Os professores da Educação Básica lidam diariamente com várias adversidades no seu contexto laboral como problemas na estrutura das escolas (Oliveira et al., 2020), dificuldades com o comportamento dos alunos e falta de recursos de multimídia (Ferreira-Costa & Pedro-Silva, 2018). As condições laborais exercem um papel importante na decisão de abandonar a docência (Carlotto et al., 2019; Cunha et al., 2021).
Em precedência à saída definitiva do ensino, ocorre a intenção de abandono, que é compreendida como uma forma de abandono psicológico, no qual ocorre um afastamento emocional das demandas do trabalho, como uma forma de desistência, sem de fato ocorrer a sua renúncia formal, mas que tende a acarretar a saída definitiva do local de trabalho ou do ensino (Carlotto & Câmara, 2020). Ainda, segundo as autoras, trata-se de um processo que gera um expressivo desgaste emocional ao docente, porque não consegue desempenhar a sua atividade conforme suas expectativas.
A mobilidade dos professores pode ocorrer de diferentes maneiras, quando o docente muda internamente de instituição dentro da própria rede de ensino ou na troca de uma rede para outra ou quando definitivamente deixa a profissão docente (Carrasqueira & Koslinski, 2021). As duas primeiras formas correspondem a formas de abandono institucional e a última, ao abandono profissional.
É necessário diferenciar a intenção de deixar a profissão e a intenção de mudar de instituição (Kukla-Acevedo, 2009; Vekeman et al., 2016), visto que são comportamentos distintos (Vekeman et al., 2016). Contudo, a maioria dos estudos sobre o abandono docente não distingue esses dois tipos de movimentos, conquanto possam revelar causas e impactos diferentes (Ryan et al., 2017).
Índices elevados de evasão docente interferem negativamente na estabilidade do ensino (Oke et al., 2016). A saída dos professores afeta a constituição de equipes escolares coesas, a relação entre a escola e as famílias, a aprendizagem dos discentes, acarreta custos para o sistema de educação, que precisa substituir o trabalhador e reinvestir na contratação e formação de outro profissional (Cassettari et al., 2014), aspectos que se caracterizam como obstáculos para o alcance dos objetivos educacionais (Frantz & Alves, 2021). A saída de docentes do ensino é motivo de preocupação constante no âmbito educacional em diversos países (Madigan & Kim, 2021; Vekeman et al., 2016).
Características sociodemográficas podem estar associadas ao abandono, como professores mais jovens e com maior formação (Carrasqueira & Koslinski, 2021). No que tange aos aspectos laborais, identifica-se menor tempo de experiência profissional (Favatto & Both, 2019; Kukla-Acevedo, 2009), baixa remuneração (Favatto & Both, 2019; Lapo & Bueno, 2002), indisciplina e dificuldades na relação com os alunos (Carlotto et al., 2019; Favatto & Both, 2019), sobrecarga de trabalho (Perryman & Calvert, 2020; Räsänen et al., 2020), insatisfação com o sistema educacional (Lapo & Bueno, 2002; Räsänen et al., 2020), falta de recursos pedagógicos e estruturais (Gonzalez-Escobar et al., 2020).
A exposição a situações precárias de trabalho, carga horária intensa e tempo de lazer restrito aos quais muitos educadores estão submetidos afetam sua Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) (Rêgo & Oliveira, 2017). Dentre os modelos encontrados na literatura, o mais empregado em pesquisas no campo da QVT é o proposto por Walton, em 1973 (Rabelo et al., 2021; Rueda et al., 2013).
Os aspectos que envolvem a QVT descritos por Walton (1973) compreendem oito características: 1) Compensação adequada e justa, que abarca o quanto a remuneração está de acordo com a qualificação, o grau de responsabilidade exigido pela tarefa e participação nos lucros. 2) Condições de trabalho seguras e saudáveis, que compreendem a adequação das horas trabalhadas e condições laborais que minimizem os riscos à saúde. 3) Oportunidade imediata de usar e desenvolver capacidades humanas, refere-se ao quanto o trabalhador tem autonomia e possibilidade para exercer suas atividades fazendo uso de diferentes habilidades, e se possui informações sobre o processo total do seu trabalho. 4) Oportunidade futura para o crescimento contínuo e a segurança, envolve as possibilidades de avanço na carreira, renda e segurança do emprego. 5) Integração social na organização de trabalho, focaliza-se nos aspectos de liberdade de preconceitos, igualitarismo, mobilidade, grupos de apoio e senso comunitário na organização. 6) Constitucionalismo na organização do trabalho, abrange o direito à privacidade no tocante a questões pessoais do trabalhador, a discordar de seus superiores, à equidade e aos direitos trabalhistas. 7) O trabalho e o espaço total de vida; compreendem o quanto o trabalho ocupa da vida do sujeito. 8) A relevância social da vida profissional, engloba a imagem social da empresa.
