Introdução
No cenário mundial, foi declarada uma pneumonia atípica em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, China. No final de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou este surto de propagação rápida e com um aumento exponencial de casos clínicos, de infeção pelo novo Coronavírus (COVID-19), como uma situação de emergência de saúde publica e de interesse internacional (Oliveira et al., 2020). Esta pandemia teve de imediato repercussões a nível mundial nomeadamente na educação, economia, cultura, religião e família, e, especialmente, na saúde. Como reforça Crepaldi et al. (2020), devido à preocupação com a capacidade de resposta dos sistemas de saúde e as exigências da pandemia, a sua rápida evolução e o aumento do número de casos, foram implementadas medidas restritivas, como sejam o encerramento de escolas e universidades, isolamento de casos suspeitos, restrições a viagens e distanciamento social, no sentido de minimizar a transmissão pessoa-pessoa e a propagação da doença (Cardoso et al., 2020).
A COVID-19 implicou também diversas perdas para as pessoas, nomeadamente ao nível de rotinas, da perda de conexões com outras pessoas, instabilidade financeira e, mesmo perda de alguém da sua rede socioafetiva devido a morte por COVID-19 (Crepaldi et al., 2020). A pandemia veio dificultar a vivência do processo de luto que ficou comprometida, bem como a resolução de todas as suas fases, uma vez que foi retirado o direito do acompanhamento na fase terminal da pessoa e o direito dos rituais de velório, tendo-se verificado uma redução ou interrupção de rituais habituais celebrados para homenagear os mortos (Cardoso et al., 2020; Crepaldi et al., 2020).
A presente investigação teve como objetivos: Determinar a prevalência de luto patológico em familiares de pessoas vítimas mortais de COVID-19; Verificar se as estratégias de coping predizem o luto.
Enquadramento
O luto é uma reação à perda de uma pessoa querida e pode ser caracterizado como um conjunto de reações psicológicas, emocionais, físicas e sociais, que a pessoa enlutada experiencia face à morte (Stroebe & Schut, 2021). Consiste num período de muita dor e que exige readaptação da pessoa enlutada à sua nova realidade, sendo que a maioria consegue ultrapassar este período de descrença e sofrimento (Stroebe & Schut, 2021). Contudo, quando isso não se verifica estamos perante o luto patológico. O luto patológico é determinado pela existência de vários fatores, como sejam os fatores prévios à perda, de que são exemplo a idade do enlutado, o seu género, a raça, o tipo de vínculo que tinha com a pessoa falecida, o estatuto socioeconómico e a existência de patologia psiquiátrica prévia; fatores relacionados com a própria perda que incluem as circunstâncias da morte, se era algo previsível ou ocorreu de uma forma inesperada e violenta; e, por fim, os fatores peri-perda que dizem respeito à resposta e capacidade do enlutado de lidar com a perda (Marques, 2020).
Relativamente, ao estabelecimento de um diagnóstico de luto complicado esta não é uma questão consensual. Os critérios propostos na literatura para a definição do diagnóstico são, fundamentalmente, a duração do luto, comprometimento funcional e intensidade dos sintomas. No Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) a diferença essencial entre um processo de luto normal e complicado é o tempo, isto é, quando uma pessoa apresenta sintomas persistentes ou com intensidade acrescida de luto por um período de doze meses ou mais, pode afirmar-se que estamos perante um quadro de Transtorno do luto complexo persistente - o Luto complicado, também designado de patológico (American Psychiatric Association, 2014).
