Em dezembro de 2019 uma série de casos de pneumonia de causa desconhecida, cuja apresentação clínica em muito se assemelhava à uma pneumonia viral ocorreu na cidade de Wuhan, província de Hubei, China. Em pouco tempo mais de 800 casos já haviam sido notificados nesta província, e vários outros casos exportados foram confirmados em outras províncias da China, na Tailândia, Japão, Coreia do Sul e EUA (Huang et al., 2020; Wu & McGoogan, 2020; Zhu et al., 2020). A OMS classificou esse distúrbio como pandemia em 11 de março de 2019 (Sun et al., 2020).
As manifestações clínicas da COVID-19 são variáveis, há indivíduos que permanecem assintomáticos e há aqueles que desenvolvem um quadro fulminante caracterizado pela sepse e falência respiratória aguda. Cerca de 5% dos pacientes com a COVID-19 e 20% daqueles que foram hospitalizados necessitaram de cuidados intensivos (Wiersinga et al., 2020). Associa-se à COVID-19 um quadro de ansiedade vinculado às várias formas do medo: de infectar-se, de entrar em contato com superfícies e objetos possivelmente contaminados, de relacionar-se com estrangeiros e das consequências socioeconômicas da pandemia (Taylor et al., 2020).
A pandemia da COVID-19 teve um impacto negativo na saúde mental da população (Manning et al., 2021). Fatores como restrições sociais, limitações ao exercício de atividades produtivas e de negócios não essenciais, que tinham como objetivo reduzir a mortalidade e a morbidade provocadas pelo vírus SARS-CoV-2, mas que provocaram isolamento social e elevação dos níveis de desemprego e subemprego, formaram um contexto que, dentre outras consequências, desencadeou e agravou problemas da saúde mental (Berkowitz & Basu, 2021; Betschart et al., 2021).
A “Síndrome Pós-COVID-19” (ou “COVID-19 pós-aguda ou tardia”) é descrita como o conjunto de sinais e sintomas que pode acometer os sobreviventes da COVID-19, a médio e longo prazo (Bellan et al., 2021; Huang et al., 2021; C. Huang et al., 2021).
Este estudo teve como objetivo rastrear os sintomas psiquiátricos de ansiedade e depressão em pacientes que estiveram internados em um hospital geral e pesquisar fatores associados a esses sintomas, 90 dias após a alta hospitalar.
Método
Participantes
A amostra foi por conveniência e foram incluídos neste estudo 75 pacientes que estiveram internados no HU-UFSC, o diagnóstico da COVID-19 foi realizado pela detecção do SARS-CoV-2 nas secreções da nasofaringe pela técnica Reverse Transcription-Polymerase Chain Reaction (RT-PCR).
Foram excluídos os pacientes cuja participação após a alta foi inviabilizada devido algum dos fatores: desenvolvimento de quadro psicótico ou de demência no follow-up; readmissão hospitalar pelo agravamento de alguma das comorbidades; incapacidade de locomoção; recusa em participar da pesquisa; contato telefônico ou por whats app impossível; logística para deslocamento até o HU-UFSC impraticável.
Instrumentos
O Índice de Massa Corporal (IMC) foi calculado utilizando-se os dados antropométricos de 90 dias após a alta hospitalar, mediante a fórmula: IMC = peso (kg) / altura x altura (m2). A categorização segundo o IMC adotada nessa pesquisa, foi peso normal (IMC entre 18,5 e 24,9), sobrepeso (IMC entre 25 e 29,9) e obesos (IMC ≥30) (Expert Panel on the Identification, Evaluation, 1998; Flegal et al., 2013).
O Índice Critério Brasil (ICB) foi utilizado para classificar a condição socioeconômica dos participantes, esse índice tem como base a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)(ABEP, 2019).
O Critério de Classificação Econômica Brasil ou CCEB é uma classificação que se baseia na posse de bens e não na renda familiar. Para cada bem possuído pela família corresponde uma pontuação, e cada classe é definida pela soma dessa pontuação. São as seguintes classes do ICB: A1, A2, B1, B2, C1, C2, D e E (ABEP, 2019; Kamakura et al., 2013).
