Nas últimas décadas, o mundo do trabalho foi cenário de diversas transformações significativas que afetam tanto a organização quanto as condições de trabalho. Tais transformações exercem intensa influência na qualidade de vida dos profissionais (QV). Em um esforço global e multicêntrico, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu a QV como “a percepção do indivíduo de sua posição no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”, frente seu caráter multidimensional, a QV envolve grau de independência, dimensões da saúde física, psicológica, relações sociais, meio ambiente e padrão espiritual. Baseado nesses aspectos, a QV é proposta como indicador de saúde populacional e sua avaliação é empregada para estabelecer ações de promoção da saúde (Liu et al., 2017; OMS, 1995).
O mundo do trabalho influencia decisivamente na saúde do trabalhador. Dessa forma, os profissionais de saúde que atuam em serviços de alta complexidade, como hemodiálise, oncologia, pronto-socorro e terapia intensiva convivem rotineiramente com eventos desgastantes como dor, tragédia, sofrimento e proximidade com a morte. Ademais, as características do trabalho desses setores exigem assistência ininterrupta aos pacientes, execução de normas, rotinas e tarefas rígidas, divisão fragmentada das atribuições, inflexibilidade hierárquica e o dimensionamento de recursos humanos limitados. Esses fatores, somados, acarretam uma intensa carga de desgaste e de estresse físico e emocional, elevando o risco de menor QV entre esses profissionais (Magalhães et al., 2014; Souza et al., 2018).
Caracteriza-se, dessa forma, o exercício laboral como uma atividade de concepção social que exerce sobre os profissionais a função de produzir identidade e desenvolvimento pessoal. Contudo, ainda que o trabalho represente um eixo central na vida de grande parte dos indivíduos, ressalta-se a dificuldade dos profissionais em conciliar a QV e as atividades laborais (Bittencourt et al., 2007; Santos & Oliveira, 2011), sobretudo, quando os cenários são setores hospitalares de alta complexidade podendo resultar em altos custos diretos e indiretos, doenças e agravos ocupacionais, absenteísmo, abandono ou perdas de horas de trabalho.
Nesse sentido, quando os profissionais apresentam condições adequadas de bem-estar e saúde, podem oferecer assistência com mais efetividade aos pacientes. Em última análise, entre os mais beneficiados estão os pacientes, muito embora, as questões relativas ao bem-estar, QV ou saúde do próprio profissional de saúde são frequentemente delegadas aos próprios profissionais (Collier, 2017). Nesse sentido, ao considerar-se a necessidade de compreender, dentre outros, a relação entre a QV e o trabalho, foi proposta a abordagem da prevenção quinquenária. O conceito desse recente nível preventivo destaca a QV dos profissionais na perspectiva da assistência prestada ao paciente (Collier, 2017; Santos, 2019) e a influência na saúde do trabalhador.
Há poucos estudos que avaliem a QV e condições sociodemográficas, ocupacionais e de saúde entre profissionais que atuam em setores de alta complexidade hospitalar para pacientes críticos e crônicos, grande parte dos estudos limita-se a apenas a um cenário de atuação ou um determinado perfil profissional ou mesmo em populações específicas com agravos à saúde distintos (Damacena et al., 2020; Caetano et al., 2022; Silva et al., 2020). Assim, avaliar a QV é relevante, à medida que pode subsidiar a criação de programas institucionais e políticas públicas que atendam às reais necessidades dos profissionais por meio da avaliação dos fatores que podem interferir significativamente na QV, a fim de melhorar as condições de saúde, ocupacionais e de satisfação profissional, repercutindo diretamente na assistência em saúde. Deste modo, o presente estudo objetivou avaliar a qualidade de vida e fatores associados entre profissionais de saúde que atuam em setores de alta complexidade hospitalar para pacientes críticos e crônicos.
Método
Desenho de estudo
Estudo epidemiológico, transversal e analítico conduzido com profissionais de saúde que atuam em serviços de hemodiálise, oncologia, pronto-socorro e terapia intensiva neonatal de nove hospitais da macrorregião do Norte de Minas Gerais, Brasil, a qual é composta por 86 municípios e referência para uma população de 1.670.268 habitantes (Minas Gerais, 2016).