A literatura assume os rituais fúnebres como sendo rituais que permitem assimilar a perda e, por isso, a construção do luto, porquanto muitas pessoas precisam do velório do corpo para entender a morte, adaptarem à ideia de que a pessoa que morreu não estará mais presente e reconstruir a realidade alterada (Bianco & Costa-Moura, 2020). Perante as limitações impostas pela pandemia devido ao risco de contágio foram tomadas diversas medidas, nomeadamente a proibição de ver o corpo do familiar que morreu, a obrigatoriedade de distanciamento social, a impossibilidade de realização das cerimónias fúnebres, os corpos não poderem ser vestidos, tocados, contemplados, a redução ao mínimo do número de pessoas permitidas e a duração de velórios, impossibilitaram os familiares das vítimas de COVID-19 de executam um ritual completo (Dantas et al., 2020). Não existindo este ritual, devido à pandemia, a morte torna-se dessimbolizada e o trabalho do luto é interrompido (Bianco & Costa-Moura, 2020). Pode ocorrer o desenvolvimento de preocupação excessiva, transtorno do stress pós-traumático, desinteresse pela vida, dificuldade em aceitar a morte, angústia, ansiedade e depressão (Magalhães et al., 2020). Isto fica a dever-se ao facto de a pessoa enlutada sentir, frequentemente, frustração por não poder proporcionar um funeral considerado digno para o ente falecido, não ter a oportunidade de expressar os sentimentos e as emoções sobre os entes perdidos, manifestar publicamente o seu pesar e por não haver um momento de comunhão, cumplicidade e compaixão. Assim, a pessoa enlutada tem de lidar sozinha com a morte e com a sobrecarga emocional gerada por esse evento, não tendo uma rede de apoio com quem compartilhar a sua dor, formada por familiares e amigos, que representam um suporte fundamental para o enfrentamento desse fenómeno (Magalhães et al., 2020).
Na presença de acontecimentos geradores de stress e circunstâncias adversas, como a morte de um familiar com COVID-19, a pessoa usa um conjunto de estratégias/recursos para se adaptar ou reajustar à situação designadas estratégias de coping. O coping é definido como as alterações comportamentais e/ou cognitivas para gerir exigências externas e/ou internas específicas que são avaliadas como extremas ou que excedem os recursos da pessoa; e divide-se em duas categorias funcionais: o coping focalizado no problema, que inclui estratégias como a negociação para resolver um conflito interpessoal ou solicitar ajuda prática de outras pessoas; e o coping focalizado na emoção, que tem como função principal a regulação da resposta emocional causada pelo problema, podendo representar atitudes de afastamento e/ou como negação (Dias et al., 2019).
Questões de investigação
Qual a prevalência de luto patológico em familiares de pessoas vítimas mortais de COVID-19? Será que as estratégias de coping predizem a ocorrência de luto patológico?
Metodologia
O estudo é de natureza quantitativa, observacional, com análise descritivo-correlacional e foco transversal. Foi aplicada a técnica de amostragem não probabilística em “bola de neve”. Nesta técnica os participantes selecionados convidam novos participantes da sua rede de amigos e conhecidos e esta é frequentemente utilizada para aceder a populações de baixa incidências e participantes de difícil acesso (Pestana & Gageiro, 2014).
A amostra foi composta por familiares de doentes que faleceram com COVID-19, na região centro de Portugal, e foi constituída por 86 participantes. Os critérios de inclusão considerados foram: idade superior ou igual a 18 anos e ter sofrido a perda mortal de um familiar há mais de 6 meses.
A recolha de dados foi realizada através de um Instrumento de recolha de dados disponibilizado na plataforma informática Google Forms® e, também, através de contactos por via telefónica (tendo cada chamada uma duração média de 23 minutos), no período de julho de 2021 até setembro de 2021.
O instrumento inclui um questionário para caraterização sociodemográfica e contexto do luto, o Inventário de Luto Complicado (Inventory of Complicated Grief - ICG), versão portuguesa de Frade (2010), e o Inventário de Coping para Situações Stressantes (Coping Inventory for Stressful Situations - CISS-21) versão portuguesa de Pereira e Queirós (2015).
O ICG é constituído por 19 itens, com respostas tipo Likert de 5 pontos (Nunca a Sempre), de 0 a 4, com uma pontuação total que varia entre 0 e os 76 valores, que permitem avaliar a existência de sintomas de luto, como consequência da perda de uma pessoa significativa, decorrido um mês. Apenas pode falar-se em luto complicado/patológico após decorrerem seis meses desde o evento. A versão portuguesa da escala apresenta cinco dimensões: 1. Dificuldades traumáticas (itens 2, 9, 10, 11 e 12); 2. Dificuldades de separação (itens 1, 4, 5, 13 e 19); 3. Negação e revolta (itens 3, 6, 7 e 8); 4. Psicótica (itens 14 e 15); e 5. Depressiva (itens 16, 17 e 18). Uma pontuação acima dos 25 valores, num caso de perda superior a 6 meses, indica a probabilidade de existir luto complicado (Frade, 2010). O estudo da consistência interna do ICG, para a amostra em estudo, revela uma consistência muito boa (( = 0,93).
