Dentro da temática da saúde mental, o Stress Ocupacional (SO) é uma área emergente: a exposição prolongada pode prejudicar a saúde física e mental do trabalhador, podendo resultar num défice funcional temporário ou permanente, com inegável impacto individual, organizacional e socioeconómico. Para enfrentar este risco global para a saúde é necessário enfrentar as ameaças no local de trabalho, particularmente os Fatores de Riscos Psicossociais (FRPs) relacionados com o trabalho, enquanto potenciais de geradores de SO (European Agency for Safety and Health at Work [EU-OSHA], 2018; International Organization for Standardization [ISO], 2021; Jain et al., 2018; Wolf et al., 2018) Esta temática tornou-se particularmente importante na crise pandémica provocada pela COVID-19. Destaca-se o sector da saúde como aquele que esteve na linha da frente da resposta e, consequentemente, com elevada exposição a SO, cujo risco de impacto ao nível da saúde demonstrou-se elevado (Pereira et al., 2022). Tal sublinha a necessidade da adoção de comportamentos inovadores e renovação estratégica dos sistemas de saúde (e não só), como resposta ao desafio emergente de prevenção e intervenção no SO (Burgess et al., 2020; EU-OSHA, 2018; ISO, 2021; Jain et al., 2018; Koklonis et al., 2021; Wolf et al., 2018). No entanto, tal pode igualmente incorrer num pesado fardo a ser colocado, no já sobrecarregado sistema, com profissionais exaustos (Pereira et al., 2022). Assim, uma questão-chave a ser abordada é como alinhar capacitação organizacional, numa perspetiva ecológica e inovadora. O presente estudo visa contribuir originalmente para reforçar o reconhecimento de que a melhoria dos sistemas de avaliação e prevenção do SO são altamente prioritários, não só para empowerment do capital humano organizacional, como para a melhoria da saúde em geral. Temos como objetivos: (1) contribuir com uma abordagem exploratória dos processos e fatores potenciadores de SO, no contexto da saúde, durante a pandemia COVID-19. Mais especificamente a relação entre fatores individuais de bem-estar (qualidade de vida, distress, resiliência, saúde e bem-estar) e fatores organizacionais (FRPs). (2) combinar a identificação dedutiva entre bem-estar no trabalho, competências e fatores individuais; (3) explorar o contributo da Psicologia 4.0 enquanto ferramenta que permita maximizar o processo de avaliação, prevenção e intervenção, de forma alinhada.
Método
O presente trabalho é parte de um estudo mais abrangente e complexo, que integra profissionais de várias áreas ocupacionais. No presente são incluídos dados sobre o contexto de saúde português, durante a pandemia COVID-19. Dados sobre o grupo mais alargado de profissionais de saúde foram divulgados em Pereira et al. (2022).
Participantes
O estudo empírico contou com a participação de 208 Enfermeiros, dos serviços de saúde portugueses de natureza privada (8,2%) e pública (91,8%). A amostra incluiu 162 participantes do género feminino e 46 do género masculino, com idades compreendidas entre 22 e 65 anos (M= 43,41, DP=10,281). Todos os dados sociodemográficos podem ser verificados no Quadro 1.
Material
A Escala de Distress Psicológico de Kessler (K10, Pereira et al., 2019), é uma escala breve (10 itens), de autorresposta através de escala de Likert de 1 a 5. O nível de distress é interpretado através do somatório da escala total (10 a 15= ausente ou baixo; 16 a 21= moderado; 22 a 29= elevado; 30 a 50= muito elevado). Valores ≥22 são considerados como tendo significância clínica, dado que representam risco de desenvolvimento de perturbação associada.
A Escala Breve de Coping Resiliente (EBCR, Ribeiro & Morais, 2010), é utilizada para aceder à capacidade de lidar com o stress de forma adaptativa: Coping Resiliente (CR). É constituída por quatro itens, de autorresposta em escala de Likert de 1 e 5. O CR é verificado através do somatório da escala toral (≤13= CR baixo; ≥17= CR forte).