Participantes
A população do estudo foi formada por auxiliares/técnicos em enfermagem, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas e médicos. Para compor o tamanho amostral, realizou-se uma seleção em que permitiu-se que fossem considerados apenas profissionais que desempenhassem suas funções no setor por um período igual ou superior a 6 meses e foram excluídos aqueles profissionais em afastamento das atividades ocupacionais por férias ou licenças médicas no período de coleta de dados. Posteriormente ao levantamento em todos os serviços que atenderam aos critérios de elegibilidade, o número total de profissionais atuantes em tais serviços no período de coleta de dados foi de 910 profissionais. Para o cálculo amostral, considerou-se a amostra aleatória simples com reposição. A seleção ocorreu por meio de sorteio, utilizando-se o programa excel para windows®. Para estimar o tamanho da amostra, considerou-se um erro amostral tolerável de 5%, intervalo de confiança de 95%, prevalência para o evento de 50%, considerando 20% de possíveis perdas, totalizando 450 indivíduos; assim, a amostra final constituiu-se de 490 profissionais de saúde incluídos no estudo.
Material
A variável desfecho foi a QV. Para a avaliação da QV foi utilizado o instrumento WHOQOL-bref da OMS, composto por 26 perguntas que compõem as 24 facetas divididas em quatros domínios: “físico” (e.g. dor física e desconforto, dependência de medicação/tratamento, energia e fadiga, mobilidade, sono e repouso, atividades da vida cotidiana, capacidade para o trabalho), “psicológico” (e.g. sentimentos positivos e negativos, espiritualidade/crenças pessoais, aprendizado/ memória/ concentração, aceitação da imagem corporal e aparência, autoestima), “relações sociais” (e.g. relações pessoais, atividade sexual, suporte/apoio social) e “ambiente” (e.g. segurança física, ambiente físico, recursos financeiros, novas informações/habilidades, recreação e lazer, ambiente no lar, cuidados de saúde, transporte). As perguntas do WHOQOL-bref são formuladas para respostas em escala modalidade Likert, incluindo o nível de intensidade (“nada” a “extremamente”), capacidade (“nada” a “extremamente”), frequência (“nunca” a “sempre”) e avaliação (“muito satisfeito” a “muito insatisfeito”; “muito bom” a “muito ruim”). Os valores de cada domínio foram transformados em uma escala de 0 a 100 e descritos em termos de média, conforme indica o manual publicado pela equipe WHOQOL, em que as maiores médias sugerem melhor percepção de QV. Utilizou-se uma escala adaptada, sendo assim categorizada: valores de 0 a 69 classificados como necessita melhorar e valores de 70 a 100 classificados como regular/boa (Brito et al., 2012; Fleck, 2008).
Para identificar os fatores associados à QV, utilizou-se questionários autoaplicáveis, os quais foram entregues aos profissionais e, posteriormente, recolhidos pelos pesquisadores devidamente treinados. Os instrumentos foram compostos por questões referentes às condições sociodemográficas, ocupacionais e de saúde, por meio da Escala de Estresse no Trabalho (EET) e Inventário de Depressão de Beck (BDI). Em relação à classificação socioeconômica, considerou-se o sistema de pontuação do Critério de Classificação Econômica Brasil (CSE Brasil), cuja escala varia de 0 a 100 pontos, sendo que quanto maior a pontuação, melhor a classificação socioeconômica (Associação Brasileira de Empresa de Pesquisas, 2015). A renda familiar foi expressa em salários mínimos. Em relação aos níveis pressóricos e índice de massa corporal, foi realizada a calibração por meio dos parâmetros de confiabilidade e reprodutibilidade, quanto à aferição de pressão arterial, peso e altura. Os examinadores realizaram três aferições para cada uma das variáveis pressão arterial, peso e altura em um grupo de 20 voluntários formados por alunos de graduação em enfermagem. As aferições foram comparadas duas a duas, por meio do teste de correlação intraclasse (CIC). Neste estudo, o CIC intraexaminador foi de CIC≥0,61 (classificado como satisfatório), para todas as variáveis, e interexaminador foi CIC≥0,5 (classificado como satisfatório) para aferições de pressão arterial sistólica e diastólica e CIC=1 (classificado como concordância perfeita) para aferição de peso e altura (Fleiss et al., 2003).
