A Lei Tutelar Educativa
A Lei Tutelar Educativa (LTE) que enquadra este estudo (Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro revista pela versão da Lei n.º 4/2015, de 15 Janeiro), aplica-se a jovens entre os 12 e os 16 anos, que pratiquem factos qualificados pela lei penal como crime, surgindo como um modelo de justiça responsabilizador (Ramires & Cóias, 2020). Os jovens podem ser objeto de medidas tutelares educativas até aos 21 anos (artigo 5.º da LTE), prevendo-se que a avaliação técnica realizada por técnicos sociais seja solicitada por magistrados de Tribunais de Família e Menores relativamente ao caso individualizado de cada jovem infractor. Neste sentido, pode ser solicitada à Direção-Geral para a Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) uma assessoria técnica. Esta assessoria técnica pode ocorrer na fase pré-sentencial, através do apoio técnico aos tribunais na tomada de decisões judiciais, ou na fase pós-sentencial, através do apoio à execução das medidas tutelares educativas aplicadas.
Na fase pré-sentencial pode ser requerida a seguinte documentação técnica: relatório social; relatório social com avaliação psicológica; e perícia sobre a personalidade. Os relatórios sociais, embora exijam conhecimentos técnicos específicos para a sua elaboração e constituam um meio de recolha de informação relevante, levado a cabo através de métodos próprios, não integram o conceito de prova pericial (Carmo, 2011). É considerado no artigo 71.º da LTE, que o relatório social pode ser utilizado como meio de obtenção de prova, podendo ser realizado por qualquer técnico superior ou técnico superior de reinserção social com formação em Psicologia ou Serviço Social. O relatório social tem como objetivo avaliar tecnicamente o enquadramento socioeducativo / familiar e os elementos de caracterização pessoal / comportamental do jovem, bem como os recursos pessoais e socio familiares (DGRSP, 2022). O recurso ao relatório social proporciona ao magistrado o conhecimento sobre o percurso e o contexto do jovem, e possibilita a individualização da decisão judicial em função das necessidades educativas (Alberola & Molina, 2006).
No âmbito pericial, são considerados o relatório social com avaliação psicológica (artigos 71, n.ºs 1 e 5 da LTE) e a perícia sobre a personalidade (artigos 68 e 69 da LTE). A avaliação psicológica forense de jovens infratores é realizada na DGRSP, exclusivamente por técnicos superiores, psicólogos. Ao longo do tempo, procurou-se que os documentos produzidos fossem congruentes com as linhas orientadoras sugeridas na literatura sobre a elaboração de relatórios psicológicos forenses (Ramires & Cóias, 2020). Estes métodos de avaliação têm como objetivo a análise compreensiva das características psicológicas e da personalidade do jovem que poderão estar relacionadas com o comportamento manifestado na prática do facto e que deu origem ao inquérito / processo tutelar educativo (DGRSP, 2022).
Na fase pós-sentencial, o Juiz pode deferir aos serviços da DGRSP a execução da medida e/ou o seu acompanhamento. A DGRSP ou outras entidades responsáveis por assegurar a medida ficam, assim, obrigadas a informar o tribunal sobre a evolução do processo educativo do jovem (i.e., através de relatórios de avaliação periódica ou relatório final), bem como sempre que se verifiquem circunstâncias suscetíveis de fundamentar a revisão da medida (artigo 131 da LTE).
A tomada de decisão judicial: Contributos da avaliação técnica
A tomada de decisão é um processo complexo passível de ser influenciado por enviesamentos cognitivos e fatores emocionais (Moraes & Tabak, 2018; Wistrich et al., 2015). São exemplos de vieses cognitivos as heurísticas, caracterizadas enquanto um atalho mental que ajuda no processamento de informação e organização da mesma, assim como um auxiliador na tomada de decisão (Moraes & Tabak, 2018). Simultaneamente, tendemos a reagir negativamente a informações que não vão de acordo e infirmem as crenças e expectativas que tínhamos como certas (Olson et al., 1996). Neste sentido, assiste-se a uma orientação para não gastar recursos cognitivos adicionais de modo a reconciliar informações ou experiências que contradizem o que esperávamos (McAuliff & Bornstein, 2012).