O CISS-21 é constituído por 21 itens, cada item é pontuado em 5 pontos numa escala de Likert que varia de 1 (de modo algum) a 5 (muitas vezes), e apresenta três dimensões: 1. Focada na tarefa (itens 2, 6, 8, 11, 13, 16 e 19); 2. Gestão das emoções (itens 3, 5, 10, 12 ,14, 17 e 20); e 3. Evitamento (itens 1, 4, 7, 9, 15, 18, 21). Uma pontuação mais alta indica-nos que a pessoa utiliza mais essa estratégia de coping, do que as restantes estratégias avaliadas (Pereira & Queirós, 2016). O estudo da consistência interna do CISS-21, para a amostra em estudo, revela uma consistência boa (( = 0,87).
Em relação aos procedimentos ético-legais o estudo obteve parecer favorável da Comissão de Ética do Instituto Politécnico de Viseu, com a referência 14 A/SUB/2021 e emissão em 25/05/2021. Na recolha de dados garantiu-se o anonimato e sigilo das respostas e manteve-se sempre o respeito pela privacidade de cada participante. As chamadas efetuadas via telefónica não foram gravadas. Foi utilizado um formulário para o consentimento informado e realizado o pedido de autorização para aplicação dos instrumentos de recolha de dados.
O tratamento de dados foi realizado com recurso ao software IBM SPSS software na versão 26.0. Os dados foram explorados através de estatística descritiva recorrendo a frequências absolutas e percentuais e a medidas de tendência central e de dispersão. A análise da consistência interna foi realizada através do Alpha de Cronbach cujos valores são interpretados como muito boa > 0,9, boa entre 0,8 e 0,9, razoável entre 0,7 e 0,8, fraca entre 0,6 e 0,7 e por fim, inadmissível < 0,6 (Pestana & Gageiro, 2014). Para realizar a análise inferencial, dado o reduzido tamanho amostral foram adotados os testes não paramétricos, nomeadamente o teste U de Mann-Whitney (na presença de dados contínuos) e o teste Qui-quadrado (X 2 ) ou equivalente teste de Fisher (na presença de dados dicotómicos ou ordinais). Para correlacionar duas variáveis contínuas utilizámos o coeficiente de correlação de Spearman. Em todos os testes, fixámos o valor 0,05 como limite de significância, ou seja, rejeitamos a hipótese nula quando a probabilidade do erro tipo I era inferior a 5% (p < 0,05).
Resultados
A amostra integra 86 participantes, com idades entre os 18 e os 87 anos e uma idade média de 52,02 anos (desvio padrão ± 13,44 anos). É maioritariamente do género feminino (69,8%, n = 60). Prevalecem as pessoas casadas (66,3%; n = 57), que residem em área rural (61,6%; n = 53) e com um nível de escolaridade do ensino superior (32,6%; n = 28). A maioria é cristã (75,6%; n = 65). O grau de parentesco que prevalece com a pessoa falecida é filha/o (37,2%; n = 32), seguido de neta/neto (17,4%; n = 15).
A caracterização do contexto do luto revela que a média das idades do falecido foi de 80,67 anos (desvio padrão ± 11,66 anos), oscilando entre 44 e 97 anos. Setenta e quatro participantes (86%) não visitou o seu familiar no período da doença. Setenta e dois participantes (83,7%) assume que o seu familiar falecido não foi vestido. Relativamente, ao destino do corpo da pessoa falecida, 88,4% (n = 76) foram sepultadas no cemitério, 9,3% (n = 8) foram cremadas e em relação às restantes não foi especificado o seu destino. O local de óbito do familiar foi predominantemente no hospital, 83,7% (n = 72). Após a morte, foi negada à generalidade dos participantes a oportunidade de ver o seu familiar, ainda que gostassem de o ter feito (62,8%; n = 54). Cerca de 84,9% (n = 73) considera importante os familiares e amigos “verem o corpo/a face do familiar/pessoa após a morte para se despedirem”. Apesar de a maioria dos participantes (76,7%; n = 66) ter estado presente nas cerimónias fúnebres, apenas 47,7% (n = 41) afirma que ocorreu uma reunião/celebração religiosa, sendo a mais frequente a missa. A maioria dos participantes (86%, n = 74) afirma que não ocorreu reunião familiar/amigos após o falecimento.