O Copenhagen Psychosocial Questionnaire (COPSOQ) é uma escala altamente fiável para avaliar um leque de FRPs que são potenciais geradores de SO, numa abordagem multidimensional. A sua versão mais recente (COPSOQ III) (Cotrim et al., 2022), é composta por 85 itens distribuídos em 31 PRFs, agrupados em dimensões que incluem Exigências laborais (EL), Organização de trabalho e conteúdo (OTC), Relações sociais e liderança (RSL), Interface trabalho-individuo (IT-I), Capital Social (CS), Personalidade (Autoeficácia) e Saúde e bem-estar (Saúde geral, Problemas em dormir, Burnout, Stress e Sintomas depressivos). Foi utilizada a interpretação em divisão de percentis tripartidos, de acordo com o COPSOQ II (Silva et al., 2011). Assim, cada fator foi interpretado através do impacto na saúde que a exposição representa, nomeadamente Situação favorável, Intermédia e Risco para a saúde.
Foi aplicado um questionário sociodemográfico desenvolvido pelos investigadores com o objetivo de recolher características demográficas e do trabalho. Foi incluída uma questão sobre Qualidade de vida (QdV), que foi respondida com uma escala de Likert de 5 níveis (Muito mau, Mau, Nem bom, nem mau, Bom, Muito bom).
Procedimento
A recolha de dados realizou-se entre abril e agosto de 2021, através de implementação do protocolo de questionários online. Os participantes foram convidados a preencher os questionários de forma voluntária, anónima e confidencial, adotando uma seleção aleatória natural da amostra. Todos os procedimentos de recolha de dados, registo e comunicação estavam em conformidade com as diretrizes da CNPD e RGPD. Tal implicou a observância de um consentimento prévio informado, bem como tratamento de toda a informação com o mais elevado grau de confidencialidade.
Todas as análises estatísticas foram realizadas utilizando IBM SPSS Statistics® (versão 28). Para além das análises descritivas, foram conduzidas análises de correlação de Pearson, visando analisar a relação fatores organizacionais (FRPs) e fatores individuais (Distress, CR, Autoeficácia, QdV, Saúde e bem-estar).
Resultados
Fatores individuais
No que diz respeito à QdV, 42,8% reporta como sendo boa ou muito boa e 35,6% como nem boa, nem má. Por outro lado, 21,7% dos inquiridos descrevem a sua QdV como má, ou muito má. Já em termos de CR, apenas 15,9% apresenta níveis adequados. Relativamente ao distress, 56,3% dos inquiridos apresenta níveis enquadrado em nível de sintomas com significância clínica (Figura 1).
Quando considerado as dimensões de Saúde e bem-estar, avaliadas com o COPSOQ (Saúde geral, Problemas em dormir, Depressão e Burnout), em termos de impacto que a exposição a problemáticas deste foro pode representar, o resultado mais saliente verifica-se ao nível de burnout, sendo que 59,1% dos participantes apresenta níveis de elevado impacto na saúde e 36,1% apresenta valores enquadrados em situação intermédia (Figura 2). Por fim, ao nível da subescala Autoeficácia (dimensão Personalidade avaliada com COPSOQ), a pontuação variou ente 1,5 e 5 (M= 3,46, DP= 0,598), correspondente a uma perceção de Autoeficácia boa/ elevada.
Fatores organizacionais
Considerando resultados dos FRPs, quando interpretados em proporção dos percentis tripartidos (impacto na saúde que a exposição representa), apenas sete (das 25 subescalas/ FRPs avaliados), apresentaram taxas superiores a 50% de situação favorável, destacando-se as subescalas de Possibilidades de desenvolvimento, Significado no trabalho, bem como Clareza do papel laboral. Por sua vez, os valores mais elevados de risco para a saúde são encontrados na dimensão de EL, particularmente, nas subescalas de Exigências Cognitivas e Emocionais, nas quais os respondentes apresentavam uma situação de risco para a saúde, com taxas superiores a 75% (Figura 3).