Procedimento
A coleta de dados foi realizada entre maio de 2017 e dezembro de 2019. Para a coleta de dados da pressão arterial, seguiram-se as orientações da 7ª Diretriz Brasileira de Hipertensão Arterial e foi utilizado o Monitor de Pressão Arterial Automático de Pulso Control (HEM-6123) - Omron® validado. As aferições da pressão arterial foram realizadas na abordagem inicial ao profissional e entrega dos questionários e, também, no momento da coleta dos dados antropométricos. Foram realizadas três aferições em cada ocasião. Para análise estatística, considerou-se a média das duas últimas aferições, descartando-se a primeira aferição. Os níveis pressóricos dos participantes foram descritos como normal para pressão arterial sistólica (PAS) com valor ≤120 mmHg e pressão arterial diastólica (PAD) com valor ≤80 mmHg; para pré-hipertensão com valores médios de PAS de 121 a 139 mmHg, e entre 81 e 89 mmHg para PAD; para hipertensão aqueles com valores médios de PAS ≥140 mmHg e de PAD ≥90 mmHg, e os profissionais que relataram uso periódico de medicamento anti-hipertensivo independentemente do valor de pressão arterial aferido. Quando a PAS e a PAD foram registradas em classificações diferentes, a maior medida foi considerada para classificação da pressão arterial (Sociedade Brasileira de Cardiologia, 2016). No procedimento de coleta de dados antropométricos, o Índice de Massa Corporal (IMC) foi determinado pelo peso (em quilogramas) e a estatura (em metros) medidos por meio de balança eletrônica digital, marca Wiso®, modelo W721 e um estadiômetro. Os profissionais foram pesados com a roupa de trabalho, posicionados com os braços relaxados ao longo do corpo. Foi solicitada a retirada de calçados, jalecos, casacos, relógios e outros objetos que estivessem portando. A estatura foi avaliada, por meio de um estadiômetro portátil, com escala de 35,0 a 213,0 cm e precisão de 0,1 cm. Durante a mensuração, os profissionais foram orientados a permanecerem em posição anatômica, com os pés juntos, centralizados no equipamento, com cabeça, nádegas e calcanhares encostados na parede e com a face voltada para frente, no Plano de Frankfurt. A régua do estadiômetro foi deslocada até a cabeça do participante e realizada a leitura após uma expiração normal. Para classificação do IMC dos profissionais foram seguidos os critérios da OMS em baixo peso (<18,5 kg/m²), eutrófico (18,5 a 24,9 kg/m²), sobrepeso (25 a 29,9 kg/m²) e obeso (≥30 kg/m²) (WHO, 1995).
Análise de dados
Os dados foram tabulados no software Statistical Package Social Science (SPSS), versão 25 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos) e realizada dupla checagem. Para análise de dados, foi realizada análise descritiva de todas as variáveis por meio de sua distribuição de frequência absoluta (n) e relativa (%). Na análise bivariada, foi aplicado o teste qui-quadrado para verificar a associação entre a variável dependente e as variáveis independentes ao nível de p < 0,20. As variáveis que apresentaram valor de p < 0,20 foram selecionadas para o modelo múltiplo, adotando um modelo de regressão logística. Para a análise da qualidade do ajuste do modelo foi utilizado o teste Hosmer Lemeshow, estimando razão das chances (odds ratio), com seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC 95%). Nesta etapa múltipla, as variáveis que apresentaram p ≤ 0,05 foram mantidas no modelo final. O estudo atendeu aos princípios éticos dispostos na resolução 466/12 e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros, sob CAAE: 58931216.8.0000.5146.