O sistema de pontos utilizado para obtenção do Índice Critério Brasil está discriminado nos Quadro 1 e Quadro 2.
Variáveis | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 ou + |
---|---|---|---|---|---|
Banheiros | 0 | 3 | 7 | 10 | 14 |
Empregados domésticos | 0 | 3 | 7 | 10 | 13 |
Automóveis | 0 | 3 | 5 | 8 | 11 |
Microcomputador | 0 | 3 | 6 | 8 | 11 |
Lava louca | 0 | 3 | 6 | 6 | 6 |
Geladeira | 0 | 2 | 3 | 5 | 5 |
Freezer | 0 | 2 | 4 | 6 | 6 |
Lava roupa | 0 | 2 | 4 | 6 | 6 |
DVD | 0 | 1 | 3 | 4 | 6 |
Micro-ondas | 0 | 2 | 4 | 4 | 4 |
Motocicleta | 0 | 1 | 3 | 3 | 3 |
Secadora roupa | 0 | 2 | 2 | 2 | 2 |
Fonte: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE PESQUISA. ABEP. São Paulo: Critério Brasil 2019. ABEP - Associação Brasileira Econômica de Pesquisa, 1-6. Disponível em: https://www.abep.org.com.br/.Acesso em 06 jun. 2022
Grau de instrução do chefe da família | ||
---|---|---|
Analfabeto / Fundamental I incompleto | 0 | |
Fundamental I completo / Fundamental II incompleto | 1 | |
Fundamental II completo / Médio incompleto | 2 | |
Médio completo / Superior incompleto | 3 | |
Superior completo | 4 | |
Serviços públicos | Não | Sim |
Água encanada | 0 | 4 |
Rua pavimentada | 0 | 2 |
Fonte: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE PESQUISA. ABEP. São Paulo: Critério Brasil 2019. ABEP - Associação Brasileira Econômica de Pesquisa, 1-6. Disponível em: https://www.abep.org.com.br/.Acesso em 06 jun. 2022
As classes do ICB foram dicotomizadas num estrato superior, que englobou as classes A, B1 e B2, e num estrato inferior, que incluiu as classes C1, C2, D e E, categorização que objetivou proporcionar uma análise estatística mais adequada à amostra estudada.
A escala Hospital Anxiety and Depression Scale (HAD) é tida como um instrumento confiável para o screening de quadros de ansiedade e depressão em situações de comorbidade física. É uma escala de 14 itens, dispostos no formato de questões do tipo múltipla escolha, divididos em duas subescalas de 7 itens, uma denominada HAD-A, que explora os sintomas de ansiedade, e outra denominada HAD-D, que explora sintomas depressivos. Cada item do questionário é composto por uma escala Likert de 4 pontos (Hyland et al., 2019), o que proporciona uma graduação de 0 a 3, e resulta num somatório para graduação de cada subescala, ansiedade e depressão, entre 0 e 21, ou seja, o resultado da graduação total da escala HAD é um ordinal, que varia entre 0 e 42. Os autores da HAD ao procederem a análise quantitativa preliminar dos sintomas psiquiátricos propuseram a seguinte classificação para cada item do questionário: 0-1 não-caso, 2 para os casos duvidosos e, 3-4 para os casos bem definidos e o resultado final da soma dos itens de cada subescala classificou o caso em: (1) <7 não caso; (2) 8-10 caso duvidoso; (3) >11 caso definido, tanto para subescala HAD-A, como para subescala HAD-D (Botega et al., 1995; Zigmond & Snaith, 1983). O ponto de corte adotado neste estudo para ambas as subescalas da HAD foi o ≥8 (Botega et al., 1995).
Procedimentos
Este estudo foi um estudo transversal, observacional e de abordagem quantitativa. Foi realizado nas dependências do Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago da Universidade Federal de Santa Catarina (HU-UFSC), na cidade de Florianópolis, estado de Santa Catarina, Brasil. Participaram indivíduos que estiveram internados com COVID nas enfermarias ou na unidade de terapia intensiva (UTI) do HU-UFSC.
