Os números cada vez mais elevados de pessoas acima do peso e/ou com transtornos alimentares têm motivado o desenvolvimento de estudos mais amplos e aprofundados a respeito do comportamento alimentar dos indivíduos (Viana & Sinde, 2003). Por comportamento alimentar entende-se um conjunto de ações relacionadas ao alimento, que engloba desde a escolha até a ingestão propriamente dita, podendo tal processo ser tanto saudável quanto pouco saudável (Vaz & Bennemann, 2014; Viana & Sinde, 2003).
Tais comportamentos podem ser influenciados por uma série de motivos. Dentre estes, destacam-se o fator fisiológico, uma vez que alerta o indivíduo para as sensações de fome e saciedade que possa estar sentindo e o fator emocional, relacionado à influência das emoções no processo alimentar (Crockett et al., 2015; Spoor et al., 2007; Tylka, 2006). O fator fisiológico pode ser considerado uma das premissas da alimentação intuitiva e é entendido como um estilo de alimentação em que o indivíduo é guiado mais por suas necessidades fisiológicas e nutricionais ao se alimentar do que por razões emocionais ou ambientais (Sairanen, et al. 2015; Tylka, 2006).
A alimentação intuitiva tem sido considerada um estilo alimentar adaptativo, uma vez que se traduz como uma resposta às necessidades do corpo a partir da percepção e compreensão que os indivíduos têm destas necessidades (Carper et al., 2000; Tribole & Resch, 2012). Tribole e Resch (2012) sinalizam que pessoas que se alimentam intuitivamente apresentam menor preocupação em controlar a ingestão de determinados alimentos e mais facilidade de se comer quando estão com fome e de parar quando estão satisfeitos. Segundo as mesmas autoras verifica-se, portanto, uma conexão entre aquilo que o corpo precisa e as escolhas do indivíduo que, em sua maioria, acabam sendo mais saudáveis e favorecendo a manutenção natural do peso (Tribole & Resch, 2012).
Estudos sobre a alimentação intuitiva demonstram associações positivas entre este estilo alimentar e indicadores de saúde e bem estar físico e psicológico, como: atitude positiva com os alimentos e com o próprio corpo, consciência e aceitação das próprias emoções, prática de atividades físicas, manutenção do peso, além de relações negativas entre este comportamento e sintomas psicológicos de depressão e insatisfação com o corpo (Shouse & Nilson, 2011; Tribole & Resch, 2012; Tylka, 2006). Todavia, a partir da revisão bibliográfica realizada para este estudo, verificou-se que ainda são escassos os estudos sobre a alimentação intuitiva, sobretudo no Brasil. Além disso, percebe-se que, especificamente no campo da Psicologia, as pesquisas sobre o comportamento alimentar têm se concentrado mais nas desordens alimentares do que nos comportamentos saudáveis (Sairanen et al., 2015).
Dessa forma, observa-se um crescimento dos estudos acerca da alimentação emocional e da capacidade dos estados emocionais para desencadearem comportamentos alimentares, principalmente disfuncionais (Macht, 2008; Sproesser et al., 2011). De acordo com Macht (2008) em maior ou menor grau, boa parte das pessoas utiliza a alimentação como forma de minimizar o efeito das emoções em algum momento da vida. Porém, quando a alimentação é feita mais frequentemente como alívio de emoções negativas do que pela motivação fisiológica para comer, estaremos diante de um padrão de alimentação emocional (Macht, 2008).
