomeadamente a aceitação e a integração do segundo filho por parte, quer do primogénito, como também do companheiro.
Ana (E9) e Maria (E5), emocionadas, recordam um momento em que o filho mais velho, não vendo o irmão mais novo no carro e sentindo a sua ausência, pergunta por ele aos pais. Pedro refere “mamã nós somos só três . . . Onde é que está o quarto elemento . . . ?”, por sua vez Joana diz “então oh pai, não vamos buscar o Joaquim hoje?”. Ambas as participantes sentem que este comportamento, este sentir do filho mais velho, revela como este se desenvolveu e aceitou o irmão, como sendo ele também um elemento da família.
Paralelamente à aceitação do segundo filho pelo primeiro, enquanto elemento da família, as participantes narram também como foi importante compreenderem que o companheiro demonstrou o mesmo amor e aceitação, quando se encontrou com o filho mais novo, pela primeira vez. Igualmente importante, foi o afeto e atenção que teve para com ela, enquanto mulher e mãe dos seus filhos. Veja-se Rosa (E3) e Carolina (E4) recordando o momento do primeiro encontro com o companheiro após o parto, expressam a importância do afeto proporcionado pelo marido, quer para consigo, como para com o segundo filho acabado de nascer. Aquele momento é sentido como algo basilar, estruturante, profundamente tranquilo e apaziguador, como que um sonho tornado realidade, na medida em que têm o que ambicionaram, estão acompanhadas, têm apoio e a sua família reunida.
O meu marido . . . Pegou na menina e… os atos falam por si. Fiquei feliz . . . dele também estar ali . . . estava a apoiar, que é o que nós precisamos. Precisamos de muito apoio . . . de sentir que não estamos sozinhas. Fiquei contente, feliz . . . está a família reunida. É o que todas queremos. Rosa (E3)
Recordo-me da visita do meu marido. Primeiro . . . abraçou-me e deu beijinho ao filho . . . e ficou com ele ao colo . . . e também não conseguia tirar os olhos dele. Fiquei bastante emotiva, de o ver . . . . Do segundo filho . . . a mesma ternura.Carolina (E4)
Neste momento de (re)encontro e (re)nascimento da identidade familiar, a aceitação deste seu recém-chegado elemento por parte do irmão mais velho, assim como o amor demonstrado pelo companheiro, quer para com o filho mais novo, como para com as participantes, é valorizado e emocionalmente significativo para as mesmas.
Discussão
Tal como desvelado, o tempo do nascimento é revelado como a experiência do encontro e do (re)encontro entre a mulher e o segundo filho, um momento íntimo de dois ser(es)-no-mundo, de encantamento, perfeito, apresentado como “só eu e ele”, mas onde as dimensões temporais do passado, do presente e do futuro são (re)vividas e equacionadas.
A existência deste íntimo e encantado encontro que ocorre no momento do nascimento parece dar sentido ao ser das mulheres participantes, ser(es) que sendo, se torna(m) mãe(s) de um segundo filho, dotada(s) de linguagem, capaz(es) de se abrir(em) ao mundo, mais concretamente ao outro, ao seu ente especial, que é o seu segundo filho, e que também é um ser. Neste sentido, e parafraseando Heidegger (2005, p.35), uma via de acesso ao ser é o ente, pois o ser só se revela a partir do ente, na medida em que “o ser é sempre um ser de um ente”, mas que para existir necessita estar em relação com os seus entes e com o seu ser.
Perceciona-se, assim, um reconhecimento da identidade, do ser, deste ente que é o segundo filho, como sendo uma criança única, em igualdade com todas as outras e com o amor que lhe é devido, pois cada filho é, assim, único e cada mãe é única com cada filho, pelo que esta transição na parentalidade constitui-se como uma experiência qualitativamente diferenciada, específica e singular (Kojima et al., 2005).
Das narrativas das mulheres participantes transparece também o amor, a afeição, um amor-dádiva que impele as mulheres a darem algo de si, a protegerem o seu filho face a um amor-necessidade da criança que procura o encontro e a proteção da mãe, mas também o amor entre irmãos. Para o escritor Lewis (2017), o amor da mãe pelo filho e que se identifica nas narrativas das participantes, remete para a afeição, o mais humilde dos amores, pois não procura impressionar, é universal e é o menos melindroso dos amores naturais.