A aplicação do ICG permitiu identificar um score mínimo de 1 e um máximo de 70, com uma média global de 29,68 (desvio padrão ± 15,70). Os resultados mostram não existirem diferenças estatisticamente significativas entre os géneros (U = 649; p = 0,21; Tabela 1).
Género | n | Mínimo | Máximo | Média | Desvio padrão | Posto médio | U | p |
Masculino | 26 | 1 | 67 | 26,53 | 16,19 | 38,46 | 649 | 0,21 |
Feminino | 60 | 7 | 70 | 31,05 | 15,42 | 45,68 | ||
Total | 86 | 1 | 70 | 29,68 | 15,70 |
Nota. n = Tamanho da amostra; U = Teste U de Mann-Whitney; p = Significância estatística.
O estudo das dimensões do luto revela que os participantes pontuam com valores máximos nas dimensões Dificuldades traumáticas e Dificuldades de separação. Sendo que, o valor médio mais elevado é de 11,2 (desvio padrão ± 4,89) na dimensão Dificuldades de separação (Tabela 2).
Dimensões ICG | n | Mínimo | Máximo | Média | Desvio padrão |
Dificuldades traumáticas | 86 | 0 | 20 | 5,43 | 4,73 |
Dificuldades de separação | 86 | 1 | 20 | 11,2 | 4,89 |
Negação e revolta | 86 | 0 | 16 | 8,05 | 4,53 |
Psicótica | 86 | 0 | 8 | 1,66 | 1,97 |
Depressiva | 86 | 0 | 12 | 3,31 | 2,71 |
Nota. n = Tamanho da amostra; ICG = Inventory of Complicated Grief.
Em relação à tipologia do luto constata-se que 52 participantes (60,5%) apresentaram um score superior a 25 pontos, evidenciando um processo de luto complicado. Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas entre os géneros (X 2 = 0,68; p = 0,47) (Tabela 3).
Pontuação no ICG | Masculino | Feminino | Total | X 2 | p | |||
n | % | n | % | n | % | |||
< 25 (luto normal) | 12 | 14,0 | 22 | 25,6 | 34 | 39,5 | 0,68 | 0,47 |
> 25 (luto complicado) | 14 | 16,3 | 38 | 44,2 | 52 | 60,5 | ||
Total | 26 | 30,2 | 60 | 69,8 | 86 | 100,0 |
Nota. n = Tamanho da amostra; ICG = Inventory of Complicated Grief; X 2 = Teste do qui quadrado; p = Significância estatística.
Relativamente à aplicação do CISS-21, o score do coping oscilou entre um mínimo de 27 e um máximo de 88, com uma média global de 59,01 (desvio padrão ± 13,87). Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas entre os géneros (U = 658; p = 0,25; Tabela 4).
Género | n | Mínimo | Máximo | Média | Desvio padrão | Posto médio | U | p |
Masculino | 26 | 27 | 81 | 56 | 13,18 | 38,81 | 658 | 0,25 |
Feminino | 60 | 33 | 88 | 60,31 | 14,06 | 45,5 | ||
Total | 86 | 27 | 88 | 59,01 | 13,87 |
Nota. n = Tamanho da amostra; U = Teste U de Mann-Whitney; p = Significância estatística.
A análise dos resultados obtidos pelo CISS-21 revela que as estratégias associadas a estar “focada na tarefa” (M = 3,35, desvio padrão ± 0,79) são as mais adotadas pelos participantes do género masculino, seguidas das práticas associadas à “gestão das emoções” (M = 2,41, desvio padrão ± 0,85) e de “evitamento” (M = 2,23, desvio padrão ± 0,74). Os participantes do género feminino também utilizam a estratégia “focada na tarefa” (M = 3,40, desvio padrão ± 0,76) com maior frequência, seguidas das estratégias “gestão das emoções” (M = 2,67, desvio padrão ± 0,91) e de “evitamento” (M = 2,53, desvio padrão ± 0,94). A estratégia “focada na tarefa” é a mais adotada por todos os participantes, com um valor médio de 3,38 (desvio padrão ± 0,76) no score global (Tabela 5).