Consequentemente, o processo de tomada de decisão pode apresentar resultados condicionados, quando o mesmo deveria ser sustentado por uma avaliação objetiva e rigorosa, pesando os benefícios e prejuízos de todas as alternativas disponíveis (Rodrigues et al., 2015). Compreende-se, deste modo, que o magistrado, ao tentar minimizar o erro na sua tomada de decisão recorra a técnicos sociais, que têm a responsabilidade de ajudar este a proceder a tomadas de decisão mais sustentadas (Braman, 2010; Zwartz, 2018).
É cada vez mais evidente o contributo das perícias psicológicas em sentenças e em decisões judiciais, bem como dos relatórios técnicos na decisão dos magistrados (Silva, 2020), em áreas diversas como o exercício das responsabilidades parentais, em processos de decisão ligados a crimes sexuais, ou a processos de promoção e proteção, estando esse caminho a ser percorrido em Portugal há alguns anos a esta parte (Agulhas & Anciães, 2020; Machado & Matos, 2016).
Por exemplo, no estudo de Hecker e Steinberg (2002), que analisou 172 processos de jovens autores de atos delinquentes, verificou-se que os contributos dos relatórios técnicos foram incorporados pelos magistrados na decisão judicial. Também O’Donnell e Lurigio (2008), por exemplo, analisaram 248 avaliações de jovens no sistema de justiça juvenil, verificando-se que as recomendações dos técnicos foram responsáveis por mais de 50% da variação nas recomendações e na tomada de decisão judicial dos magistrados. Em termos de concordância entre a decisão dos magistrados e os pareceres dos peritos forenses, Means et al. (2012) analisaram 200 avaliações forenses, em que se observou uma forte correlação entre as decisões dos magistrados e os pareceres dos peritos forenses.
Especificamente no âmbito da justiça juvenil, a que este estudo se refere, mais recentemente, Alateeq (2017) realizou um estudo qualitativo exploratório, comparando o sistema de justiça juvenil escocês e saudita. Foram elaboradas entrevistas a 24 participantes (magistrados de justiça juvenil e técnicos sociais), concluindo-se que apesar das diferenças entre os sistemas, a avaliação técnica exerce uma influência expressiva na tomada de decisão judicial.
No contexto português, Rocha (2016) procurou compreender o processo de tomada de decisão por medidas restaurativas no âmbito tutelar educativo, tendo concluído que os relatórios sociais e as avaliações psicológicas, ao disponibilizarem um conhecimento sobre a personalidade do jovem, assim como sobre a sua dinâmica familiar e social, apresentam uma proposta de medida tutelar que é seriamente considerada pelos magistrados.
Os resultados sugerem que os relatórios e avaliações auxiliam a decisão dos magistrados, sendo, por conseguinte, reconhecido o trabalho e as propostas dos técnicos da DGRSP. Apesar da relevância deste estudo no âmbito nacional, o mesmo tem como limitação ter sido conduzido com uma amostra de apenas seis magistrados. Em suma, tem havido uma preocupação crescente por conduzir estudos em Portugal que têm procurado conhecer o processo de tomada de decisão (Ribeiro & Manita, 2019; Rodrigues et al., 2015), sendo, contudo, muito exígua a investigação desta temática no âmbito de processos tutelares educativos. Carvalho (2017a) refere, precisamente, a necessidade de se proceder à avaliação e monitorização do sistema tutelar educativo português, sublinhando a escassez de dados existentes e de uma visão global dos processos tutelares (do antes ao após processo) como um dos principais obstáculos ao conhecimento desta realidade.
O presente estudo procura complementar os estudos já existentes, no sentido de compreender em que medida a avaliação técnica é valorada por magistrados no contexto de processos judiciais tutelares educativos, especificamente, nas fases pré e pós-sentenciais, uma vez que os estudos prévios existentes não se debruçaram sobre ambas. A análise documental destes processos permitirá, globalmente, compreender a relação entre o Direito e as Ciências Sociais (nomeadamente a Psicologia e o Serviço Social) e o seu papel nos processos de tomada de decisão judicial, ao explorar que solicitações são efetuadas pelos magistrados aos técnicos, que tipo de informação técnica é valorada nas diferentes fases, e de que forma decorre essa interação.