No momento da alta hospitalar, que ocorreu entre julho de 2020 e maio de 2021, foi agendada visita ao Núcleo de Pesquisa em Asma e Inflamação das Vias Aéreas (NUPAIVA) após 90 dias, ocasião na qual os indivíduos incluídos no estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Nessa visita foram coletados dados cadastrais nos prontuários médicos, como sexo e idade, os antropométricos necessários para o cálculo do Índice de Massa Corporal (IMC) e os clínicos relativos à hospitalização. Os participantes foram submetidos à avaliação médica, preencheram questionário concernente aos determinantes sociodemográficos, o Critério Brasil, e foi aplicado o instrumento escolhido para o screening dos sintomas psiquiátricos de ansiedade e depressão, a escala Hospital Anxiety and Depression Scale (HAD).
Considerações éticas
Este estudo foi previamente aprovado e registrado no Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina sob o número CAAE 36944620.5.1001, foram respeitados todos os pressupostos inerentes a este tipo de investigação, a saber, confidencialidade, voluntariedade e consentimento informado.
Análise Estatística
Os dados coletados foram tabulados numa planilha Microsoft Excel®, em seguida foram importados para o programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 22, que foi o empregado para realização da análise estatística. A análise descritiva consistiu em: medidas de tendência central e dispersão para as variáveis numéricas, e frequência absoluta e relativa para as variáveis categóricas. Para análise de associações foi realizado o Teste Qui-Quadrado ou Fisher quando apropriado. Foi adotado o nível de significância estatística de 5%.
Resultados
Participaram 75 indivíduos com média de idade de 52,1 (DP = 12,1) anos, que permaneceram hospitalizados em média por 19,4 (DP = 14,5) dias. O IMC médio da amostra foi de 32,3 (DP = 11,9), sendo a maioria dos participantes (67,6%) categorizada como obesa. A classificação dos participantes segundo o ICB foi, classe A, 2 (2,7%), classe B1, 8 (10,7%), classe B2, 24 (32,0%), classe C1, 19 (25,3%), classe C2, 21 (28,0%) e classe D-E, 1(1,3%), e após a dicotomização, os indivíduos do estrato superior 33 (44,0%) e do estrato inferior 42 (56,0%). O screening de ansiedade e depressão proporcionado pela escala HAD, estimou o percentual dos sintomas de ansiedade em 20 (26,7%) e da depressão em 12 (16,0%). Os dados clínicos, antropométricos e sociodemográficos encontram-se demonstrados na Quadro 3.
Observou-se associação significante entre os sintomas de ansiedade e o ICB, no estrato inferior [16 (38,1%) (p = 0,04)], e entre os sintomas de depressão e o ICB, também no estrato inferior [10 (23,8%) (p = 0,001)]. Houve associação significante entre ausência de obesidade e os sintomas de depressão [7 (30,4%)]. Esses achados estão disponíveis no Quadro 4.