A promoção de QVT é fundamental para ajustar os objetivos das organizações com o bem-estar dos seus colaboradores (Figueira & Ferreira, 2013), pois a satisfação com o ambiente de trabalho favorece a produtividade (Rêgo & Oliveira, 2017) e reduz a intenção de turnover (Izzati & Mulyana, 2019). Posto isso, tendo em vista o contexto escolar, conhecer os antecedentes da intenção de saída da escola ou do ensino pode auxiliar diretores e gestores no desenvolvimento de estratégias de gerenciamento dos docentes e na criação de políticas educacionais que visem à permanência destes profissionais (Carrasqueira & Koslinski, 2021; Vekeman et al., 2016) e melhorias no espaço educacional. Assim, o presente estudo de delineamento quantitativo, transversal e explicativo objetivou identificar o poder preditivo das variáveis sociodemográficas, laborais e dimensões da Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) para a Intenção de Abandono Institucional (IAI) e Intenção de Abandono Profissional (IAP).
Método
Participantes
Participaram do estudo uma amostra de 189 professores da Educação Básica brasileiros. Foi adotado como critério de inclusão estar trabalhando há, no mínimo, seis meses na escola atual. Como critério de exclusão, estar afastado das funções escolares, no momento da pesquisa, por licença saúde, licença-maternidade e licença interesse.
A idade média dos participantes foi de 37,96 anos (DP = 8,92), a maioria era do sexo feminino (86,8%, n = 164), com companheiro(a) (76,2%, n = 144) e tinha filhos (56,1%, n = 106). Em relação ao grau de escolaridade, a maioria possuía algum tipo de pós-graduação, especialização (78,9%, n = 149) e residia no estado do Rio Grande do Sul (RS) (85,7%, n = 162).
Quanto aos dados laborais, o tempo de experiência profissional foi em média 12,29 anos (DP = 8,10). O tempo aproximado de atuação na escola atual foi, em média, de 6,40 anos (DP = 6,49). Os docentes relataram que a carga horária de trabalho contratual, em média, era de 33,17 horas semanais (DP = 10,26). A média de alunos atendidos diariamente era de 67 alunos (DP = 73). Dos participantes, 67,2% (n = 127) relataram atuar somente em uma escola. Atuavam apenas na rede pública 62,4% (n = 118), na rede privada, 30,2% (n = 57), em ambas as redes de ensino, 7,4% (n = 14). Do total de participantes, 82% (n = 162) trabalhavam somente na escola atual e, no período da pandemia de Covid-19, referiu ter trabalhado na modalidade híbrida (71,4%, n = 135).
Material
Questionário de dados sociodemográficos: idade; sexo; estado civil; número de filhos e escolaridade.
Questionário de dados laborais: tempo de atuação profissional; nível de ensino que atua na maior parte de sua carga horária; carga horária de trabalho semanal; número de alunos que atende diariamente; tempo que atua nesta escola; trabalha em rede de ensino (pública/privada); trabalha em outra escola; exerce outra atividade de trabalho remunerada não relacionada à educação; renda mensal; em qual formato está ministrando aulas (on-line, presencial, híbrido).
Escala de avaliação da QVT: desenvolvida por Rueda et al. (2013). Este instrumento possui 35 itens divididos em quatro fatores: 1) Integração, respeito e autonomia (15 itens; alfa = 0,89, exemplo de item: “a liberdade de expressão é respeitada”; 2) Compensação justa e adequada (6 itens, alfa = 0,89, exemplo de item: “meu salário é justo para o esforço (físico ou mental) que realizo”; 3) Possibilidades de lazer e convívio social (6 itens, alfa = 0,84, exemplo de item: “meu trabalho permite ter momentos de lazer com a família”); 4) Incentivo e suporte (8 itens, alfa = 0,76, exemplo de item: “a empresa promove treinamentos periódicos”). As perguntas foram aferidas através de uma escala Likert de cinco pontos, com variação de 1 = discordo totalmente a 5 = concordo plenamente.