A literatura internacional apresenta importantes associações entre a alimentação emocional e escolhas por alimentos calóricos, gordurosos e de rápido acesso (junkfood), bem como com o desenvolvimento de transtornos alimentares, ganho de peso e com sintomas de ansiedade, estresse e depressão (Crockett, et al., 2015; Loth et al., 2008; Nguyen-Rodriguez et al., 2009; Ortega et al., 2013; Schneider et al., 2010; Tan & Chao, 2013). Já no contexto nacional, verificam-se correlações positivas entre a alimentação emocional e maiores níveis de estresse, descontrole alimentar, índice de massa corporal mais elevado e ainda, maior circunferência abdominal (Natacci & Ferreira Junior, 2011; Penaforte et al., 2018). No entanto, o reduzido número de investigações sobre este comportamento alimentar no Brasil, sinaliza uma lacuna a ser preenchida, principalmente em razão dos dados alarmantes acerca do crescimento da obesidade no país e da relação que vem sendo observada entre este incremento e a alimentação emocional (IBGE, 2016).
Achados como os supracitados, incitam a ciência a buscar formas mais efetivas para alterar os comportamentos alimentares inadequados, bem como para promover o desenvolvimento de hábitos mais equilibrados. Neste sentido, percebe-se nos últimos anos um aumento das pesquisas a respeito do conceito de Mindfulness no contexto das escolhas alimentares (Warren et al., 2017).
Apesar de não haver um consenso acerca de sua definição, o conceito de Mindfulness pode ser compreendido como uma capacidade cognitiva que possibilita ao indivíduo prestar atenção conscientemente tanto aos seus estímulos internos (sensações corporais, pensamentos e emoções), quanto aos estímulos externos (contexto, eventos externos a si) sem, no entanto, julgá-los como bons ou ruins e sem reagir impulsivamente a eles (Brown & Ryan, 2003). Autores do tema entendem ainda o conceito Mindfulness como multifacetado, ou seja, composto por dimensões diferentes. São elas: observar (reconhecer e prestar atenção aos pensamentos, emoções e sensações), descrever (colocar os pensamentos, emoções e sensações em palavras), não julgar (aceitar os pensamentos, emoções e sensações sem avaliá-los imediatamente como bons ou ruins), não reagir (perceber os pensamentos, emoções e sensações sem reagir impulsivamente) e agir com consciência (manter-se presente e agir de forma deliberada) (Baer, 2011; Brown & Ryan, 2003).
No que Baer ge o comportamento alimentar, pesquisas sugerem que a capacidade de Mindfulness pode auxiliar os indivíduos a se conectarem com suas experiências internas (como as emoções, por exemplo), além de aumentar a sensibilidade às dicas emitidas pelo corpo para se alimentar (Sairanen et al., 2015). Neste sentido, evidenciam-se associações positivas entre esta capacidade e comportamentos alimentares mais saudáveis (Jordan et al., 2014; Langer & Maldoveanu, 2000; Masicampo & Baumeister, 2007; Sairanen et al., 2015; Warren et al., 2017), assim como, também são verificadas associações negativas da capacidade de Mindfulness com transtornos alimentares como a compulsão alimentar e alimentação emocional. (O'Reilly et al., 2014; Tak et al., 2015).
No que diz respeito às dimensões de Mindfulness, não foram identificadas muitas pesquisas que explorassem as facetas separadamente, a partir da revisão realizada para este estudo. Todavia, a maior parte destas, sinaliza relações inversamente proporcionais entre as dimensões e a incidência de sintomas psicológicos. Sairanen et al., (2015), sugerem que as dimensões possam ter associações diferentes com determinados comportamentos alimentares. O estudo de Adamns et al. (2012) ratifica esta informação ao demonstrar uma relação e negativa direta entre as dimensões ‘não julgar’ e ‘descrever’ com menores sintomas de bulimia, assim como Lavender, Gratz, e Tull (2011) demonstraram que ‘não reagir’, ‘agir com consciência’ e ‘não julgar’ predisseram menos sintomas anoréxicos. No mesmo sentido e, especificamente em relação as dimensões de Mindfulness e os comportamentos alimentares investigados neste estudo, Levin et al. (2014), identificaram que ‘agir com consciência’, ‘não julgar’, ‘não reagir’ e ‘descrever’ estavam relacionados negativamente com comportamentos alimentares desadaptativos como a compulsão alimentar e a alimentação emocional em uma amostra de obesos à espera de cirurgia bariátrica. Tak et al., (2015) avançou neste entendimento, verificando em uma amostra de adultos diabéticos, que altos níveis de ‘descrever’, ‘não julgar’ e ‘agir com consciência’ eram capazes de predizer menores níveis alimentação emocional. Já, em relação à alimentação intuitiva, Sairanen et al., (2015) realizaram um dos poucos estudos encontrados com o tema. A pesquisa destes autores verificou que todas as facetas do Mindfulness mostraram alguma relação positiva com distintos fatores da alimentação intuitiva e que todas as dimensões da alimentação intuitiva relacionaram-se com menores índices de massa corporal (IMC), em uma amostra de adultos com sobrepeso e obesidade (Sairanen et al., 2015).