Resultados
No Quadro 1 estão apresentadas as condições sociodemográficas, ocupacionais e de saúde. Dos 490 profissionais de saúde que participaram deste estudo, 323 (65,9%) eram mulheres e 167 (34,1%) homens, com uma média de idade de 35,91 [± 8,61] anos. A maioria dos profissionais possuía parceiro (61,8%), foram classificados na classe econômica C1 (59,6%), e o nível de escolaridade superior e/ou pós-graduação predominou (44,3%).
Em relação às condições ocupacionais, a maioria dos profissionais trabalhavam no setor de nefrologia (31,6%) e pronto socorro (31,6%), respectivamente, sendo a maioria profissionais de enfermagem (81,9%), a carga horária total de trabalho de até 44 horas predominou (56,5%), a maioria tinha 1 emprego (63,1%), trabalhavam no turno diurno (54,2%) e eram contratados (82,2%).
Variáveis | n | % | |
---|---|---|---|
Sexo | Masculino | 167 | 34,1 |
Feminino | 323 | 65,9 | |
Idade | 20 a 29 anos | 116 | 24,7 |
30 a 39 anos | 229 | 48,8 | |
40 ou mais | 124 | 26,4 | |
Estado civil | Sem parceiro(a) | 179 | 38,2 |
Com parceiro(a) | 290 | 61,8 | |
CSE Brasil | A/B1 | 147 | 31,4 |
C1 | 279 | 59,6 | |
C2/D/E | 42 | 9,0 | |
Escolaridade | Fundamental | 46 | 14,5 |
Médio | 131 | 41,2 | |
Superior/Pós-graduação | 141 | 44,3 | |
Setor coletado | CTI | 66 | 14,1 |
Nefrologia | 148 | 31,6 | |
Oncologia | 107 | 22,8 | |
Pronto Socorro | 148 | 31,6 | |
Ocupação | Auxiliar / téc. enfermagem | 311 | 66,3 |
Enfermeiro | 73 | 15,6 | |
Médico | 41 | 8,7 | |
Fisioterapeuta/Nutricionista | 44 | 9,4 | |
Carga horária total | Até 44 horas semanais | 265 | 56,5 |
Entre 44 e 60 horas semanais | 131 | 27,9 | |
Acima de 60 horas semanais | 73 | 15,6 | |
Número de empregos | 1 Emprego | 309 | 63,1 |
> 2 empregos | 181 | 36,9 | |
Turnos de atendimento | Diurno | 254 | 54,2 |
Noturno | 120 | 25,6 | |
Diurno e noturno | 95 | 20,3 | |
Vínculo do trabalhador | Concursado | 82 | 17,8 |
Contratado/CLT | 378 | 82,2 |
Nota. CSE Brasil: Critério de Classificação Econômica Brasil; CTI: Centro de terapia intensiva; CLT: consolidação das leis do trabalho.
No Quadro 2 estão apresentadas as variáveis relacionadas à QV e as condições de saúde dos profissionais. As médias de QV foram menores para o domínio ambiente, sendo que o domínio relações sociais obteve as maiores médias. Quanto às condições de saúde, a maior parte da amostra não possuía sintomas depressivos (80,2%) e era normotensa (53,6%); em relação ao estresse, a maioria apresentou nível médio (48,2%) e sobrepeso (40,9%).
Nota. WHOQOL-bref: instrumento abreviado de avaliação da QV; BDI: Inventário de Depressão de Beck; IMC: índice de massa corporal.
Na análise bivariada apresentada no Quadro 3, a classificação de QV no domínio físico é influenciada pelas seguintes características dos profissionais de saúde: número de empregos (p < 0,018), sintomas depressivos (p < 0,016), pressão arterial (p < 0,001) e índice de massa corporal (p < 0,006). Já a classificação de QV no domínio psicológico é influenciada pelas seguintes condições de saúde: sintomas depressivos (p < 0,000) e estresse no trabalho (p < 0,017). Na classificação de QV no domínio relações sociais há influência pelas seguintes condições ocupacionais e de saúde dos profissionais de saúde: vínculo de trabalho (p <0,020), sintomas depressivos (p <0,020) e estresse no trabalho (p < 0,000). A classificação de QV no domínio ambiente é influenciada pelas seguintes condições sociodemográficas, ocupacionais e de saúde: sexo feminino (p <0,014), classificação socioeconômica (p <0,001), escolaridade (p <0,004), ocupação (p <0,000), turno de trabalho (p <0,041), sintomas depressivos (p <0,000) e estresse no trabalho (p <0,004).