Escala de Intenção de Abandono no Trabalho (EIAT): construída por Carlotto et al. (2023). O instrumento é composto de 10 itens e avalia duas dimensões: Intenção de mudar de profissão (IAP) (5 itens; alfa = 0,88, exemplo de item “eu penso em mudar de profissão”) e Intenção de mudar de instituição (IAI) (5 itens; alfa = 0,82, exemplo de item “é certo que eu mudarei de instituição no próximo ano”). Os itens foram aferidos através de uma escala tipo Likert de cinco pontos variando de 0 = nunca a 4 = todo os dias. O instrumento alcançou boa adequação, com índices de ajuste aceitáveis: χ2 = 727, 656 (p < 0,001); TLI = 0,96; CFI = 0,97, RMSEA = 0,07 (I.C.= 0,07 - 0,08).
Procedimentos
A coleta foi realizada através de formulário eletrônico entre os meses abril e setembro de 2021. Os participantes foram recrutados por meio de redes sociais como Facebook, LinkedIn e e-mail de contatos das pesquisadoras. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Vale do Rio Sinos (UNISINOS), sob o número CAAE: 43856621.9.0000.5344.
O banco de dados foi analisado por meio do SPSS 20 (Statistical Package for the Social Sciences). Foi realizada Análise de Regressão Linear Múltipla (método Stepwise) considerando a IAI e IAP como variáveis dependentes e, como variáveis independentes, as dimensões da QVT (QVT Integração, respeito e autonomia; QVT Compensação justa e adequada; QVT Possibilidades de lazer e convívio social; QVT Incentivo e suporte) e variáveis sociodemográficas (idade; sexo; situação conjugal, tem filhos ou não; escolaridade) e laborais (tempo de atuação profissional; tempo de atuação na escola atual; exerce alguma outra atividade de trabalho remunerada não relacionada à educação; renda mensal).
Os pressupostos de regressão linear múltipla foram testados e não foram verificadas violações que contraindicassem sua utilização. A seleção das variáveis preditoras adotou o nível de significância de p<0,05. Na análise de regressão, a magnitude do efeito foi obtida pelos coeficientes de regressão padronizados e calculados no modelo final, de acordo com Marôco (2007).
Resultados
No Quadro 1 são elencados os resultados da análise descritiva dos instrumentos utilizados, o índice mais elevado na escala da QVT, considerando a escala de pontuação, foi na dimensão QVT Integração, respeito e autonomia (M = 3,94, DP = 0,80); e o menor deu-se na dimensão QVT Compensação justa e adequada (M = 2,34, DP = 1,16). Na escala de IAT, o índice mais elevado foi na dimensão de Intenção de mudar de profissão (M = 2,30, DP = 1,16). Em relação à consistência interna, todas as dimensões dos instrumentos utilizados apresentaram coeficiente alfa de Cronbach satisfatórios (α > 0,70). Os alfas da Escala da QVT foram superiores α > 0,78 e os alfas da Escala de Abandono foram superiores α > 0,91.
Variáveis | Escala | M | DP | α |
---|---|---|---|---|
Escala de Qualidade de Vida no Trabalho | 1-5 | |||
QVT integração, respeito e autonomia | 3,94 | 0,80 | 0,93 | |
QVT compensação justa e adequada | 2,34 | 1,16 | 0,92 | |
QVT possibilidades de lazer e convívio social | 2,74 | 0,82 | 0,78 | |
QVT incentivo e suporte Escala de Intenção de Abandono do Trabalho | 0-4 | 3,26 | 1,02 | 0,81 |
Intenção de mudar de instituição | 2,26 | 1,17 | 0,91 | |
Intenção de mudar de profissão | 2,30 | 1,16 | 0,94 |
No Quadro 2 apresenta-se o resultado obtido por meio de Regressão Linear Múltipla que revelou um modelo preditor da IAI, constituído pelas variáveis QVT Integração, respeito e autonomia, idade e QVT Compensação, justa e adequada. Conjuntamente, as variáveis explicaram 28,6% da variância. A magnitude do efeito é considerada média (R 2 = 0,286), de acordo com Marôco (2007). Nesse sentido, a análise dos dados desta amostra apontou que as relações identificadas, possivelmente, estavam presentes na população-alvo de professores.