Método
Materiais
Foram consultados 30 processos judiciais tutelares educativos de 37 jovens, elaborados entre 2008 e 2017.
A maioria dos processos de justiça tutelar educativa analisados corresponde a casos em que esteve envolvido apenas um jovem (n = 26), sendo residuais os casos que envolvem dois jovens (n = 1) ou três (n = 3). Os atos infracionais que originaram a abertura de processos tutelares educativos foram, sobretudo, atos de ofensa contra a integridade física simples, roubo, e ameaça simples (Tabela 1). No que diz respeito ao contato prévio com o sistema judicial por conduta imprópria do jovem infrator, os casos analisados registam em cada categoria o valor de 3%, remetendo para os seguintes atos infracionais: incumprimento de medida tutelar educativa, processos tutelares educativos a decorrer, aplicação de medida tutelar de acompanhamento educativo, roubo agravado, furto, vandalismo, roubo e agressão, ofensa à integridade física.
Atos infracionais | % |
Ofensa contra a integridade física simples | 13,5 |
Roubo | 13,5 |
Ameaça simples | 11 |
Ofensa à integridade física qualificada | 8 |
Furto | 8 |
Tráfico de estupefacientes | 8 |
Dano simples | 5,5 |
Ameaça agravada/qualificada | 5,5 |
Roubo simples na forma tentada | 2,7 |
Furto qualificado | 2,7 |
Burla | 2,7 |
Dano qualificado | 2,7 |
Injúria agravada | 2,7 |
Abuso sexual de crianças | 2,7 |
Condução sem habilitação legal | 2,7 |
Coação/importunação sexual | 2,7 |
Detenção de arma proibida | 2,7 |
Consumo de estupefacientes | 2,7 |
Relativamente a outras tipologias relativas a contactos prévios com o sistema de justiça na trajetória destes jovens, releva-se a presença de medidas de promoção e proteção (sem especificação), seguindo-se o acolhimento residencial e o apoio junto dos pais. Em paralelo, surgem os processos de responsabilidades parentais (Tabela 2).
Procedimentos
Foi obtida aprovação para o desenvolvimento do estudo por parte da Comissão de Ética de Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Minho e foi solicitada autorização a Tribunais de Família e Menores (TFM) em duas comarcas do Norte de Portugal, tendo sido obtidas autorizações por despacho, concedidas pelos Juízes Presidentes das respetivas Comarcas para a consulta de processos tutelares educativos. Realizaram-se consultas exploratórias aos processos tutelares num dos Tribunais, e consultas efetivas que originaram a presente análise processual num outro Tribunal de Família e Menores.
Para a construção da Grelha Analítica dos Processos Tutelares Educativos, recorreu-se a uma abordagem focada na revisão de literatura (Theory-driven), a Lei Tutelar Educativa (LTE) e as diretrizes da DGRSP no âmbito da justiça juvenil em Portugal, e dados empíricos oriundos da consulta exploratória de processos tutelares, com recurso à inclusão de documentação técnica (relatório social, relatório social com avaliação psicológica ou perícia psicológica forense). A grelha foi sendo revista e adaptada durante a recolha de dados, tal como sugerido por Hill et al. (2005). Neste método, de cariz indutivo, a informação surge através dos dados sem a formulação de hipóteses à priori, e utilizam-se amostras de pequena dimensão. As orientações gerais conduzem no sentido da integração de diversos revisores para a promoção de múltiplas perspetivas no processo analítico, tendo a análise sido discutida entre as autoras. Obteve-se deste modo um consenso em que a informação foi resumida num formato conciso e claro e os dados brutos foram transformados em ideias centrais. De seguida, as ideias centrais foram analisadas independentemente e agrupadas em cinco categorias (eixos), presentes na versão final da grelha analítica. No caso deste estudo, as autoras que não fizeram a consulta, foram revendo todos estes dados, garantindo-se uma maior independência na análise de dados.