Diante disso, o presente estudo objetivou analisar as associações e verificar o poder preditivo do total e das dimensões de Mindfulness para os comportamentos alimentares, alimentação intuitiva e emocional, visto que estas dimensões podem apresentar-se relativamente independentes e, portanto, terem pesos distintos na relação com os comportamentos alimentares estudados. Com isso, busca-se expandir estes achados no cenário nacional, bem como verificar a existência de relações entre estas variáveis na população em geral e não apenas em subgrupos específicos, visto que grande parte das pesquisas sobre Mindfulness e comportamentos alimentares costuma atentar-se para populações clínicas (Höppener et al., 2018).
Método
Delineamento
Este estudo apresentou um delineamento quantitativo, descritivo e explicativo (Sampieri et al., 2013).
Participantes
A população alvo desta pesquisa foi selecionada por conveniência e constituída de 209 pessoas, maiores de 18 anos. A amostra foi composta por 186 mulheres (89%) e 23 homens (11%). Os participantes eram em sua maioria pós graduados (44,5%, n = 93), com renda superior a 4 salários-mínimos (56%, n = 117) e residentes da região Sul do país (74,2%, n = 155). 43,1% (n = 90) encontravam-se solteiros e 41,1% (n = 86) casados. 51,7% (n = 108) referiram praticar atividades físicas, enquanto que 28,2% (n = 59) disseram praticar alguma atividade meditativa pelo menos uma vez por semana. Com relação aos hábitos alimentares, 88,5% (n = 185) referiram não estar realizando qualquer tipo de dieta, porém 71,8% (n = 150) disseram ter realizado dieta em algum momento da vida. De maneira geral, 56% (n = 117) classificaram sua alimentação como saudável na maior parte do tempo e 27,8% (n = 58) da amostra considera sua alimentação como pouco saudável. Ademais, 84,7% (n = 177) não faziam uso de medicações psiquiátricas e 69,4% (n = 145) referiram não realizar psicoterapia.
Instrumentos
Questionário Sociodemográfico. Elaborado para o presente estudo, investigou dados como idade, sexo, renda, estado civil, realização de atividades físicas, atividade meditativa, realização de psicoterapia, uso de medicação psiquiátrica.
Escala de Alimentação Intuitiva IES-2 (Tylka & Kroon Van Diest, 2013): A Escala de Alimentação Intuitiva busca avaliar a tendência a se alimentar intuitivamente. Esta escala é constituída de 23 itens que compõe quatro subescalas: 1) Comer por razões físicas ao invés de emocionais (EPR); 2) Permissão para comer sem restrições (UPE); 3) Confiança nas dicas internas de fome e saciedade (RHSC); 4) Escolha congruente entre corpo-comida (B-FCC). Os participantes são orientados a responderem uma escala tipo Likert (1 = Discordo totalmente a 5 = Concordo totalmente), selecionando a opção que melhor descreve suas atitudes e comportamentos. Altas pontuações sugerem altos níveis de alimentação intuitiva. Os alfas de Cronbach do instrumento para o presente estudo foram: Total: 0,77; UPE: 0,81; EPR: 0,69; RHSC: 0,74; B-FCC: 0,67. A versão da IES-2 em português que foi utilizada neste estudo está em processo de adaptação por Lucena-Santos, Oliveira e Pinto- Gouveia.