Intenção de abandono institucional | R | R 2 | R 2 ajustado | B | SE | Β | t | P |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
QVT integração, respeito e autonomia | 0,433 | 0,187 | 0,183 | -0,487 | 0,105 | -0,333 | -4,639 | 0,000** |
Idade | 0,501 | 0,251 | 0,243 | -0,034 | 0,008 | -0,257 | -4,132 | 0,000** |
QVT compensação justa e adequada | 0,534 | 0,286 | 0,274 | -0,216 | 0,072 | -0,216 | -3,003 | 0,003** |
F Model | 24,649 | 0,000** |
Nota. ** p<0,01.
O Quadro 3 exibe a Regressão Linear Múltipla que se identificou um modelo preditor da IAP, constituído pelas variáveis QVT compensação, justa e adequada, exercer outra atividade de trabalho além da educação, não ter filhos, tempo de atuação profissional e sexo masculino. As variáveis, conjuntamente, explicaram 25,2% da variância dessa dimensão.
Intenção de abandono profissional | R | R 2 | R 2 ajustado | B | SE | β | t | p |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
QVT compensação justa e adequada | 0,386 | 0,149 | 0,144 | -0,409 | 0,064 | -0,411 | -6,408 | 0,000** |
Outra atividade de trabalho remunerada além da educação(a) | 0,432 | 0,187 | 0,178 | 0,676 | 0,196 | 0,224 | 3,449 | 0,001** |
Não ter filhos(a) | 0,460 | 0,212 | 0,199 | -0,525 | 0,162 | -0,225 | -3,249 | 0,001** |
Tempo de atuação | 0,485 | 0,235 | 0,219 | 0,028 | 0,010 | 0,198 | 2,784 | 0,006** |
Sexo masculino(b) | 0,502 | 0,252 | 0,231 | -0,454 | 0,227 | -0,133 | -1,996 | 0,047* |
F Model | 12,31 | 0,000** |
Nota. * p<0,05, ** p<0,01; (a) 0 - Não, 1- Sim; (b); 0=Homens, 1=Mulheres
A magnitude do efeito é considerada média (R2 = 0,252), conforme Marôco (2007). Assim, revelou-se uma média probabilidade de que as relações encontradas estavam presentes na população-alvo de professores.
Discussão
O presente estudo teve por objetivo identificar o poder preditivo das variáveis sociodemográficas, laborais e dimensões da QVT na intenção de abandono institucional e profissional. Assim, realizaram-se duas análises de regressão, uma para a IAI e outra para a IAP, sendo discutidos, a seguir, os resultados de cada regressão.
A análise dos preditores da IAI revelou que professores mais jovens e com menores índices nas dimensões relacionadas à QVT Integração, respeito e autonomia e QVT Compensação justa e adequada indicaram maior IAI. Em relação à dimensão QVT Compensação justa e adequada é consenso na literatura que a remuneração é um dos fatores de maior descontentamento dos professores (Favatto & Both, 2019). Pesquisas recentes corroboram estes achados, de que a menor média na escala de QVT é a remuneração (Bispo & Aguiar, 2018; Marques & Oliveira, 2019). Estudo realizado por Rabelo et al. (2021), durante a pandemia de Covid-19, que avaliou a QVT em 53 professores da Educação Básica de Minas Gerais, identificou que 48,58% dos participantes consideravam os recursos financeiros como insatisfatórios com tendência neutra/satisfatória. Pode-se pensar que a remuneração adequada é uma necessidade para que o trabalhador possa manter uma boa qualidade de vida, fazer investimentos no âmbito pessoal e de qualificação profissional, servindo como um estímulo à valorização da profissão e de recompensa pelo esforço e dedicação do professor.