Variável | n (%) |
---|---|
Sexo | |
Masculino | 40 (53,3) |
Feminino | 35 (46,7) |
Obesidade (IMC ≥ 30) | |
Não | 23 (32,4) |
Sim | 48 (67,6) |
Índice Brasil | |
Classe superior (A, B1, B2) | 33 (44,0) |
Classe inferior (C1, C2, D e E) | 42 (56,0) |
UTI | |
Não | 17 (22,7) |
Sim | 58 (77,3) |
VMI | |
Não | 25 (33,3) |
Sim | 50 (66,7) |
Ansiedade (HAD-A) | |
Não (< 8 pontos) | 55 (73,3) |
Sim (≥ 8 pontos) | 20 (26,7) |
Depressão (HAD-D) | |
Não (< 8 pontos) | 63 (84,0) |
Sim (≥ 8 pontos) | 12 (16,0) |
Nota. IMC = Índice de massa corpórea; UTI = Unidade de Terapia Intensiva; VMI = Ventilação Mecânica Invasiva
Variáveis | Ansiedade | p valor | Depressão | p valor | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Não | Sim | Não | Sim | |||
Índice Critério Brasil | 0,01 | 0,04 | ||||
A, B1 e B2 | 29 (87,9%) | 4 (12,1%) | 31 (93,9%) | 2 (6,1%) | ||
C1, C2, D e E | 26 (61,9%) | 16(38,1%) | 32 (76,2%) | 10 (23,8%) | ||
Faixa etária | 0,91 | 0,23 | ||||
≤ 52 anos | 27 (73,0%) | 10(27,0%) | 33 (89,2%) | 4 (10,8%) | ||
> 53 anos | 28 (73,7%) | 10(26,3%) | 30 (78,0%) | 8 (21,1%) | ||
Obesidade | 0,29 | 0,03 | ||||
Não | 15 (65,2%) | 8 (34,8%) | 16 (69,6%) | 7 (30,4%) | ||
Sim | 37 (77,1%) | 11(22,9%) | 43 (89,6%) | 5 (10,4%) | ||
UTI | 0,34 | 0,34 | ||||
Não | 17 (82,4%) | 3 (17,6%) | 13 (76,5%) | 4 (23,5%) | ||
Sim | 41 (70,7%) | 17(29,3%) | 50 (86,2%) | 8 (13,8%) | ||
VMI | 0,36 | 0,50 | ||||
Não | 20 (80%) | 5 (20,0%) | 20 (80,0%) | 5 (20,0%) | ||
Sim | 35 (70,0%) | 15(30,0%) | 43 (86,0%) | 7 (14,0%) |
Nota. IMC = Índice de massa corpórea; UTI = Unidade de Terapia Intensiva; VMI = Ventilação Mecânica Invasiva.
Discussão
A frequência dos sintomas de ansiedade e depressão na população estudada foi 26,7% e 16,0%, respectivamente. Observou-se associação significante entre os sintomas de ansiedade e depressão e os estratos inferiores do Índice Critério Brasil e, entre os sintomas de depressão e indivíduos não obesos.
Para analisar a frequência dos sintomas ansiedade e depressão detectada neste projeto é preciso compará-la com a de outros estudos, respeitadas as diferenças e semelhanças entre as populações e as metodologias utilizadas. Os resultados desta pesquisa serão comparados com os de outras que pesquisaram ansiedade e depressão em pacientes na pós-COVID-19 que estiveram internados em UTIs, com a prevalência da ansiedade e depressão na população geral, com a estimada em pacientes internados durante as epidemias causadas por outros coronavírus, na população geral durante a pandemia da COVID-19, em pacientes internados pela COVID-19 durante a pandemia e em indivíduos que desenvolveram a síndrome pós-COVID-19.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) a prevalência mundial do transtorno de ansiedade é de aproximadamente 3,6% (World Health Organization - WHO, 2017). No Brasil a prevalência o transtorno de ansiedade na população geral é estimada em 9,3%, a mais elevada entre todos países estudados (WHO, 2017). A prevalência do Distúrbio da Depressão Maior varia de país para país, sendo a média geral em torno de 6% (Malhi & Mann, 2018). Artigo de revisão sobre a epidemiologia da depressão concluiu que entre os países de renda baixa-média, a mais elevada foi observada em São Paulo, Brasil, 10,4%, a mais baixa na China, 3,8%, e a média 5,9% (Kessler & Bromet, 2013; Malhi & Mann, 2018). Os percentuais de ansiedade e depressão estimados neste estudo se mostraram mais elevados que os descritos para a população geral, mesmo quando considerados fatores circunstanciais, tais como, a pandemia, a necessidade de cuidados intensivos e o medo da piora clínica e do óbito.
Após o surto da SARS, virose provocada por outro coronavírus, o SARSCoV, estudos descreveram, entre outros, a presença dos sintomas psiquiátricos ansiedade e depressão. A pesquisa de Wu et al. (2005) avaliou em 131 sobreviventes da SARS, com o intuito de estimar a ocorrência do TEPT (Transtorno do Estresse Pós-traumático), ansiedade, depressão, ou ambas, decorridos 1 mês e 3 meses após a alta hospitalar. Os participantes responderam diferentes instrumentos de autoavaliação, inclusive a HAD, para a qual doi adotado o ponto de corte ≥ 11. Um mês após a alta hospitalar o percentual da ansiedade foi 14%, o da depressão 13%, e 90 dias após a alta a ansiedade era 14% e a depressão 13% (Wu et al., 2005). Na metodologia adotada há semelhanças e diferenças com o realizado no HU-UFSC, o período decorrido após a alta e o emprego da escala HAD são os mesmos, mas o ponto de corte da HAD é distinto, o que limita a comparação dos resultados.