Escala de Alimentação Emocional - EES (Arnow et al., 1995): Esta escala é constituída por 25 itens que avaliam o quanto o ato de comer é motivado por emoções negativas e é dividida em três subescalas: Raiva, Ansiedade e Depressão. Os participantes são orientados a responder o quanto sentem vontade de comer sob a influência de emoções específicas, variando em cinco pontos. Os alfas de Cronbach do instrumento para o presente estudo foram: Total: 0,94; Subescala Raiva: 0,90; Subescala Ansiedade: 0,87; Subescala Depressão: 0,81. A versão em português que foi utilizada neste estudo está em processo de adaptação por Lucena-Santos et al.
Questionário das Cinco Facetas de Mindfulness - FFMQ (Baer et al., 2006): Avalia as 5 dimensões de Mindfulness. Para a aplicação do teste, os respondentes devem avaliar-se a partir da frequência com que cada uma das situações abordadas nos itens aconteceu, baseando-se nas experiências dos últimos meses. Na escala, 1 representa nunca ou quase nunca e 5 representa sempre ou quase sempre. São exemplos de itens: “Percebo meus sentimentos e emoções sem ter que reagir a eles” e “em situações difíceis, consigo pausar sem reagir imediatamente”. No estudo da versão brasileira, os autores efetuaram adaptação dos itens a partir de uma amostra de adultos (n=395), sendo uma parte composta por meditadores, os quais também responderam a uma escala de bem-estar subjetivo. A análise fatorial indicou uma versão com sete fatores (dois fatores se subdividiram). Segundo os autores, o fator ‘Descrever’ dividiu-se em função da formulação dos itens, de forma que eram positivos no quarto fator e negativos no quinto. Agir com consciência dividiu-se em comportamentos de piloto automático e comportamentos de agir distraidamente (Barros et al., 2014). Os alfas de Cronbach do instrumento para o presente estudo foram: Total: 0,78; Não Julgar: 0,85; Agir com consciência - piloto: 0,81; Observar: 0,75; Descrever: 0,69; Descrever negativo: 0,65; Não reagir: 0,73; Agir com consciência - distração: 0,78.
Procedimento
Os princípios da ética em pesquisa com seres humanos foram respeitados em todas as etapas deste estudo e seguiram as diretrizes propostas pelas legislações brasileiras, tendo como base a Resolução nº. 510/2016 do Ministério da Saúde e as orientações do Comitê de Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, ao qual foi submetido e aprovado sob o parecer de número 2.715.285. A coleta de dados foi realizada pela internet por meio de formulários criados na plataforma Google Docs e a partir da divulgação da pesquisa por meio de correspondência eletrônica (e-mail) e da rede social Facebook, de forma pública e através de grupos com temas afins ao tema da pesquisa. Após a leitura dos objetivos e critérios na plataforma, os indivíduos que concordaram em participar, consentiram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e puderam responder a pesquisa.
Análise de Dados
Os dados foram analisados com o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), v. 22.0 (IBM Corp., 2013) considerando o nível de significância de 5%. Inicialmente, foram realizadas análises descritivas para calcular as frequências e caracterizar a amostra. Realizou-se o teste de Kolmogorov-Smirnovque atestou a distribuição normal da mesma. Posteriormente, para avaliar a existência de associação entre os escores totais e por dimensão de Mindfulness e os escores de Alimentação Emocional e Intuitiva foi utilizado o coeficiente de correlação de Pearson. As regressões, linear e múltipla, foram realizadas a fim de identificar os fatores preditores do escore total de EES (alimentação emocional) e IES (alimentação intuitiva), sendo que as variáveis independentes que compuseram o modelo foram aquelas que demonstraram maiores correlações com as variáveis desfecho nas análises bivariadas, no caso, o escore total de Mindfulnesse de algumas dimensões. Na construção do modelo adotou-se o método Stepwise, que permite selecionar, através de critérios estatísticos as variáveis com capacidade preditiva de modo a que a análise prosseguisse apenas com essas variáveis.