A dimensão QTV relacionada à Integração, respeito e autonomia também se mostrou preditora da IAI. Dentro do modelo de Walton, a integração social está vinculada à qualidade das relações com os colegas de trabalho, que, quando satisfatória, favorece o senso de unidade e coesão no contexto laboral (Ferreira et al., 2012). Marques e Oliveira (2019) identificaram associação positiva entre o fator QVT relacionado à Integração, respeito e autonomia, com o tempo de profissão e o tempo de trabalho na escola atual, ou seja, o tempo de atuação contribui para a melhora deste fator. Considerando a relevância da integração com a equipe e relação entre colegas, é possível inferir que o docente, ao não se sentir satisfeito com tais fatores, busque outra instituição de ensino para trabalhar.
A vinculação duradoura do docente com a escola lhe possibilita adquirir experiência com o tempo, criar laços com os colegas, alunos e comunidade (Pereira & Oliveira, 2018). Além disso, a percepção de consenso e integração na instituição pode ser compreendida como um fator de proteção à saúde dos profissionais (Bispo & Aguiar, 2018). A direção também tem um papel relevante, assim, nas instituições em que a chefia não incentiva seus colaboradores, existe uma tendência de os docentes trocarem de instituição (Oke et al., 2016).
Resultado que converge ao encontrado por Räsänen et al. (2020), que constaram que a falta de apoio e as dificuldades na interação com colegas de trabalho, direção, alunos e pais colaboram para a intenção de deixar a carreira. Para Giuliato e Feldkercher (2021), a socialização no ambiente de trabalho é fundamental na constituição da identidade do professor, especialmente no início da carreira, quando os profissionais ainda não estabeleceram raízes, sendo, então, mais suscetíveis a deixar a docência.
A variável idade também se revelou preditora do abandono, professores mais jovens indicaram mais IAI em relação aos docentes mais velhos. Resultado que corrobora o encontrado por Kukla-Azevedo (2009), em uma amostra de professores estadunidenses, na qual se identificou que trabalhadores com menos de 30 anos apresentavam três vezes mais chance de deixar o ensino e quatro vezes mais chance de deixar a escola atual se comparados a professores com mais de 50 anos. Em revisão de literatura, Oke et al. (2016) pontuam que para os docentes mais jovens e inexperientes é necessário considerar a formação desses profissionais. Gatti (2016) complementa ao referir que o modo como os currículos de licenciatura estão organizados não apresenta uma base sólida de conhecimentos práticos, teóricos e técnicos aos alunos para lidar com as dificuldades do início da profissão. Assim, o profissional pode trocar de escola na tentativa de diminuir tais adversidades.
No que tange à IAP, identificou-se como preditores docentes com menores índices na dimensão QVT Compensação justa e adequada, que exercem alguma outra atividade de trabalho além do ensino, não ter filhos, com maior tempo de atuação profissional e que são do sexo masculino. No que se refere à compensação, o presente resultado está em consonância com a literatura, a qual reforça que a falta de um salário adequado é um dos fatores que mais contribuem para a decisão de deixar a profissão (Cassettari et al., 2014; Oke et al., 2016; Favatto & Both, 2019). A remuneração apropriada é um dos aspectos centrais na QVT, sendo também uma das principais razões para que as pessoas procurem um trabalho (Ferreira et al., 2012). Quando insatisfeitas com esse aspecto, pode-se pensar que seja natural buscarem outras oportunidades profissionais.
Exercer outra atividade de trabalho, além da educação, também se mostrou variável preditora da IAP. É possível que a insatisfação com o trabalho faça com o que o professor pense em experimentar outras atividades profissionais antes de deixar definitivamente a docência. Outra explicação possível é que a ausência de um salário adequado pode fazer com que o trabalhador busque um trabalho extra para arcar com os seus custos de vida e complementar a renda, atividade que posteriormente pode substituir a carreira atual, ou abrir possibilidades de trabalho além do magistério. Segundo Cassettari et al. (2014), acumular cargos e cumprir mais de uma jornada de trabalho interfere no tempo de preparação das aulas e diminui os momentos de lazer, convivência familiar e de qualificação profissional.
Não ter filhos também se associou com a IAP. Em relação a esta variável, pode-se referir que pessoas que têm filhos possuem mais responsabilidades e preocupações com a administração das finanças familiares, visto que precisam prover meios de sustentação da sua prole. Diante de tais obrigações parentais é natural que tenham mais receio de trocar de profissão, pois mudanças no trabalhado interferem na rotina familiar, na organização e no planejamento financeiro, envolvem riscos e adaptações que também afetam os filhos. Diferente de trabalhadores que não têm filho e que podem tomar decisões de forma mais independente. Deste modo, possuem mais autonomia para trocar de profissão.