A análise múltipla no Quadro 4, evidenciou, após ajuste, a significância nos domínios de QV que em relação ao domínio físico ter dois ou mais empregos diminui a chance de pior percepção de QV, na variável categoria profissional as ocupações fisioterapeuta e nutricionista apresentaram maiores chances de pior QV, a presença de sintomas depressivos aumentou em 1,72 a chance de menor percepção de QV, a presença de hipertensão reduziu a chance de pior percepção de QV e o sobrepeso indicou maiores chances de pior percepção de QV.
Nota. CTI: Centro de terapia intensiva; CLT: consolidação das leis do trabalho; BDI: Inventário de Depressão de Beck; IMC: índice de massa corporal.
Nota. OR: Odds ratio; IC: Intervalo de confiança; CLT: consolidação das leis do trabalho; BDI: Inventário de Depressão de Beck; IMC: índice de massa corporal; Teste Hosmer-Lemeshow: X²H-L = p 0,409 (domínio físico); X²H-L = p < 0,99 (domínio psicológico); X²H-L = p = 0,935 (domínio relações sociais); X²H-L = p = 0,741 (domínio ambiente).
No domínio psicológico profissionais que apresentaram sintomas depressivos possuíam 5,86 mais chances de menor percepção de QV. No domínio relações sociais ter vínculo em regime de contrato/CLT reduziu a chance de menor percepção de QV, a presença de sintomas depressivos aumentou em 3,45 a chance de menor percepção de QV e os profissionais que apresentaram estresse psicossocial médio e alto elevaram em 1,74 e 2,52 respectivamente a chance de menor QV. No domínio ambiente, a variável idade entre a faixa etária de 30 a 39 elevou em 2,38 a chance de menor percepção de QV, ser profissional enfermeiro diminui a chance de pior percepção de QV, os profissionais que apresentaram sintomas depressivos tiveram 4,12 mais chances de menor percepção de QV e a presença de estresse no trabalho em nível médio aumentou 2,00 a chance de menor QV.
Discussão
Neste estudo, avaliou-se a QV percebida por profissionais de saúde que atuam em setores de alta complexidade para pacientes críticos e crônicos, os resultados demonstraram associação entre a QV e determinadas características, as quais incluem: sociodemográficas, ocupacionais e de saúde. As médias da QV observadas foram menores no domínio ambiente, o resultado foi semelhante ao encontrado em estudo que avaliou profissionais de saúde que atuavam em hospitais (Souza, 2010) e também semelhante a desfechos de outros estudos com diferentes populações em Singapura e Malásia (Anjara et al., 2017; Tzeng et al., 2012). No domínio ambiente, são avaliados, dentre outros aspectos, a segurança física, proteção, ambiente doméstico, recursos, ambiente físico, saúde e assistência social, nesse sentido, as condições de trabalho são tidas como um dos principais pontos de investigação do ambiente de trabalho e, quando considerados insatisfatórios, tais condições podem propiciar a representações de mal-estar no trabalho. Um estudo com profissionais franceses observou que as características do ambiente de trabalho influenciam a saúde física e mental dos profissionais (Brunault et al., 2014). É oportuno ressaltar-se que não é apenas o ambiente de trabalho que afeta o domínio ambiente, mas também outras características do ambiente em que o indivíduo vive. O fato desses profissionais trabalharem em diferentes setores hospitalares da macrorregião de saúde analisada pode resultar em uma pontuação menor nesse domínio, uma vez que diferentes municípios oferecem condições desiguais de acesso ao lazer, segurança e transporte (Canazaro et al., 2022). Uma vez que a menor média da QV foi observada no domínio ambiente, destaca-se a importância de investimentos na estrutura física e disposição de recursos adequados e suficientes para os profissionais que atuam em setores de alta complexidade para pacientes críticos e crônicos.