CISS-21 | n | Mínimo | Máximo | Média | Desvio padrão | |
Masculino | Focada na tarefa | 26 | 1,71 | 4,57 | 3,35 | 0,79 |
Gestão das emoções | 26 | 1,00 | 4,43 | 2,41 | 0,85 | |
Evitamento | 26 | 1,00 | 4,14 | 2,23 | 0,74 | |
Feminino | Focada na tarefa | 60 | 1,43 | 4,86 | 3,40 | 0,76 |
Gestão das emoções | 60 | 1,00 | 4,57 | 2,67 | 0,91 | |
Evitamento | 60 | 1,00 | 4,57 | 2,53 | 0,94 | |
Global | Focada na tarefa | 86 | 1,43 | 4,86 | 3,38 | 0,76 |
Gestão das emoções | 86 | 1 | 4,57 | 2,59 | 0,89 | |
Evitamento | 86 | 1 | 4,57 | 2,44 | 0,89 |
Nota. n = Tamanho da amostra; CISS-21 = Coping Inventory for Stressful Situations.
Quando analisamos as dimensões do coping em função do género verificamos que as diferenças não são estatisticamente significativas (Tabela 6).
CISS-21 | Masculino | Feminino | U | P | ||
n | Posto médio | n | Posto médio | |||
Focada na tarefa | 26 | 43,31 | 60 | 43,58 | 775 | 0,96 |
Gestão das emoções | 26 | 38,65 | 60 | 45,60 | 654 | 0,23 |
Evitamento | 26 | 39,17 | 60 | 45,38 | 667,5 | 0,28 |
Nota. n = Tamanho da amostra; CISS-21 = Coping Inventory for Stressful Situations; U = Teste U de Mann-Whitney; p = Significância estatística.
A correlação das estratégias de coping com o luto mostra que a dimensão Gestão das emoções está correlacionada positivamente com o luto, no global (p = 0,29; p = 0,01), na dimensão específica de Negação e revolta (p = 0,35; p < 0,001) e na depressiva (p = 0,28; p = 0,01). Verificou-se ainda uma correlação negativa da dimensão Focada na tarefa com a dimensão específica de Negação e revolta (p = -0,24; p = 0,03; Tabela 7).
IGC CISS-21 | Global | Dificuldades traumáticas | Dificuldades de separação | Negação e revolta | Psicótica | Depressiva | |||
Global | p | 0,11 | 0,01 | 0,10 | 0,11 | 0,10 | 0,08 | ||
p | 0,33 | 0,95 | 0,34 | 0,32 | 0,35 | 0,48 | |||
Focada na tarefa | p | -0,15 | -0,17 | -0,05 | -0,24 | -0,01 | -0,15 | ||
p | 0,17 | 0,13 | 0,67 | 0,03* | 0,96 | 0,16 | |||
Gestão das emoções | p | 0,29 | 0,17 | 0,19 | 0,35 | 0,17 | 0,28 | ||
p | 0,01* | 0,12 | 0,07 | <0,001* | 0,12 | 0,01* | |||
Evitamento | p | 0,04 | -0,04 | 0,02 | 0,09 | 0,03 | -0,03 | ||
p | 0,73 | 0,74 | 0,88 | 0,44 | 0,76 | 0,82 |
Nota. ICG = Inventory of Complicated Grief; CISS-21 = Coping Inventory for Stressful Situations; * = Estatisticamente significativo.
Da análise das correlações do score global do CISS-21 com os itens individuais do IGC, extrai-se uma correlação positiva para o item 6 (p = 0,32; p = 0,003). Em relação à correlação entre os itens individuais do IGC e a dimensão Focada na tarefa verificámos correlações negativas para o item 7 (p = -0,24; p = 0,02), o item 8 (p = -0,28; p = 0,01) e o item 9 (p = -0,26; p = 0,01). Em relação à correlação entre os itens individuais do IGC e a dimensão Gestão de emoções verificámos correlações positivas para o item 3 (p = 0,22; p = 0,04), o item 6 (p = 0,46; p < 0,001), o item 7 (p = 0,26; p = 0,01), o item 8 (p = 0,24; p = 0,03), o item 9 (p = 0,21; p = 0,05), o item 13 (p = 0,23; p = 0,03), o item 14 (p = 0,22; p = 0,05) e o item 17 (p = 0,27; p = 0,01). Por fim, ao analisarmos a correlação entre os itens individuais do IGC e a dimensão Evitamento verificámos apenas uma correlação positiva para o item 6 (p = 0,27; p = 0,01).