Outro preditor identificado da IAP foi o maior tempo de atuação profissional. A literatura apresenta divergências em relação ao tempo de atuação profissional e o abandono docente, encontraram-se estudos que identificam que docentes com mais de 10 anos de atuação foram os que mais abandonaram (Lapo & Bueno, 2002) e pesquisas que relatam que os profissionais com menos tempo de experiência indicaram 1,5 mais de probabilidade de abandonar o ensino e 2 vezes mais chance de trocar de instituição de ensino quando comparados a docentes mais experientes (Kukla-Acevedo, 2009). Estudo recente expõe que professores do meio da carreira (6 a 20 anos) relataram maior intenção de deixar a docência (Räsänen et al., 2020). Considerando o contexto pandêmico no qual a coleta do presente estudo ocorreu, tal fenômeno pode ter interferido nas respostas.
A pandemia de Covid-19 modificou a prática docente, as aulas passaram a ser ministradas em casa, intensificando a necessidade de conciliar a vida familiar e profissional, foi preciso aprender a utilizar novas ferramentas de trabalho e de tecnologia, procurando-se adequar à nova realidade e manter os objetivos de ensino (Baade et al., 2020). Contudo a formação docente não contemplou esses saberes, que também não eram utilizados anteriormente, em consequência, demandando dos profissionais mais tempo de dedicação e preparação para o trabalho (Gatti & Menezes, 2021).
Pesquisa realizada durante a pandemia de Covid-19, com amostra de 733 docentes de diferentes etapas do ensino, identificou que 92% dos participantes tiveram alguma dificuldade no período de migração das aulas presenciais para o formato remoto. Os problemas relatados foram em relação à adaptação das aulas, falta de internet e computador de qualidade, conseguir planejar aulas remotas com didática apropriada, preocupações com a falta de acesso dos estudantes às tarefas propostas, conhecimento restrito sobre o uso de programas e plataformas digitais, desconforto diante das câmeras e dificuldades de relacionamento com pais, direção e coordenação escolar (Souza et al., 2021). Assim, é importante sublinhar que essas condições podem ter afetado mais docentes com maior tempo de experiência profissional, pois vivenciaram algo totalmente diferente do experienciado em outros anos de exercício profissional, aumentando a sua intenção de abandono.
Em relação ao sexo, neste estudo, ser homem apareceu como preditor da IAP, resultado que converge a outros estudos (Vekeman et al., 2016; Díaz-Sacco et al., 2021). Estudo realizado com docentes finlandeses, aponta que homens pensam em mudar de carreira com mais frequência quando comparados a mulheres (Räsänen et al., 2020). Rabelo (2013) investigou as representações de gênero no âmbito da docência, e constatou que homens, por vezes, são considerados incapazes para o exercício da profissão. A autora pontua que socialmente o magistério ainda possui o estereótipo de ser uma profissão feminina, de modo que homens podem ser vistos como intrusos nesse ambiente. Considerando este aspecto, pode-se pensar que tal condição contribui para que o profissional não se sinta pertencente ao ambiente escolar e busque outra atividade de trabalho.
Em vista dos impactos da intenção de abandono e possível saída definitiva da escola ou do ensino, faz-se necessário medidas para intervir e reduzir esses fenômenos. A literatura sugere melhorias na remuneração, no ambiente e nas condições de trabalho (Oke et al., 2016), avaliar a intenção de abandono em profissionais iniciantes, disponibilizar equipes especializadas para auxiliar os docentes e executar intervenções que visem reduzir os estressores laborais (Carlotto et al., 2019), bem como fornecer programas de orientação e desenvolvimento profissional (Giuliato & Feldkercher, 2021; Kelly et al., 2019).
Em relação à proposta do presente estudo, que foi identificar o poder preditivo das variáveis sociodemográficas, laborais e dimensões da QVT para e IAI e IAP; e, nesse sentido, os resultados revelaram dois modelos diferenciados. Verificou-se que, para a IAI, três variáveis se mostraram preditoras, duas relacionadas à QVT (compensação e integração) e uma sociodemográfica (idade, mais jovens). Na IAP foram identificadas cinco variáveis preditoras, uma no tocante à QVT (compensação), duas sociodemográficas (não ter filhos e sexo masculino) e duas laborais (ter outro trabalho remunerado não relacionado ao ensino e o maior tempo de atuação). Resultados que evidenciaram que a intenção de abandono envolve múltiplos fatores ligados às características do trabalho e do trabalhador.