As maiores médias foram observadas no domínio relações sociais em detrimento aos outros domínios, semelhante ao encontrado em outros estudos realizados com profissionais brasileiros e chilenos (Barrientos & Suazo, 2007; Souza, 2010). Este domínio contempla as relações sociais e apoio social, um estudo brasileiro em 24 hospitais identificou que o suporte social no trabalho esteve diretamente associado a melhores médias de QV em todos os domínios (Canazaro et al., 2022). Outro estudo conduzido na Malásia também identificou que o apoio social no ambiente de trabalho é significativo para a QV (Rusli et al., 2008).
Após análise multivariada, as condições ocupacionais como número de empregos e ocupação mantiveram-se associadas à QV no domínio físico. Em relação ao número de empregos, a ocupação em dois ou mais vínculos aumentou a chance de maior QV nesse domínio (p < 0,007, OR 0,57 [0,38 - 0,86]), corroborando com a concepção de que o trabalho também é algo que dá sentido à vida, eleva o status e impulsiona o crescimento do ser humano. Quanto à ocupação, os nutricionistas e fisioterapeutas apresentaram maior chance de pior QV no domínio físico (p <0,010, OR 2,58 [1,25 - 5,31]). Um estudo brasileiro realizado com nutricionistas hospitalares indicou que o estresse psicossocial no trabalho, expresso pelas demandas psicológicas e pelo controle do trabalho, influencia a QV, sobretudo, no domínio físico (Canazaro et al., 2022). Do mesmo modo, em estudo com fisioterapeutas intensivistas evidenciou-se que a tensão excessiva, frequentes emergências e diversas condições de risco no trabalho trazem impactos negativos à saúde desses profissionais (Nascimento et al., 2017). Nesse sentido, estratégias que possam fortalecer esses profissionais no desempenho de suas atribuições, tais como melhores condições de trabalho, maior interação com as outras categoriais profissionais, iniciativas de promoção à saúde e controle sistemático de riscos no ambiente de trabalho podem favorecer a QV desses profissionais (Canazaro et al., 2022).
Quanto às condições de saúde, ser hipertenso elevou a chance de melhor percepção de QV no domínio físico (p < 0,001, OR 0,40 [0,24 - 0,68]). Esse achado, embora paradoxal, pode representar uma associação com melhores comportamentos relacionados à saúde, tais como realização regular de atividade física e ter uma abordagem equilibrada para o trabalho e a vida, entre alguns indivíduos com doenças crônicas (Ribeiro et al., 2012; Bigbee, 1985). Neste estudo, os profissionais que apresentaram sobrepeso tiveram 1,71 mais chances de menor QV no domínio físico. Estudo com profissionais de saúde poloneses identificou também que apresentar alterações no índice de massa corpórea afeta a QV, sobretudo, no domínio físico, além dos domínios psicológico e social (Orszulak et al., 2022). No ambiente de trabalho, estas alterações estão supostamente relacionadas a lesões ocupacionais, elevação nas taxas de absenteísmo, discriminação, presenteísmo e baixa produtividade (Ulguim et al., 2019).
Com base nesses resultados, visualiza-se a repercussão das demandas físicas e mentais à saúde dos profissionais de saúde quanto às peculiaridades que envolvem a assistência a pacientes críticos e crônicos, incluindo a necessidade de mobilização de pacientes e equipamentos, o transporte e as técnicas inerentes à assistência de pacientes instáveis. Dessa forma, essas condições interferem no estado de saúde do profissional, repercutindo também na produtividade e capacidade para o trabalho (Araújo et al., 2018; Umann et al., 2014).
Quanto ao vínculo empregatício, ser contratado ou celetista apresentou-se como fator protetor em relação a QV no domínio relações sociais em detrimento ao profissional concursado. O profissional concursado possui estabilidade trabalhista e financeira e uma série de direitos diferenciados em relação aos trabalhadores contratados ou celetistas, no entanto, no período de coleta de dados do presente estudo, o Estado da federação pesquisado figurava uma crise financeira que incorreu em atrasos sistemáticos no pagamento dos servidores (Barbosa et al., 2019). Tal cenário pode ter refletido na saúde física e mental desses profissionais, bem como exigiu alterações no estilo de vida com impacto direto na alimentação, atividade física, lazer e consequentemente na QV.