As consequências da pandemia para a saúde mental podem estar associadas à ação direta da infecção viral pelo SARS-CoV-2 (infecção neuronal ou astrocítica, mecanismos inflamatórios ou microvasculares), como também aos efeitos indiretos da infecção (impacto social e econômico das medidas preventivas da COVID-19) (Czeisler et al., 2021; Manning et al., 2021).
As estimativas dos sintomas psiquiátricos ansiedade e depressão na população geral durante a pandemia detectaram um aumento substancial com relação ao período pré-pandêmico (Czeisler et al., 2021; Czeisler et al., 2021). Em estudo realizado na Australia com a participação de 1531 indivíduos, no início de abril de 2020, a prevalência da ansiedade e da depressão foi estimada em 21,1% e 21,9%, e 28,6% para algum desses dois distúrbios (Czeisler et al., 2021). Valores superiores aos detectados em pesquisa nacional australiana realizada entre 2001 e 2014, que apontou para existência de estabilidade na prevalência combinada dos distúrbios mentais comuns (predominantemente ansiedade e depressão) no período estudado, entre 11% e 13% (Harvey et al., 2017).
Czeisler et al. (2021), descreveram a situação vivida pela população de Victoria, Australia, entre abril e setembro de 2020, que foi submetida a um dos mais longos e restritivos lockdowns do planeta, com a peculiaridade dessa região ser uma com as mais baixas prevalência do SARS-CoV-2. Os autores observaram que aproximadamente 1/3 dos adultos reportaram sintomas de ansiedade ou depressão e TEPT pela COVID-19, que era uma proporção semelhante à apresentada por essa mesma população em abril 2020, quando o lockdown recém havia sido instituído, e com a observada entre os meses de abril de 2020 e fevereiro 2021 nos EUA. A estabilidade desses índices, que expressam uma saúde mental pobre, expõe uma contradição, já que eles são equivalentes em regiões onde prevalência das infecções pelo SARS-CoV-2 era baixa e em outras nas quais a prevalência era elevada, e havia alta demanda por hospitalização e elevado número de óbitos pela COVID-19, o que sugere que o impacto indireto na saúde mental durante a pandemia não parece ser influenciado pelo risco objetivo da COVID-19 (Czeisler et al., 2021).
Betschart et al. (2021) publicaram em 2021 um estudo prospectivo em coorte (n = 43), cujo objetivo era descrever o processo de recuperação da capacidade física de indivíduos que desenvolveram um quadro clínico de pneumonia pela COVID-19, categorizada de leve (10/43) a crítica (6/43), e estiveram internados em média por 10 dias (IQR 9). Os pesquisadores avaliaram os participantes em três momentos, na alta hospitalar, e aos 3 e 12 meses após a admissão. Para o rastreio da ansiedade e depressão foi utilizada a escala HAD, o ponto de corte ≥ 8. O percentual da ansiedade foi estimado em 14% após a alta, e em 5% e 16%, passados 3 e 12 após a internação. O percentual da depressão foi estimado em 11% após a alta, e em 5% e 22% passados 3 e 12 meses após a internação (Betschart et al., 2021). Rousseau et al publicaram artigo em 2021, que tinha como objetivo avaliar desfechos a médio-prazo de indivíduos que necessitaram de cuidados intensivos durante a COVID-19. Para o screening da ansiedade e depressão foi escolhida a escala HAD, ponto de corte ≥ 8. Entre os 42 pacientes que sobreviveram à uma prolongada internação na UTI, 32 compareceram à visita no 3º mês após a alta hospitalar. O sintoma ansiedade foi rastreado num percentual de 25% e o depressão em 12,5% dos participantes (Rousseau et al., 2021).