Para as mulheres participantes, a aceitação do segundo filho por parte do irmão mais velho é significativa, o que também transparece na investigação identificada. Walz e Rich (1983) observaram que uma das grandes preocupações maternas se prendia com a aceitação do irmão mais novo pelo primogénito, identificada na energia e tempo que as mulheres utilizavam, quer na preparação do primeiro filho, como na sua inclusão nos acontecimentos inerentes ao nascimento do irmão.
Para as mulheres participantes do estudo, a experiência vivida de se tornarem mães pela segunda vez, manifesta-se em momentos de encontro no amor e na ternura. Mas também em momentos de (des)encontro entre irmãos, face à compreensão da ocupação de um espaço por um outro.
Alguns estudos têm focado ou dado contributos para a compreensão do impacto, no primogénito, do nascimento do segundo filho (Kojima et al., 2005; Pereira, 2011 Piccinini et al., 2007; Walz & Rich, 1983).
Piccinini et al. (2007) investigaram o impacto nas relações familiares do nascimento do segundo filho, nomeadamente no que diz respeito às alterações nos comportamentos do primeiro filho, na relação conjugal, na relação primogénito-genitores e na rede de suporte. Os investigadores referem que as mães que participaram no estudo que desenvolveram demonstraram, de modo empático com os primogénitos, sofrer ao perceber as dificuldades do primeiro filho em lidar com a chegada do recém-nascido, por exemplo, através de pequenos sinais de descontentamento, como a face do filho quando a mãe chegava a casa.
Walz e Rich (1983) também verificaram que ocupando o primogénito uma posição significativa na vida da mãe, a chegada de um segundo filho altera a relação já estabelecida, gerando sentimentos de insatisfação e sofrimento.
Por sua vez, Pereira (2011, p.12), tendo-se dedicado ao estudo da “rivalidade fraterna desde a gestação até aos 24 meses de vida do segundo filho em famílias com um primogénito em idade pré-escolar, a partir da perspetiva dos progenitores”, identificou que no período inicial, isto é, após o nascimento do irmão, a rivalidade fraterna revelou-se primordialmente através de ciúmes do primogénito em relação aos progenitores. Contudo, e de acordo com o referido estudo, à medida que o segundo filho passa a apresentar maior capacidade motora e de comunicação, a rivalidade passa a expressar-se também através da competição e de disputas diretas entre irmãos.
Na presente investigação, a experiência da mulher ao tornar-se mãe de um segundo filho é também revelada pelas participantes como o encontro e o (re)nascer da família, agora “somos quatro”, como um todo, um uno. Contudo, neste mesmo tempo, (co)existe na mulher uma preocupação, no que diz respeito à aceitação de cada um dos elementos da família, dos seus seres, num lugar único e próprio.
O amor demonstrado pelo companheiro, quer para com o filho recém-nascido, como para com as participantes, é valorizado e emocionalmente significativo. Também, O’Reilly (2004), no estudo que desenvolveu, descreve que as mulheres participantes, para além de estarem preocupadas com o seu relacionamento com cada criança, com a relação das crianças uma com a outra, também se preocupavam com a relação do pai com as crianças. Por sua vez, Kojima et al. (2005) referem que existem evidências crescentes de que o envolvimento de um pai com a família contribui significativamente para a adaptação da mesma face ao nascimento de um segundo filho. Por sua vez, Piccinini et al. (2007) acrescentam que o nascimento do segundo filho tem impacto na dinâmica das relações familiares existentes, sublinhando que é a família como um todo que vivencia mudanças neste período. Contudo, nesta conjuntura, emerge a questão: qual o lugar do homem, do pai, do companheiro nesta transição?
Face ao exposto, o presente estudo revela-nos, assim, como o fenómeno humano - tornar-se mãe de um segundo filho - enquanto transição na parentalidade, representando um período singular, de (trans)formação e de maior vulnerabilidade, se apresenta, no momento do nascimento, como um caminho marcado por um (re)começo e pelo (re)encontro de um ser-no-mundo que se adapta ao seu novo papel e à sua nova identidade. Um momento onde o afeto e o amor, se entrelaçam com o (des)encontro e com a ambivalência.