Em relação à idade, a faixa etária entre 30 a 39 apresentou 2,38 (p <0,031, OR 2,38 [1,08 - 5,22]) mais chance de menor QV no domínio ambiente. Isso pode ser justificado pela concepção de que jovens adultos encontram-se na fase da vida na qual se atinge o pico funcional, podendo sobrecarregar-se nas diversas esferas da vida influenciando a QV. Estudo realizado em São Paulo - Brasil identificou que a percepção da QV pode diminuir com a evolução da idade do indivíduo (Sonati et al., 2014). Em relação à ocupação, ser enfermeiro aumentou a chance de maior QV nesse domínio, destaca-se, no entanto, a necessidade de mais estudos que avaliem a QV em profissionais que atuam em setores de alta complexidade para pacientes críticos e crônicos, pois a maioria dos estudos foi conduzida entre profissionais atuantes em setores de saúde de baixa complexidade, o que limitou a comparação dos dados. É possível que a associação registrada no presente estudo se deva às diferentes funções administrativas e assistenciais desempenhadas pelos profissionais, nesse sentido, um estudo brasileiro, identificou diferenças entre a QV dos profissionais no trabalho em razão das funções administrativas ou assistenciais desempenhadas (Camargo et al., 2021).
Neste estudo, em relação às condições de saúde mental, houve associação entre o estresse psicossocial no trabalho e a QV. O estresse em maior ou menor grau aumentou a chance de menor QV vida nos domínios relações sociais e ambiente. Esses desfechos podem refletir o contato com a dor e o sofrimento e as relações com sentimentos negativos e positivos presentes no ambiente hospitalar. Essas são potenciais condições que influenciam a QV desses profissionais (Canazaro et al., 2022). Acerca do estresse no ambiente de trabalho em saúde, sobretudo no ambiente hospitalar, outras condições importantes são a sobrecarga de trabalho, baixa remuneração, dificuldade de comunicação com a equipe, ausência de recursos, dentre outras condições que sinergicamente pioram o nível de estresse (Ruiz-Fernández et al., 2020). Nesse sentido, um estudo realizado com profissionais croatas identificou altos níveis de estresse e a necessidade dos gestores estabeleceram suporte institucional efetivo para controle do estresse laboral em ambiente hospitalar (Kadovi et al., 2022). Do mesmo modo, outro estudo conduzido com profissionais de saúde marroquinos evidenciou a importância de melhorar a resistência psicológica e assegurar o bem-estar físico e mental dos profissionais, sobretudo, em setores e situações adversas (Bouaddi et al., 2023).
Ainda acerca das condições de saúde mental, houve forte associação com a presença de sintomas depressivos e a QV em todos os domínios. Neste estudo, os profissionais que apresentaram sintomas depressivos tiveram 1,72, 5,86, 3,45 e 4,12 mais chance de menor QV dos domínios físico, psicológico, relações sociais e ambiente, respectivamente. Ressalta-se que houve associação a menor percepção de QV nos níveis leve, moderado ou grave. Resultados semelhantes foram encontrados em estudo brasileiro e indiano realizado com enfermeiros e médicos (Sousa & Mourão, 2018; Suryavanshi et al., 2020), que demonstram que os transtornos mentais podem influenciar significativamente a QV. Os transtornos mentais elevam o risco de doenças sistêmicas, podendo resultar em absenteísmo, conflitos no trabalho e família, abandono voluntário do trabalho, uso abusivo de substâncias, danos no desempenho laboral e por sua vez, a qualidade da assistência ao paciente (Maharaj et al., 2018; Sousa & Mourão, 2018). Nesse sentido, os fatores associados à percepção dos profissionais sobre o suporte organizacional e os recursos no ambiente de trabalho, sobretudo, a autonomia, suporte social de pares e gestores, bem como possuir competências emocionais, resistência psicológica e estratégias de regulação emocional impactam no bem-estar profissional (Hirschle & Gondim, 2020).