Artigo publicado em 2021 partia da premissa que a obesidade é um fator de risco associado à elevação dos índices de mortalidade na fase aguda da COVID-19 (de Siqueira et al., 2020), e tinha como objetivo investigar se a obesidade também era um fator de risco para o desenvolvimento de sintomas na pós-COVID-19 a longo prazo. Os pesquisadores realizaram um estudo multicêntrico com controle, do qual participaram pacientes que necessitaram de internação durante a 1ª onda da pandemia. Pacientes obesos foram recrutados como casos, e para cada paciente-caso foram recrutados outros dois pacientes do mesmo sexo e idade como controles. Os dados clínicos relativos ao período de hospitalização foram coletados junto aos prontuários médicos. Transcorridos 7,2 meses após a alta, foram avaliados 88 pacientes obesos e 176 não obesos através de entrevistas telefônicas previamente agendadas. Para o screening dos sintomas ansiedade e depressão foi aplicada escala HAD (Fernández-de-las-Peñas et al., 2022), adotado o ponto de corte ≥ 12 para a subescala HAD-A e ≥ 10 para a subescala HAD-D (Plan et al., 2008). O percentual de indivíduos obesos ansiosos detectados foi 15,9% e ansiosos e não-obesos 9,7% (p=0,146), enquanto o percentual de depressivos e obesos foi 13,6% e de depressivos e não-obesos foi 15,9% (p=0,628) (Fernández-de-las-Peñas et al., 2021).
É conhecida a associação entre os fatores ambientais e sociodemográficos com a incidência, gravidade e mortalidade pela COVID-19. Ferreira et al. (2002) publicaram estudo, uma coorte de 749 sobreviventes da COVID-19 acompanhados por 200 (IC= 185-235) dias após a hospitalização. Os autores se propuseram a identificar os fatores clínicos, sociodemográficos e ambientais associados à síndrome pós-COVID-19. Artigo foi publicado no qual eram pesquisadas associações entre as disparidades sociais e as diferenças regionais nos índices de mortalidade em São Paulo (Ranzani et al., 2021), nas comunidades de baixa renda houve maior risco de necessitar hospitalização e de evoluir para óbito (Li et al., 2021). Há evidências que a densidade populacional impacta a morbidade e mortalidade (De Angelis et al., 2021). Outrossim, o risco de infecção e morte não só é mais elevado nos bairros mais pobres, mas também entre os indivíduos mais pobres (Kemp et al., 2015), o que sugere que haja interação entre os contextos individuais e sociodemográficos (Ejike et al., 2021). As variáveis sociodemográficas consideradas nessa pesquisa foram as seguintes: idade, anos de educação, raça autodeclarada, posição socioeconômica, acesso a serviços básico e posse de bens duráveis, reveladas através de um questionário padrão validado para a população brasileira, o qual classifica os indivíduos em sete categorias (A, a mais afluente, B1, B2, C1, C2, D e E). No método adotado pelos autores as sete categorias originais foram reagrupadas em três, a alta, que uniu A, B1 e B2, correspondeu a 196 (27%) da amostra, a média que englobou a C1 e C2, correspondeu a 470 (64%) os participantes, e a baixa, que uniu as D e E, contou 73 (10%) dos participantes (ABEP, 2019). Para avaliação clínica foram utilizados diferentes instrumentos, que consideraram as comorbidades no momento da internação e os sintomas pós-COVID-19, entre os quais os sintomas ansiedade e depressão, cujo percentual foi estimado através da escala HAD (Zigmond & Snaith, 1983). O ponto de corte adotado foi > 8, para ambas as subescalas, a ansiedade foi estimada em 26%, e a depressão em 22%. A análise uni variável indicou que as características sociodemográficas foram associadas de forma significativa aos desfechos analisados, dessa forma, ficou demonstrado que comorbidades, IMC (cujo valor médio foi 31,1 (IC= 27,5 - 36, 6) e marcadores da gravidade da COVID-19, devem ser considerados preditores da persistência dos sintomas. A análise multivariável identificou diversos fatores associados à persistência dos sintomas, tais como, fatores clínicos (comorbidades, tempo de hospitalização e necessidade de intubação), sociodemográficos (sexo, idade, IMC, e posição socioeconômica), e ambientais (poluição do ar). As disparidades socioeconômicas afetaram profundamente os efeitos da COVID-19 no Brasil, as regiões mais vulneráveis sofreram de forma desproporcional uma maior morbidade e mortalidade (Li et al., 2021; Rocha et al., 2021). Ferreira colaboradores chamaram a atenção para os indícios que as condições clínicas, socioeconômicas e ambientais, são importantes preditores dos sintomas da síndrome pós-COVID-19, que ocorreram 6 meses após a hospitalização (Ferreira et al., 2022).