Discussão
Este estudo respondeu às questões de investigação enunciadas. Em relação á primeira questão “Qual a prevalência de luto patológico em familiares de pessoas vítimas mortais de COVID-19?” inferiu-se que há um elevado número de familiares de pessoas vítimas mortais de COVID-19 com dificuldades graves e processos de luto complicado. A prevalência do luto complicado foi de 60,5%, o que se revela muito superior a outros estudos realizados em Portugal no qual se verificou que 16,7% dos enlutados evidenciavam a possível presença de luto complicado, enquanto que 23,8% evidenciava possível luto traumático (Pereira, 2022). Apesar de não existir uma relação estatisticamente significativa entre as condições em que decorrem os rituais fúnebres (em contexto de pandemia por COVID-19) e o desenvolvimento de luto patológico, há indícios de que as pessoas que perderam familiares vítimas de COVID-19 e que se veem impossibilitados de os acompanhar antes e após morte, desenvolvem processos patológicos ou complicado do luto.
Após o falecimento, a reunião familiar e com amigos pode ser considerada uma estratégia para lidar com a situação de luto. Todas estas alterações profundas podem ter impacte na pessoa enlutada, como vivência todo o processo de luto, assim com vista a minimizar o risco de um luto complicado (Mayland et al., 2020). As mortes por COVID-19, dado serem inesperadas, e a exposição a diferentes fatores de stress são um forte preditor de dor patológica futura, reações de luto persistentes, prolongadas e incapacitantes (Hart & Taylor, 2021; Sizoo et al., 2020).
Face aos objetivos definidos para o estudo procurou-se explicar se as condições em que decorreram os rituais fúnebres em contexto de pandemia COVID-19 produziram impacte no desenvolvimento de luto patológico. Neste sentido, alguns estudos apontam que a ocorrência de restrições é impactante nos doentes, familiares, cuidadores e profissionais (Hart & Taylor, 2021; Sizoo et al., 2020).
No presente estudo, não foi possível aferir se o contexto de luto e os rituais fúnebres têm influência estatisticamente significativa no desenvolvimento de processos de luto complicado. No entanto, os resultados mostram que tais limitações tendem a gerar um certo descontentamento e ao mesmo tempo dificuldades na gestão do luto, uma vez que os familiares se viram impossibilitados de realizar uma homenagem digna à pessoa que morreu. Na verdade, a pandemia COVID-19 parece ter implicações na forma como se desenvolvem os processos de luto. Estamos, pois, perante o condicionamento de diversas normas culturais, rituais e práticas sociais usuais ao longo do processo que aumentam potencialmente o risco de um luto complicado (Mayland et al., 2020). No entanto, alguns estudos não demonstraram relação significativa entre a forma como decorreram os funerais e a existência de dor ou luto prolongado (Stroebe & Schut, 2021).
Evidenciam-se, também, correlações entre a possibilidade de desenvolvimento de processos de luto patológico e os fatores do ICG “negação e revolta” e “depressão”, os participantes pontuam em itens como, “Eu sinto-me amargurado(a) sobre a morte desta pessoa” e “Eu sinto que não aceito a morte da pessoa que morreu”. Shear (2015), aponta que o luto patológico é mais frequente em pessoas do género feminino, de estatuto socioeconómico baixo e com idade superior a 60 anos, o que não foi possível de confirmar no presente estudo. Como reforçam Stroebe e Schut (2021), as restrições e o distanciamento imposto pela pandemia podem intensificar ainda mais os sentimentos de solidão, que são parte integrante de qualquer experiência de luto. As pessoas enlutadas, sejam familiares ou amigos são profundamente afetados pela experiência e consequências do luto. O impacte da COVID-19, nos enlutados em particular, pode ocasionar o aumento de reações emocionais extremas, como sejam raiva, vergonha, medo, depressão e solidão e de igual modo, a possibilidade de ocorrência de casos de perturbação de luto prolongado (Stroebe & Schut, 2021), resultado também validado no presente estudo.