Relação de fatores individuais e organizacionais
Na análise da relação entre fatores individuais (QdV, Distress, CR, Autoeficácia, Saúde e bem-estar) e fatores organizacionais (FRPs), foram encontradas diversas correlações estatisticamente significativas (Quadros 2 e 3). No domínio QdV salienta-se a correlações estatisticamente significativas com todos os FRPs incluídos na dimensão RSL, bem como CS, contudo, a correlação mais forte é encontrada na dimensão IT-I, especificamente com o FRP de Conflito trabalho família (r= -,403, ρ≤0,01). Já para o CR, destaca-se a ausência de correlações com as subescalas incluídas na dimensão EL, e as correlações com todos os FRPs da dimensão CS. Contudo, a correlação mais forte é encontrada na dimensão OTC, especificamente no FRP de Significado do trabalho (r= ,302, ρ≤0,01). Tanto o distress como a Autoeficácia apresentam correlações estatisticamente significativas com todos os FRPs das dimensões OTC, RSL e CS. Por sua vez, as correlações mais fortes são encontradas, para o distress, com o FRP de Conflito trabalho família (r= ,519, ρ≤0,01) da dimensão IT-I e, para a Autoeficácia, com o FRP de Significado do trabalho1 (r= ,401, ρ≤0,01) na dimensão OTC (Quadro 2).
Ao nível da Saúde e bem-estar (Quadro 3, Anexo 09), a subescala Saúde em geral é aquele que apresenta menos correlações com o FRPs. Destaca-se a correlação positiva mais alta com o FRP Conflito trabalho família (r= ,157, ρ≤0.01) e negativa com Suporte social de colegas (r= -0,228, ρ≤ 0,01). Já no domínio Problemas em dormir, verifica-se correlações estatisticamente significativas com a dimensão OTC, sendo a correlação mais forte encontrada com o FRP de Conflito trabalho família (r= ,407, ρ≤ 0,01) da dimensão IT-I. Os domínios de Burnout, Stress e Sintomas depressivos apresentam correlações com todos os FRPs das dimensões de RSL e CS. Por sua vez, as correlações mais fortes encontradas no FRP de Conflito trabalho-família, da dimensão IT-I (Quadro 3).
Nota. a. Subescalas positivas (fatores protetores): valores altos representam baixa exposição/ risco. * ρ< 0,05; **ρ< 0,01
Discussão
O presente trabalho teve como objetivo contribuir com uma abordagem exploratória dos processos e fatores potenciadores de SO. Concentrámos a nossa atenção na relação entre fatores individuais (QdV, distress, CR, saúde e bem-estar) e fatores organizacionais potenciadores de SO (PRFs), no contexto da saúde, durante a pandemia COVID-19. Desta análise destacamos os elevados níveis de Distress reportados (com significância clínica), contrapostos com baixo CR. Também ao nível de Saúde e bem-estar destaca-se o Burnout como a dimensão cujos valores são preocupantes. Já nos fatores organizacionais, as Exigências Cognitivas e Emocionais destacam-se, pelo enquadramento em situação de exposição de risco para a saúde. Estes resultados sugerem que o desenvolvimento de ações de prevenção, intervenção promoção na saúde mental, são urgentes para estes profissionais. Realça-se que os trabalhadores expostos a elevado SO podem desenvolver morbidades psicológicas (por exemplo ansiedade, depressão, esgotamento), e/ou desenvolver problemas de saúde física (p. ex. lesões músculo-esqueléticas) que podem afetar de forma significativa o fluxo de trabalho (diminuição da capacidade de trabalho, menor dedicação, baixa produtividade e/ou práticas laborais inseguras/inadequadas) (Davison et al., 2019; European Agency for Safety and Health at Work [EU-OSHA], 2018; Wolf et al., 2018). No contexto da saúde em particular, a preocupação é reforçada, não só devido à supressão das necessidades individuais, como também devido à relevância destes fatores na qualidade dos serviços, bem como dos seus utilizadores (pacientes) (Carayon et al., 2020; Pereira et al., 2022).