Por conseguinte, a grelha foi definida em cinco eixos: (1) Natureza do pedido judicial, (2) Características da documentação e avaliação técnica (3) Intervalo de resposta e insistência (4) Contributos da documentação e avaliação técnica para a decisão judicial (5) Interação magistrado-técnico (Tabela 3).
Categorias | Indicadores |
Eixo 1: Natureza do pedido judicial | Caracteriza o pedido de avaliação do magistrado ao técnico: O que é que o magistrado pede? (é feito algum pedido específico da caracterização do jovem? Ato delituoso? enquadramento social, familiar, enquadramento escolar; competências do/a jovem...). |
Eixo 2: Características da documentação e avaliação técnica | Descreve os relatórios e as perícias técnicas (conteúdo, grau de especificidade do relatório, medida tutelar sugerida). |
Eixo 3: Intervalo de resposta e insistência | Caracteriza o tempo decorrido entre o pedido judicial e a resposta técnica. Descreve as insistências judiciais para a obtenção de uma resposta técnica. |
Eixo 4: Contributos da documentação e avaliação técnica para a decisão judicial | Descreve o grau de acordo entre o que o magistrado decide e as sugestões do técnico. |
Eixo 5: Interação magistrado-técnico | Caracteriza a interação entre o magistrado e o técnico social na fase pós-sentencial. Descreve a regularidade da interação, nomeadamente os pedidos e as insistências, assim como as respetivas respostas e informações facultadas pelos técnicos durante a aplicação da medida tutelar. |
Foi depois realizada uma análise aos 30 processos tutelares educativos, recorrendo-se à técnica de análise documental. Segundo Bardin (2010), o objetivo da análise documental consiste em obter o máximo de informação (aspeto quantitativo) com o máximo de pertinência (aspeto qualitativo). É utilizada enquanto procedimento sistemático para rever e avaliar documentos, quer seja através de material impresso ou eletrónico (Bowen, 2009). A análise documental disponibiliza informação - excertos, citações, trechos completos - que são então organizados em temas principais, categorias, e exemplos de casos especificamente através da análise de conteúdo (Labuschagne, 2003).
Deste modo, após o que Bardin (2010) designou como “leitura flutuante”, procedeu-se à definição e enunciação de categorias de análise, procurando-se agrupar as unidades de significação por analogia de sentido. Em termos de análise do material, foi inicialmente realizada uma contagem manual de ocorrência das categorias descritas na grelha analítica, visando a sua conversão em informação percentual. De seguida, foi realizada uma análise de cariz qualitativo que procurou interpretar os conteúdos, de modo a captar as diferenças e semelhanças, comparando-os e interpretando-os.
Resultados
Apresentam-se em seguida os resultados dividindo-se pelas fases pré-sentencial e pós-sentencial.
Fase pré-sentencial
Natureza do pedido judicial. Em termos de solicitações judiciais aos técnicos sociais em fase pré-sentencial, destaca-se o relatório social, encontrando-se presente a sua referência em 94,5% dos processos analisados. No caso do relatório social com acompanhamento psicológico, é registada a sua solicitação em apenas 5,5% dos casos. Enquanto método de avaliação complementar, a perícia psicológica forense foi solicitada em 10,8% dos casos.