Resultados
As análises de correlação entre os escores totais e por dimensões de Mindfulness e os comportamentos alimentares, demonstraram uma correlação significativa e positiva de fracas à moderadas entre maiores níveis de Mindfulness e a alimentação intuitiva e entre as dimensões “observar” e “não reagir” e o total de alimentação intuitiva. Por outro lado, foram verificadas correlações inversas fracas e moderadas entre maiores níveis de Mindfulness e os escores de alimentação emocional, bem como entre as dimensões ‘agir com consciência - piloto automático’; ‘descrever - negativo’; ‘não reagir’ e ‘agir com consciência - distração’ e o escore total de alimentação emocional. Não foram verificadas correlações significativas entre as dimensões ‘não julgar’ e ‘descrever’ com ambos os estilos de alimentação (Quadro 1).
A partir das análises bivariadas, foram selecionadas as variáveis que compuseram os modelos de regressão a serem testados. Dessa forma, no modelo de regressão linear, objetivou-se verificar o poder preditivo de maiores níveis de Mindfulness para os comportamentos alimentares os quais foram respectivamente, 5% para a alimentação intuitiva e 10% para a redução da alimentação emocional conforme consta no Quadro 2.
Avançando o entendimento acerca da relação entre Mindfulness e comportamento alimentar, utilizou-se a análise de regressão linear múltipla, a fim de especificar o poder preditivo de cada dimensão de Mindfulness para o total de alimentação intuitiva e emocional. Os resultados que podem ser vistos nos Quadros 3 e 4 nos mostram que elevadas pontuações nas dimensões ‘observar’ e ‘não reagir’ juntas predizem 11,8% da alimentação intuitiva, enquanto que elevadas pontuações em ‘não reagir’ e ‘agir com consciência - piloto automático’ predizem 14,8% da redução na alimentação emocional.
Discussão
O presente estudo buscou investigar as associações existentes entre a habilidade de Mindfulness como qualidade geral e de suas dimensões e o comportamento alimentar (alimentação emocional e intuitiva) em adultos, bem como examinar o valor preditivo do total e das dimensões do conceito para os estilos alimentares em questão. Diante disso, pode-se dizer que os resultados obtidos vão ao encontro do observado em pesquisas pregressas que mostram que a capacidade de Mindfulness está, de fato, relacionada positivamente com comportamentos alimentares adaptativos e negativamente com comportamentos desadaptativos (Adams et al., 2012; Lavender et al., 2011; Sairanen et al., 2015).
Ao investigar o comportamento alimentar adaptativo, verificou-se que maiores escores de Mindfulness e em algumas de suas dimensões (‘observar’ e ‘não reagir’) demonstraram correlações significativas com a alimentação intuitiva. Isso indica que quanto maior é a capacidade de Mindfulness e, principalmente, quanto mais o individuo consegue identificar suas experiências internas (‘observar’), assim como manter controle sobre o próprio comportamento, independentemente do desconforto que se vivencia (‘não reagir’), maior é a sua tendência a alimentar-se em função de suas necessidades fisiológicas.
Além disso, as análises de regressão demonstraram que tanto maiores pontuações de Mindfulness, quanto em determinadas dimensões explicam respectivamente, 5% e 11,8% na variância da alimentação intuitiva. Isto se mostra coerente aos achados anteriores indicando que quando o individuo consegue prestar atenção ao que acontece internamente consigo, ele não apenas se torna mais apto para perceber suas as emoções desagradáveis, criando espaço para não reagir instantaneamente a elas, como também consegue conectar-se com seus sinais de fome e saciedade, abrindo a possibilidade tanto para fazer escolhas mais saudáveis, como para saber quanto comer e quando parar de comer (Sairanen et al., 2015).