Procurámos igualmente combinar a identificação dedutiva entre fatores organizacionais e fatores individuais/ saúde e bem-estar. Desta análise destaca-se os resultados encontrados ao nível da dimensão CS, a qual apresentou relação com todos os domínios individuais. Segue-se as RSL e OTC como dimensões igualmente relevantes nesta relação. Conflito-trabalho família e Significado do trabalho surgem igualmente como FRPs relevantes, apresentando correlações significativas fortes com os fatores individuais avaliados. Estes resultados chamam a atenção para a necessidade de reforçar o papel e responsabilidade das organizações ao nível de prevenção e intervenção no SO. Salienta igualmente que públicas reconheçam que a avaliação dos PRFs é apenas uma parte do processo global (ISO, 2021; Jain et al., 2018), sendo imperativo desenvolver diretrizes relativas a: (1) estabelecimento de prescrições mínimas de níveis exposição para PRFs, de forma a maximizar o processo de prevenção (à semelhança do que se prevê na gestão dos riscos físicos, químicos e biológicos); (2) enfoque nas doenças relacionadas com o trabalho (e não apenas nas lesões relacionadas com o trabalho), incluindo as doenças de longa latência, associadas à exposição a SO; (3) normas e ferramentas que permitam minimizar as consequências da exposição dos PRFs e prevenção para riscos novos e emergentes. O desenvolvimento de iniciativas contínuas e sustentáveis para promover a saúde e o bem-estar dos trabalhadores e das organizações, exige que os profissionais e as organizações promovam a intervenção multimodelo (Burgess et al., 2020; EU-OSHA, 2018; Wolf et al., 2018), de preferência numa perspetiva holística e multidisciplinar (Jain et al., 2018). Neste âmbito, salienta-se a relevância do desenvolvimento de soluções e-health, como uma das prioridades que emerge da fase pandémica, nas mais diversas áreas de atuação, incluindo a saúde mental (Drissi et al., 2020). No entanto, olhar para um fenómeno apenas num determinado momento pode ser limitativo, pois não reflete as mudanças ao longo do tempo (Yarkoni & Westfall, 2017). Por sua vez, o grande chapéu da transformação digital 4.0, poderá permitir verdadeiras oportunidades também na Psicologia (Dwyer et al., 2018; Yarkoni & Westfall, 2017), deslocando as fronteiras tradicionais no sentido de uma Psicologia 4.0. O uso das tecnologias associadas a machine learning (ML) proporciona um maior enfoque na previsão (em vez de explicação) da complexidade comportamental, tendo já sido aplicado com sucesso no domínio da Psicologia (Dwyer et al., 2018; Flesia et al., 2020; Yarkoni & Westfall, 2017), incluindo o âmbito do SO (Koklonis et al., 2021). Adicionalmente, a modelação computacional e ML, associadas a plataformas interativa de e-health, podem-se constituir como uma ferramenta de promoção do SO de alta aplicabilidade. Neste sentido, a inovação da Psicologia 4.0 deverá ser valorizada para a promoção da saúde e bem-estar, fornecendo ferramentas que permitam maximizar o processo de avaliação, prevenção e intervenção, de forma integrada às necessidades especificas, tal como recomendado (Burgess et al., 2020; Wolf et al., 2018).
É inerente a este estudo algumas limitações, nomeadamente ao nível da constituição da amostra, quando considerado a representatividade face à população alvo, bem como a elevada vulnerabilidade humana destes profissionais.
Em síntese, os objetivos propostos foram aqui trabalhados e atingidos, contudo, estamos conscientes de que são necessários mais estudos que possam realçar as vantagens do uso de tecnologia que integrem ML para a Psicologia 4.0. Parece-nos que no contexto da Psicologia da saúde ocupacional torna-se emergente a realização de estudos que integrem as metodologias clássicas e de novas tecnologias, de forma promover capacitação organizacional (empowerment do capital humano), numa perspetiva ecológica e inovadora.
Contribuição dos autores
Isabel Souto: Revisão da literatura; Metodologia; Recolha de dados; Análise formal; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição
Elisabeth Brito: Administração do projeto; Supervisão; Concetualização; Redação - revisão e edição
Anabela Pereira: Administração do projeto; Supervisão; Concetualização; Redação - revisão e edição