Características da documentação e avaliação técnica. Na consulta da documentação técnica, pode observar-se que a estrutura do relatório social e o relatório social com avaliação psicológica obedecem a um modelo padronizado estabelecido pela DGRSP, que se propõe contextualizar e avaliar tecnicamente o enquadramento socioeducativo/ familiar e os elementos de caracterização pessoal/ comportamental do jovem, bem como os recursos pessoais e sociofamiliares. No caso do relatório social com avaliação psicológica, recorre-se de forma mais incisiva à aplicação de instrumentos de avaliação psicológica que permitem identificar os recursos internos e dificuldades emocionais e cognitivas, que poderão estar na base dos problemas comportamentais apresentados pelo jovem. Em relação à perícia psicológica forense, seguindo igualmente um modelo padronizado, esta propõe-se avaliar a personalidade do jovem incidindo nas suas características psíquicas, bem como no seu grau de socialização. Resultou das solicitações dos magistrados aos técnicos a seguinte documentação técnica: relatórios sociais (92%), relatórios sociais com avaliação psicológica (5%). Como instrumento complementar aos relatórios, as perícias sobre a personalidade foram realizadas em 8% dos casos. Registam-se casos em que documentação que tinha sido judicialmente solicitada aos técnicos, não foi elaborada: relatório social (3%) e perícia de personalidade (3%). Resulta ainda da análise que os técnicos indicaram medidas tutelares educativas em 81% dos casos. Verifica-se que em 10,9% dos casos é considerada desnecessária a intervenção tutelar educativa ou o processo tutelar foi arquivado (pela desistência dos ofendidos ou pela maioridade do jovem). Por fim, e de uma forma residual (2,7% dos casos), relata-se a ausência de sugestão de medida tutelar educativa em tempo útil, a impossibilidade de avaliar o menor (2,7%); e a implementação de uma medida de promoção e proteção por uma Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), nomeadamente, o apoio junto dos pais e/ou apoio junto de outro familiar (2,7%).
Intervalo de resposta e insistência. Nos casos do relatório social e do relatório social com avaliação psicológica, observa-se um incumprimento de resposta por parte do técnico dentro do prazo legal na generalidade dos casos (85%), i.e., no prazo de 30 dias. Relativamente às perícias psicológicas forenses, assiste-se também a um incumprimento em 66,7% dos casos, i. e. no prazo de 60 dias. Em termos de insistências judiciais para a realização do relatório social / relatório social com avaliação psicológica, a taxa situa-se nos 29,6%. Em relação à prorrogação do prazo concedida pelo magistrado para a elaboração do relatório, a taxa é de 18,5%.
Contributos da documentação técnica para a decisão judicial. No que diz respeito às medidas tutelares educativas decretadas, estas são na sua maioria em meio não institucional (90%), sendo uma minoria decretada em meio institucional (10%). Quanto à sua caracterização, a prestação de tarefas a favor da comunidade (40%) destaca-se enquanto a medida tutelar de maior prevalência, seguida pela imposição de obrigações (30%), e pelo acompanhamento educativo (16,8%). Com uma incidência diminuta, foram aplicadas as medidas tutelares de admoestação (3,3%), reparação ao ofendido (3,3%), frequência de programas formativos (3,3%) e internamento em centro educativo (3,3%).
As sugestões de medidas tutelares educativas estão presentes nos relatórios sociais, com exceção de casos em que não se verifique a necessidade de prossecução do processo tutelar educativo. Em termos de correspondência entre as sugestões de medidas e a tomada de decisão judicial, a taxa situa-se nos 93,3%.
Os contributos da documentação técnica podem ainda ser identificados na integração de citações de relatórios sociais em diversas sentenças, nomeadamente “concretamente, decorre do referido relatório que a menor revela lacunas ao nível da capacidade para identificar as consequências que advêm para si e para os outros dos seus comportamentos” (P3); “Tudo como consta do relatório elaborado pela DGRSP, o menor integra o agregado monoparental, do qual fazem parte a progenitora. A dinâmica foi caracterizada como afetuosa, revelando o jovem sentimentos de pertença” (P25); “O processo socioeducativo do jovem denota vulnerabilidades significativas ao nível da supervisão parental uma vez que a progenitora se revela muito permissiva e desculpabilizante relativamente às condutas desajustadas do jovem (...) comportamentos disruptivos principalmente em contexto escolar.” (P24). “O jovem tem um percurso de vida complexo marcado pela separação precoce dos progenitores. No plano pessoal, é uma jovem emocionalmente instável, com fraca tolerância à frustração” (P26).
No caso do relatório social com avaliação psicológica, pode ler-se num dos processos analisados, “como se refere no relatório pericial, o jovem tende a manifestar dificuldades de interação, o que aliado a um padrão de resposta tendencialmente impulsivo e agressivo…” (P19). No caso das perícias psicológicas forenses, são exemplos: “o examinando apresenta um discurso coerente e congruente em diferentes momentos da entrevista. O tipo de discurso e de narrativa, relativo às situações relatadas pelo examinado, são congruentes com o seu nível de desenvolvimento e consonantes com os dados da avaliação psicológica, pelo que é de admitir não ter havido influência de outra pessoa na elaboração da história.” (P21); “O percurso de desenvolvimento psicossocial do menor apresenta indicadores de risco associados quer aos défices de competência cognitivo-emocionais, quer às limitações ao nível da estimulação/supervisão socioeducativa” (P7).