As diferenças encontradas entre as variáveis preditoras do IAI e IAP reforçaram a necessidade de distinguir as modalidades de intenção de abandono para que se possa desenvolver intervenções apropriadas para cada fenômeno. Dentre as variáveis preditoras, a QVT Compensação justa e adequada foi identificada em ambos os modelos, indicando que aspectos financeiros são um fator relevante no momento de decidir pela troca de instituição e de profissão, e, portanto, deve ser considerada ao proporem-se medidas de retenção de professores.
As razões para a intenção de deixar o ensino podem variar com o tempo (Räsänen et al., 2020), por isso, monitorar essa intenção possibilita o desenvolvimento de estratégias para evitar que tal comportamento se concretize. Tanto o abandono institucional quanto profissional impactam diretamente a qualidade do ensino e geram prejuízos ao professor e ao sistema de ensino. O docente experiência todo um desgaste emocional antes de decidir pela saída, visto que passou anos investindo emocional, financeira e fisicamente na formação de uma carreira à qual não dará continuidade, bem como experimenta frustração no que tange às expectativas sobre a carreira do magistério. Para o ensino, há despesas com a saída de um profissional qualificado e para o treinamento de novos profissionais. Assim, intervir na intenção de abandono é uma ação de prevenção ao abandono definitivo e de investimento no desenvolvimento e melhoria da educação.
Como forças do estudo, destaca-se a adequação psicométrica dos instrumentos utilizados, pois ambos aprestaram índices satisfatórios de confiabilidade e uma magnitude de efeito média. Assinala-se, também, que existem poucos estudos que abordam as duas dimensões da IAI e IAP em professores brasileiros.
No tocante às limitações do estudo, boa parte dos motivos para a intenção de abandono não foi explicada, considerando a variância de cada modelo, o que aponta a necessidade de novas pesquisas incluindo outras variáveis que possam estar envolvidas nas IAI e IAP. Por isso, sugere-se a realização de estudos mistos longitudinais, porque este tipo de pesquisa possibilita, além de um melhor monitoramento dos fenômenos, um contato mais direto e exploratório com a população-alvo.
A amostra foi composta, em sua maioria, por professores de um estado na região sul do Brasil em virtude de a rede de contato das pesquisadoras ser desse estado. Nesse sentido, recomenda-se que pesquisas futuras abarquem amostra nacional estratificada por regiões, buscando atingir outras localidades do país em vista das particularidades regionais, em termos de estrutura, política educacional, salarial e condições de trabalho que são muito variadas e podem ter diferentes impactos na intenção ou não de abandonar a profissão. Indica-se também que os próximos estudos averiguem o tipo de vínculo empregatício (estatutário, carteira assinada ou contrato temporário) e sua influência na IAI e IAP.
Os resultados apresentados fornecem dados que podem ser utilizados no planejamento de ações nos contextos escolares que objetivem a retenção dos docentes. Monitorar a intenção de abandono contribui para evitar a saída de docentes por motivos que podem ser manejados. Prover uma remuneração adequada e justa é algo urgente no âmbito educacional, visto que esse fator é preditor da IAI e IAP. Além disso, um bom salário pode diminuir a chance de o professor buscar um trabalho extra, condição geradora de desgaste e sobrecarga para o profissional. Recomenda-se, aos gestores educacionais, o investimento contínuo no aperfeiçoamento dos profissionais e na estrutura física da escola (recursos materiais, pedagógicos e tecnológicos) porque a sociedade está em constante mudança, por conseguinte, os professores precisam estar capacitados e acompanhando essa conjuntura. Além disso, implementar programas de acompanhamento de carreira com o escopo de auxiliar nas dificuldades inerentes à docência e aos desafios que vão surgindo ao longo da trajetória profissional, principalmente quanto aos professores homens, mais jovens, com menor tempo de atuação e sem filhos. Também sugere-se investir em ações de melhorias da QVT dos professores, levando em conta sobretudo o que os próprios docentes da instituição e/ou rede de ensino sugerem como fatores a ser priorizados.