Na amostra estudada nesse projeto, a frequência do sintoma de ansiedade foi 26,7% e a de depressão 16,0%. Uma análise superficial desses dados pode induzir à falsa interpretação que não é uma frequência elevado, mas é preciso considerar que ela é o triplo da observada na população geral. A OMS estimou a prevalência mundial do transtorno de ansiedade em aproximadamente 3,6% (WHO, 2017) e a do transtorno de ansiedade no Brasil em 9,3%, a mais elevada entre todos países estudados (World Health Organization, 2017). Com relação ao Distúrbio da Depressão Maior, a sua prevalência varia de país para país, e a média é próxima a 5,9% (Malhi & Mann, 2018), em São Paulo, Brasil, 10,4% (Kessler & Bromet, 2013; Malhi & Mann, 2018).
Para analisar os resultados deste estudo, é preciso considerar a magnitude do impacto da pandemia na população geral do Brasil, estimada em 212 milhões. O Painel da FioCruz contabilizou 36.768.677 casos da COVID-19 acumulados no Brasil até 31 de março de 2023 (Laboratório de Informação em Saúde (LIS), 2020) e, segundo o comunicado de 16/03/2020 da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) 80% dos pacientes contaminados pelo COVID-19 não carecem de internação e, entre os 20% hospitalizados, somente 15% necessitarão de cuidados intensivos (Associação de Medicina Intensiva Brasileira, 2020). A partir dessas premissas, estimamos que entre os 36.768.677 casos acumulados, 7.353.734 pacientes necessitaram hospitalização. Se extrapolarmos a frequência dos sintomas de ansiedade e depressão, 90 dias após a alta hospitalar, observada na amostra desse estudo, para a estimativa total de hospitalizações, chegaremos a aproximadamente 3 milhões de indivíduos, que procuraram ou procurarão o sistema de saúde do país buscando por assistência médica-psicológica para os sintomas de ansiedade e depressão.
Outro aspecto importante abordado na discussão, é a importância dos efeitos indiretos do vírus SARS-CoV-2 na saúde mental, que podem estar vinculados ao isolamento social, adotado para mitigar a sua elevada transmissibilidade, e às várias formas de medo, que o distúrbio provocou e exacerbou (Czeisler et al., 2021).
A análise dos resultados deste estudo permitiu concluir que a frequência dos sintomas ansiedade e depressão foi respectivamente 26,7% e 16,0%, 90 dias após alta hospitalar de pacientes internados pela COVID-19. Observou-se também, associação estatisticamente significante entre os sintomas de ansiedade e depressão e o Índice Critério Brasil e, entre os sintomas de depressão e a ausência de obesidade.
Contribuição dos autores
Luiz Grelle: Curadoria dos dados; Análise formal, Validação, Redação do rascunho original, Metodologia, Redação do rascunho original, Revisão e Edição
Fernanda Fonseca: Curadoria dos dados; Análise formal, Validação, Redação do rascunho original; Metodologia
Diego Martins: Curadoria dos dados; Análise formal, Validação, Redação do rascunho original, Metodologia
Flavia Del Castanhel: Curadoria dos dados, análise formal, Validação, Redação do rascunho original
Rosemeri Maurici: Curadoria dos dados; Análise formal; Validação, Redação do rascunho original; Supervisão; Metodologia