São ainda mencionadas nas decisões judiciais citações face aos objetivos e à pertinência da Lei Tutelar Educativa, “educação do menor para o direito, impondo-se uma conceção minimalista e excecional na área educativa” (P2); “A intervenção tutelar educativa revela-se fundamental não só para responsabilizar o jovem pelos factos praticados, mas essencialmente no sentido de lhe serem incutidos valores e regras fundamentais de vivência lícita em sociedade” (P24); “No preâmbulo da Lei Tutelar Educativa refere-se que “o mundo do direito a que a formação da personalidade do menor deve aspirar é o que vigora na comunidade” (P14); “o menor necessita de ser educado para o Direito uma vez que os seus valores de respeito pelos outros e pelo seu património se revelam pouco consistentes” (P18).
Fase pós-sentencial
Interação magistrado-técnico. Na fase pós-sentencial, verificou-se uma partilha diversificada de informações entre os magistrados e os técnicos sociais, nomeadamente: informação de caracterização de medida tutelar educativa; relatório de execução da medida tutelar; informação de caracterização de medida tutelar educativa; projeto educativo pessoal (PEP); e plano de reinserção social.
Pode ainda observar-se uma interação entre técnicos e magistrados (73,3%), para efeitos de acompanhamento e revisão das medidas tutelares educativas, cuja periodicidade é muito variável (oscilando entre 1 mês e 6 meses e meio). No caso das propostas de revisão de medida tutelar, verifica-se que a proposta dos técnicos foi aceite em 87,5% dos casos. Quando a revisão de medida não é aceite (12,5 %), tal é justificado pelo facto de o jovem já ter atingido a maioridade, ou por já ter cumprido metade das horas da medida que lhe havia sido imposta, “assumindo condutas mais ajustadas na vertente escolar” (P13). De salientar, a ausência de referência ou proposta de implementação de um processo de follow up em qualquer dos casos analisados.
Discussão
O objetivo central do presente estudo consistiu em procurar analisar em que medida a avaliação técnica é valorada por magistrados, considerando não apenas a fase pré mas também a fase pós-sentencial no contexto de processos tutelares educativos. Não obstante esta análise ter como principal limitação ter sido conduzida apenas num Tribunal de Família e Menores, a mesma permite extrair um conjunto de reflexões importantes.
Em termos de documentação técnica, na fase pré-sentencial o relatório social destaca-se como o meio processual de rotina e de maior impacto na avaliação técnica solicitada pelo magistrado, o que parece justificado pela frequência da sua solicitação e pela sua utilidade primordial na caracterização do jovem infrator e no papel desempenhado na sugestão/indicação de medidas tutelares educativas. Castro (2015) sublinha a necessidade de, no âmbito da justiça juvenil, se privilegiar o recurso a medidas menos severas, em termos de duração e de intensidade, e advoga a adoção de práticas de intervenção diferenciadas, concebidas com base na evidência científica, suportadas por uma avaliação das necessidades específicas dos jovens e adequadamente implementadas.
Já no caso do relatório social com acompanhamento psicológico e da perícia psicológica forense, apresentam uma baixa incidência em termos de solicitação judicial nos casos analisados. Parece, contudo, compreensível o recurso significativamente menor a estes dois métodos, considerando que a sua solicitação é exigida apenas em casos de aplicação de medidas de internamento (em diferentes regimes), sendo de salientar que esta medida tutelar foi aplicada de modo residual, como seria expectável. Os resultados acompanham a afirmação de Carvalho (2017b), em que de acordo com os normativos internacionais ratificados pelo Estado Português, a privação de liberdade, em qualquer uma das suas modalidades, deve ser usada somente como medida de último recurso.