É importante destacar que a dimensão ‘observar’ se mostrou relevante para explicar a alimentação intuitiva na amostra estudada, porém este achado é contrário ao que comumente tem sido visto na literatura. A maior parte das pesquisas acerca do tema indica a existência de associações positivas entre esta dimensão e comportamentos alimentares patológicos, indicando que ‘observar’ pode não se apresentar necessariamente benéfico para a promoção de comportamentos alimentares saudáveis (Lattimore et al.,2011; Tak et al., 2015). No entanto, a pesquisa de Eisenlohr-Moul et al., (2012) contradiz esta informação ao identificar em sua amostra maior capacidade de controle comportamental referente ao uso de substâncias ilícitas quando há interação positiva entre facetas ‘observar’ e ‘não reagir’. Isso nos leva a crer que a dimensão ’observar’ pode apresentar-se mais efetiva para promoção de comportamentos saudáveis quando combinada com outras dimensões de Mindfulness. Soma-se a isso, o fato de que os aspectos avaliados na dimensão ‘observar’, em geral parecem estar mais relacionados à percepção sensorial a partir de estímulos externos (Levin et al., 2014). Estas informações auxiliam a compreensão acerca do motivo pelo qual a combinação das pontuações altas nas duas dimensões se mostrou relevante para explicar a alimentação intuitiva, visto que este conceito tem como premissa alimentar-se em função destes mesmos sinais sensoriais.
Os resultados obtidos demonstraram ainda que a habilidade de Mindfulness não apenas pode estar associada com o desenvolvimento de um comportamento alimentar saudável como também pode se relacionar com um decréscimo do comportamento patológico. Assim, ao explorar a alimentação emocional, constatou-se uma associação inversa entre maiores escores de Mindfulness e em algumas de suas dimensões (‘descrever-negativo’, ‘não reagir’, ‘agir com consciência - piloto automático’ e ‘agir com consciência - distração’) e a alimentação emocional, sinalizando que as habilidades de traduzir em palavras aquilo que sentimos, não reagir a esses sentimentos imediatamente, bem como a habilidade de agir de forma deliberada, podem ser importantes para a redução do uso da alimentação como estratégia de alivio de estados emocionais desconfortáveis.
A partir do observado nas análises, as habilidades citadas acima, com exceção de ‘descrever - negativo e ‘agir com consciência - distração’ foram responsáveis por explicar 14,8% do decréscimo da alimentação emocional. De maneira geral, estudos pregressos que exploraram as dimensões de Mindfulness no âmbito do comportamento alimentar patológico indicam que menores habilidades em ‘descrever’, ‘não julgar’, ‘não reagir’ e ‘agir com consciência’ estão relacionadas com uma maior incidência de comportamentos alimentares disfuncionais (Levin et al., 2014). O estudo de Tak et al., (2015) avançou neste conhecimento e demonstrou, no entanto, que a dimensão ‘agir com consciência’ era a principal preditora da alimentação emocional em uma amostra de adultos com diabetes. De fato, déficits na dimensão ‘agir com consciência’, têm sido relacionados com comportamentos alimentares patológicos em grande parte das pesquisas sobre o tema e, a respeito disso, a literatura nos mostra que quanto mais o individuo deixa-se guiar por um piloto automático, sem refletir sobre a experiência em si, maior é a probabilidade de alimentar-se impulsivamente (Levin et al., 2014; Höppener et al., 2018; Kristeller & Wolever, 2011; Tak, 2015).
Todavia, a capacidade de ‘não reagir’ também pode se mostrar importante para a redução de comportamentos alimentares patológicos. Esta informação pode ser comprovada a partir do estudo de Lavender et al., (2011), no qual indivíduos que eram capazes de perceber os próprios estímulos internos sem, no entanto, agir instantaneamente na tentativa de evitá-los ou aliviá-los, apresentavam menores níveis de alimentação patológica. Conforme estes autores, isso acontece, pois estas habilidades parecem potencializar a regulação emocional, reduzindo os comportamentos automáticos e favorecendo a capacidade de autocontrole.