Como limitação, importa referir, que este estudo, tal como o tipo de investigação em que este se enquadra, não intenta representatividade ou extrapolação, pretende sim, contribuir para a desocultação do fenómeno, não se centrando no número de participantes, mas na clarificação do sentido e significados individuais relativamente ao fenómeno em estudo (van Manen, 2014).
Conclusão
O sentido atribuído à experiência vivida da mulher ao tornar-se mãe pela segunda vez é marcado, entre outros, pelo momento do nascimento: um tempo de encontro e de (des)encontro com o outro e do (re)nascer da identidade familiar.
Neste tempo é revelado um momento íntimo, de encantamento, apresentado como “só eu e ele”. É, assim, um momento singular e distinto do vivido com o primeiro filho. Algumas das mulheres participantes, embora tenham vivido no passado o receio quanto ao amor que viriam a sentir para com o segundo filho, no presente falam de um amor que se mostra de uma outra maneira, que é diferente, mas igualmente bom. Um amor que vai crescendo e se vai fortalecendo, no tempo, com a interação e na presença quotidiana. Também o primeiro encontro entre os dois filhos é apresentado como um momento de encontro na ternura e no amor. É um encontro esperado e preparado, mas acima de tudo é um encontro, um cruzamento, onde a afetividade e o amor parecem crescer e (trans)formar o outro. Não obstante, na relação do ser com os outros seres, também ocorrem momentos de (des)encontro, de rivalidade entre irmãos, ou melhor, de manifestação da presença de um eu, face à compreensão da ocupação de um espaço, protagonista de desassossego no sentir materno.
Na(s) experiência(s) revelada(s), o encontro e o (re)nascer da família como um todo, um uno, é também marcado pela aceitação do segundo filho por parte do primogénito, assim como pelo amor revelado pelo companheiro, quer para com o filho mais novo, como para com as participantes.
Pela disseminação dos achados do tema aqui revelado, os enfermeiros têm a possibilidade de se tornarem profissionais (ainda mais) atentos e reflexivos face ao momento do nascimento vivido pela mulher que se torna mãe de um segundo filho. Poderão desenvolver intervenções na promoção do ajustamento e (re)equilíbrio da mulher face à atual transição promovendo a expressão de sentimentos e realizando um trabalho de regulação emocional, por exemplo: face ao receio inicial relativamente ao amor e ao lugar que o segundo filho iria ocupar nas suas vidas e na vida de cada elemento da família; e no que respeita à angústia sentida face aos comportamentos do primogénito e à rivalidade fraterna.
Cabe ao enfermeiro clarificar que a afetividade e o amor podem crescer com o quotidiano, recordar que os filhos terão o benefício de um relacionamento de irmãos, que tem os seus próprios benefícios, assim como desmistificar os ideais culturais sobre o que é ser “boa” mãe, dando voz à vida interior das mulheres, promovendo a diminuição da pressão e permitindo que se libertem do peso dos seus próprios ideais impossíveis e punitivos, encontrando e vendo, sim, o essencial que é o outro na sua presença. Assim como sensibilizar para o valor que assume nesta transição a presença do companheiro presente.
Será relevante que o enfermeiro crie espaços e tempos de discussão que possam também contemplar a transmissão de orientações antecipatórias sobre as mudanças esperadas nos comportamentos e na estrutura que envolve as relações e a dinâmica familiar.
Contudo, é necessário continuar a aprofundar a temática, quer em termos de clarificação conceptual, como relativamente à sua aplicação em termos de melhoria da prestação de cuidados de enfermagem. Seria relevante aprofundar a experiência do homem que se torna pai de um segundo filho, como do primogénito, de modo a compreender de forma aprofundada este fenómeno e a serem identificadas intervenções de enfermagem facilitadoras desta transição na parentalidade específicas para os distintos intervenientes. Também seriam pertinentes estudos que investiguem esta transição, mas que contemplem famílias com diferentes configurações e/ou pertencentes a grupos com vulnerabilidade acrescida.
No que diz respeito à formação em enfermagem, seria relevante que no âmbito da transição na parentalidade fosse dado enfoque à transição vivida pela mulher ao tornar-se mãe de um segundo filho.