Na globalidade dos relatórios sociais analisados estão presentes sugestões de medidas tutelares educativas indicadas pelos técnicos sociais. Este facto aponta para o caráter sistemático desta indicação como um procedimento institucionalizado (definido na LTE), confirmado através do elevado número de medidas tutelares educativas decretadas pelos magistrados. Por seu lado, Mosqueira (2013) relata no seu estudo que procuradores e magistrados esperam a indicação explícita do técnico a partir da sua avaliação da medida considerada conveniente para ser aplicada ao caso.
A concordância elevada entre as medidas tutelares propostas e as medidas decretadas judicialmente vai ao encontro de estudos, tais como o de Means et al. (2012) e Melton et al. (2018), em que investigadores encontraram de modo regular um alto grau de concordância entre as opiniões dos técnicos forenses e as conclusões finais de decisores legais. Observa-se igualmente, em termos de revisão de medida tutelar, uma concordância elevada entre as sugestões técnicas e as decisões judiciais, revalidando o padrão de atuação dos magistrados de concordância significativa com as sugestões dos técnicos no âmbito das medidas tutelares educativas.
Em termos de follow up, em todos os casos analisados, assiste-se à completa ausência de acompanhamento do percurso posterior destes jovens que indicie a efetividade das medidas tutelares num plano específico, e que seja promotora da educação para o direito e da desistência criminal, cumprindo os pressupostos da justiça juvenil num plano mais amplo. A DGRSP, numa publicação própria (2018), tem realizado alguns estudos que visam analisar a reincidência e o ajustamento de jovens anteriormente sujeitos a certas medidas tutelares (e.g., acompanhamento educativo, internamento em centro educativo). No entanto, é reconhecido que para que seja possível avaliar o impacto da intervenção da DGRSP na área da justiça juvenil, será necessário que a avaliação de follow-up se estenda a todas as medidas tutelares, como é realizado noutros países (Cóias et al., 2018). A este respeito, as temáticas de reincidência ou de reabilitação no âmbito da justiça juvenil, parecem cada vez mais afirmar-se como áreas fundamentais para realização de estudos futuros (Ramires & Cóias, 2020).
Em suma, este estudo permitiu constatar que o relatório social e/ou perícia psicológica se assumem enquanto importantes instrumentos de apoio na decisão judicial dos magistrados, demonstrando igualmente uma concordância elevada entre a sugestão de medidas tutelares por parte dos técnicos e a aplicação por parte dos magistrados. Para além disso, este estudo ao ter definido pontos de reflexão sobre os contributos da documentação técnica para a tomada de decisão judicial no âmbito tutelar educativo, pode vir a contribuir para ações de capacitação de magistrados e técnicos que permitam refletir sobre o processo de tomada de decisão e que variáveis parecem contribuir para o efeito. A partir da leitura integral dos processos, conclui-se a existência de uma interação entre magistrados e técnicos desde o momento inicial ao momento final dos processos.
Além disso, poderá considerar-se que este estudo ao ter definido pontos de reflexão sobre os contributos da documentação técnica para a tomada de decisão judicial no âmbito tutelar educativo, estabeleceu pistas de análise para que futuramente se realizem novos estudos onde se discuta o papel do direito e dos relatórios e perícias, entrevistando, para o efeito, os profissionais da magistratura e técnicos e/ou peritos no âmbito tutelar educativo. Neste sentido, poder-se-á ter acesso às representações e perceções de magistrados e técnicos sobre a avaliação técnica, assim como relativamente à intervenção personalizada em jovens sinalizados no âmbito tutelar educativo. Finalmente, fará sentido explorar a perspetiva de ambos os profissionais sobre o processo de interdependência e a cooperação desenvolvido no âmbito tutelar educativo.
Declaração de contribuição de autoria CRediT
Elisabete Pessanha: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Aquisição de financiamento; Investigação; Metodologia; Recursos; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição. Joana Alexandre: Curadoria dos dados; Supervisão; Validação; Visualização; Redação - revisão e edição. Ângela Maia: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Aquisição de financiamento; Investigação; Metodologia; Supervisão; Validação; Visualização; Redação - revisão e edição.