Ademais, diferentemente do esperado a amostra investigada no estudo apresentou prevalência do sexo feminino sobre o masculino. Isso pode ser explicado uma vez que as mulheres se mostram mais propensas a envolverem-se em comportamentos alimentares disfuncionais e, portanto, podem apresentar maior interesse sobre o tema em questão (Bruce & Ricciardelli, 2016). De qualquer forma, os resultados encontrados indicam que maiores níveis de Mindfulness não apenas estão associados como também contribuem para explicar maior capacidade de alimentação intuitiva e menor tendência à alimentação emocional. Além disso, o poder preditivo de algumas dimensões para ambos os comportamentos alimentares sinaliza, adicionalmente, a existência de certa independência entre as facetas, sendo que ‘observar’, ‘não reagir’ e ‘agir com consciência’ parecem ter maior relevância que outras dimensões para a compreensão dos comportamentos investigados.
O entendimento de que facetas diferentes possam ter pesos diferentes para determinados comportamentos já havia sido constatado em pesquisas anteriores. Entretanto, este estudo incrementa a literatura existente ao confirmar as relações encontradas em uma população com características diferentes (em contraposição a maioria dos estudos com amostras clínicas), como também residentes do Brasil. Isso significa que independentemente de suas peculiaridades, do seu peso e ainda de apresentarem ou não transtornos alimentares associados, de maneira geral, é possível que os indivíduos desenvolvam uma relação menos impulsiva e mais consciente em relação à comida, a partir do aperfeiçoamento das habilidades de Mindfulness.
No entanto, a relação positiva da faceta ‘observar’ com a alimentação intuitiva sinaliza a necessidade de novos estudos que contemplem e aprofundem o entendimento desta habilidade com o intuito de confirmar sua influência na formação de melhores hábitos alimentares na população, visto que esta dimensão demonstrou associações positivas com comportamentos alimentares disfuncionais em estudos pregressos. Além disso, o poder preditivo das dimensões ‘observar’ e ‘não reagir’ para a alimentação intuitiva e de ‘agir com consciência - piloto automático’ e ‘não reagir’ para menores escores de alimentação emocional indicam às futuras pesquisas experimentais uma possível ênfase destas habilidades em suas intervenções, a fim de comprovar o real impacto destas para a formação de hábitos alimentares mais saudáveis e para a minimização de comportamentos alimentares patológicos, especificamente para a alimentação emocional. Todavia, os valores preditivos encontrados para ambos os estilos alimentares sugerem a necessidade da exploração de potenciais variáveis mediadoras que possam contribuir para uma melhor explicação desta relação.
Uma limitação deste estudo diz respeito ao uso de instrumentos baseados em autorrelato. Entende-se que esta forma de medição possa incitar respostas “aceitáveis” ou mesmo comportamentos que os indivíduos acreditam ter, ao invés do comportamento em si. Ainda, o fato de a pesquisa ter sido realizada através de formulários disponibilizados na internet impede que dúvidas sejam sanadas de imediato e que explicações mais detalhadas sobre os questionários sejam feitas previamente. Dessa forma, sugere-se que pesquisas futuras possam coletar os dados presencialmente, a fim de evitar este tipo de limitação.
Adicionalmente, a despeito do que era desejado, a prevalência de mulheres, pós graduadas, com renda acima de 4 salários mínimos e residentes da região Sul do país, observadas nesta amostra pode ter tido influência nos resultados das escalas e, a partir desta caracterização, os resultados devem ser interpretados com cautela, particularmente quanto a expansão para o cenário nacional. Assim, sugere-se que estudos futuros busquem amostras mais heterogêneas, a fim de garantir maior generalização dos resultados.