Uma interface importante neste contexto é a resistência psicológica ou personalidade hardiness e a recente prevenção quinquenária. Enquanto a personalidade hardiness influência direta ou indiretamente a saúde e bem-estar, promovendo a utilização de recursos sociais e alterando o estresse autopercebido e reduzindo a tensão no trabalho, desfechos corroborados por estudos iraniano e espanhol com profissionais de saúde (Abdollahi et al., 2014; Rísquez et al., 2010), esse inovador nível de prevenção pode conjuntamente promover a saúde física e mental, favorecendo a QV dos profissionais de saúde.
Este estudo apresenta algumas limitações, embora os questionários utilizados sejam validados, os dados foram coletados por meio de autorrelato, dessa forma, o risco de viés de resposta não pode ser descartado, e alguns achados podem relacionar-se a amostra. Além disso, o delineamento foi transversal, no entanto, a associação de relação causal não pode ser inferida, assim, estudos prospectivos são necessários para identificar relações causais entres as variáveis investigadas e a QV. Ademais, a utilização de questionário autoaplicável é suscetível a falhas de interpretação e de preenchimento, além de ser provável que os profissionais tenham sub-relatado comportamentos considerados negativos à saúde, pois a pesquisa ocorreu em ambiente hospitalar. Além disso, o número reduzido de investigações conduzidas com profissionais atuantes em setores hospitalares de alta complexidade para pacientes críticos e crônicos dificultou a comparabilidade dos dados. Entretanto, destaca-se que o WHOQOL-bref é um instrumento prático e com propriedades psicométricas satisfatórias, além de ser o instrumento de avaliação de QV mais difundido no mundo e recomendado pela OMS e garantiu-se o rigor metodológico na condução do estudo, com planejamento amostral, uso de instrumentos validados, treinamento e calibração dos examinadores na condução das coletas de dados e dupla digitação dos dados. Assim, tais aspectos garantiram o controle de qualidade nos instrumentos e permitiram validade e confiabilidade ao estudo quanto às análises e estratégias apresentadas.
Os resultados deste estudo devem ser considerados, por serem representativos da população de profissionais que atuam em setores de alta complexidade hospitalar para pacientes críticos e crônicos. A maioria dos estudos sobre o tema estabelece correlações em populações específicas de profissionais e em apenas um cenário de assistência hospitalar ou serviços de atenção primária à saúde, sendo escassos estudos conduzidos com profissionais de categorias diferentes e que avaliem a influência de condições sociodemográficas, ocupacionais e de saúde de forma conjunta na QV. Nesse sentido, as intervenções no ambiente de trabalho que se baseiem em diferenças ocupacionais, sociodemográficas, de saúde, setoriais e regionais tendem a ter maior impacto nos resultados de saúde (Kazi et al., 2018).
Os resultados do presente estudo reforçam a necessidade das instituições de saúde, gestores, governos, organismos internacionais e entidades de classe profissional promoverem ações que favorecem a QV dos profissionais, tais como programas sistemáticos de promoção à saúde no ambiente de trabalho que considerem as singularidades, disposição de recursos humanos, financeiros e materiais satisfatórios e suficientes, resolução de conflitos interpessoais e controle institucional de situações de risco, sobretudo, nos serviços que atendem pacientes críticos e crônicos, a fim de propiciar e melhorar a capacidade de manter-se o bem-estar pessoal e profissional frente às contínuas adversidades e agravos advindas do trabalho.
Os resultados obtidos evidenciam diferenças significativas na avaliação da QV entre os profissionais de saúde que atuam em setores de alta complexidade para pacientes críticos e crônicos em relação às condições sociodemográficas, ocupacionais e de saúde. Esse estudo reforça que a QV dos profissionais é complexa e multifacetada, o que exige engajamento e esforços para viabilizar estratégias que a favorecem, suscitando-se ainda discussões acerca da recente prevenção quinquenária, pois esses fatores podem influenciar direta e indiretamente a saúde física e mental dos profissionais e a eficiência e efetividade da assistência prestada nos serviços hospitalares.