Em relação à segunda questão de investigação “Será que as estratégias de coping predizem a ocorrência de luto patológico?” verificou-se que os participantes usaram maioritariamente como estratégias de coping o “estar focados na tarefa”. Também se constatou uma correlação positiva entre as estratégias de evitamento e os processos de luto patológico, verificando-se que frequentemente os participantes referiram utilizar como estratégias “Tirar algum tempo e afastar-me da situação” e “Dar um miminho a mim próprio com a minha comida ou bolo preferido”, que evidenciam atitudes de fuga ao problema ou situação de stress atual. Contrapondo este facto, há estudos que atestam que, as pessoas que utilizam estratégias de coping evitantes ou ruminantes são as que se encontram mais propensas a desenvolver processos de luto patológico (Marques, 2020).
Também se verificou que, as pessoas que utilizam mais regularmente a estratégia de coping gestão das emoções poderão apresentar uma probabilidade acrescida de desenvolver um quadro de luto patológico. A dimensão Gestão das emoções encontra-se ainda correlacionada positivamente com a dimensão de Negação e revolta e dimensão Depressiva. Os participantes no ICG, pontuam frequentemente em itens como “Eu sinto que não aceito a morte da pessoa que morreu” e “Eu sinto que é injusto que eu deva viver enquanto esta pessoa morreu”. Isto deve-se sobretudo ao facto de as estratégias de enfrentamento centradas nas emoções se concentrarem em eliminar a resposta emocional negativa ao problema ou à causa do stress (Dias et al., 2019). Do mesmo modo, os participantes pontuam mais em itens como “Culpar-me por ficar tão emocionalmente afetado com a situação”, “Desejar mudar o que aconteceu e a forma como me sinto” e “Sentir-me ansioso por não ser capaz de lidar com a situação”, parecendo evidenciar dificuldades em lidar com a situação geradora de stress, ressignificar o acontecimento e prosseguir com as suas vidas. No global a amostra usa maioritariamente a estratégia “focada na tarefa” para a resolução de situações de stress ou problemáticas.
Os nossos resultados devem ser interpretados tendo em conta algumas limitações. Em primeiro lugar, o tipo de amostra não probabilística não permite realizar generalizações sobre o objeto em estudo. Segundo, o baixo número amostral, motivado pela natureza sensível dos critérios de inclusão que levou muitas pessoas a recusar a participação, impôs vários limites aos testes estatísticos que pretendíamos aplicar. Apesar das limitações procurou-se que a amostra fosse clinicamente robusta e que este estudo analisasse um vasto leque de variáveis sensíveis ao fenómeno, e que fosse metodológico rigoroso.
Conclusão
A maioria dos participantes não visitou o seu familiar durante o período de doença. Este facto não influencia as estratégias de coping adotadas, nem os processos de luto associados. Constatou-se ainda que as estratégias de coping mais adotadas foi estar focado na tarefa e que houve uma elevada probabilidade de dificuldades na gestão do luto e a existência de processos de luto complicado.
Os participantes consideraram que ver o corpo ou parte dele, após a morte do seu ente querido, é uma forma e ritual importante de despedida, ajudando a mitigar o processo de luto e a atenuar as dificuldades sentidas que lhe são inerentes.
Em relação às implicações para a prática estes resultados mostram claramente o impacte negativo provocado pela situação pandémica na saúde mental das pessoas e a necessidade de mudanças comportamentais, por parte das instituições que prestam cuidados de saúde, nomeadamente adotar diferentes procedimentos de identificação e preparação do corpo da pessoa falecida; facilitar visitas familiares nos internamentos; e permitir o estabelecimento de uma rede de apoio às pessoas enlutadas e acompanhamento à posteriori por parte de equipas especializadas.
Como orientações futuras é pertinente dar continuidade a programas de investigação sobre a experiência do luto, no sentido de sugerir orientações para a prática ao nível das Instituições de Saúde, implementação de programas de apoio e intervenção e mudanças nas políticas de saúde. Os profissionais de saúde devem estar atentos e conscientes da importância de programas de despiste precoce de sintomatologia relativa aos processos de luto.
Como implicações para a investigação sublinha-se a importância de replicar este estudo numa amostra mais alargada. O estudo da prevalência de luto patológico em subgrupos, como as pessoas idosas, é pertinente, uma vez que pelas suas caraterísticas específicas são um grupo de elevado risco e são as mais afetadas em termos de mortalidade pela pandemia COVID-19.