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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.56 Lisboa dez. 2017
https://doi.org/10.23906/ri2017.56r02
RECENSÃO
Para uma biologia dos «fascismos»
Jorge Azevedo Correia
PEDRO VELEZ, Das Constituições dos Regimes Nacionalistas do Entre-Guerras, Lisboa, ICS, 2016, 289 páginas. ISBN 978-972-671-380-7
Num momento histórico em que a precisão teórica de termos como populismo, fascismo e nacionalismo encontra uma séria necessidade de clarificação fundamentada, o Instituto de Ciências Sociais leva a publicação o livro de Pedro Velez, Das Constituições dos Regimes Nacionalistas do Entre-Guerras. Trata-se de uma parcela da investigação de doutoramento do autor que trata as várias declinações do fascismo e do nazismo e dos regimes autoritários dos anos 20 e 30 do século XX, com particular ênfase nos casos europeus. São analisadas, em particular, as relações do constitucionalismo do que são muitas vezes considerados como «fascismos», e regimes associados, com as conceções e ordenações jurídicas preexistentes nessas estruturas políticas. Tal significa dizer que são analisados os ideários comunitaristas com sucesso suficiente para se haverem constitucionalizado e tornado em regime.
O alcance da obra é proporcional ao esforço empreendido. A obra ora publicada condensa uma análise político-constitucional comparada de experiências políticas tão diversas como o prelúdio nacional-autoritário de Primo de Rivera, as várias ordenações nacionalistas dos estados do Báltico do entre guerras, a França de Vichy, a Guarda de Ferro romena, ou o Estado Novo da Grécia de Metaxas. Fá-lo com recurso persistente a três eixos de gradação: (1) a distância face à experiência liberal-democrática que a contextualiza, (2) a aferição da ideia superlativa da comunidade e (3) o grau de filiação da mesma no contexto religioso tradicional a que pertence.
A DEPENDÊNCIA DA GRAMÁTICA E APARATO LIBERAL
Quanto ao primeiro eixo, surpreende a radical dependência desta «constelação» de regimes do aparato jurídico-constitucional liberal-democrático. Na sua quase totalidade, os regimes nacionalistas do entre guerras socorreram-se de constituições, plebiscitos, referendos, atos e declarações, que refletem a sua incapacidade de construir um constitucionalismo radicalmente novo e independente dos regimes que visavam transcender. Ainda que propondo uma nova forma de construção estatal, os regimes nacionalistas recorreram, por falta de tempo, imaginação, ou por pragmatismo, à arquitetura do Estado burocrático que herdaram dos regimes liberais.
A história destes «fascismos» com a forma política por excelência da modernidade, o Estado, é um pilar axiológico fundamental. Como é frequente na história da ideologia e do pensamento moderno, os constitucionalismos nacionalistas do entre guerras tendem a sacralizar o elemento que têm mais em falta. Da mesma forma que Hobbes transpõe a insegurança da sua vida e do seu tempo para uma teoria que dá primazia absoluta ao elemento securitário, ou Locke, que face à inconstância dos eventos políticos do seu tempo, transforma a política num subproduto dos direitos de propriedade individual, também os nacionalismos sobrepuseram à complexidade da realidade, os elementos que não achavam no seu percurso. Em Itália, a falta de um Estado unificado e central gerou um estatismo que se sobrepôs ao próprio ideal da Nação. Na Alemanha, a ausência de ordem social do período de Weimar conduz a uma arbitrariedade despótica da ordem pela ordem. Em Espanha, a falta de unidade dos séculos XIX e XX gera um neotradicionalismo que frequentes vezes sacrifica os princípios da tradição constitucional prévia à modernidade, em prol de uma unidade de cariz moderno.
VARIEDADE E UNIDADE DOS «FASCISMOS»
O autor procede, como referido, à análise da «ideia diretriz» para aferir a ideia estruturante da ordem jurídico-constitucional de cada um dos regimes analisados. As várias construções políticas do nacionalismo do «entre guerras» são colocadas, através de uma sólida análise, à luz do seu núcleo de crenças e analisadas quanto ao fulcro que absolutizam e ao qual não permitem divergência. Esta justaposição fornece um enquadramento para a obra que é fundamental. A absolutização do Estado, da nação, da etnia, ou a reversão do paradigma liberal são os bens supremos que encaixam nos vários regimes descritos, sendo apresentados por Pedro Velez como um pluriverso1, um conjunto de declinações de um mesmo movimento de reação à crise do liberalismo no «entre guerras».
Para o leitor menos familiarizado com o contexto, surpreende o diagnóstico de variedades quase infindáveis de «fascismos» que se aliam, combatem e sincretizam. Na quase totalidade destes nacionalismos, a interpretação do eixo no qual radica a verdadeira comunidade, a Nação, constituiu o fulcro dos conflitos. Ao operar uma divisão entre regimes etnocêntricos e etnolátricos, nacional-cristãos, católicos e as ditaduras comissariais do pós-liberalismo, o autor cria um pano de fundo que mostra a diversidade das realidades políticas não marxistas e não liberais do período do entre guerras.
A escolha do foco da obra nos «regimes nacionalistas do entre-guerras» parece visar uma dupla função. Por um lado, uma tentativa de não proceder a uma identificação entre todas estas formas políticas e o epíteto «fascista», que descreve genericamente a experiência italiana, desde o fascismo de Santo Sepulcro e da sua visão «terceiro-posicionista»2, ao consenso social resultante da acomodação da Igreja, que proveio dos Acordos de Latrão, até à República Social Italiana de Saló. Por outro, demonstrar a variedade ideológica e teórico-discursiva destes vários fenómenos, revelando-a como uma resposta temporalmente coincidente, mas fundamentalmente diversa. Se existe por parte destes regimes um apelo à Nação, mesmo no seio dos seus apoiantes não existe uma ideia consensual daquele conceito, decorrendo dessa disputa teórica a história destes próprios regimes e dos seus conflitos.
A OBRA NO CONTEXTO DA DEFINIÇÃO DAS DEFINIÇÕES DO FASCISMO
No meio das suas muitas virtudes, o livro de Velez procede a uma análise jurídico-constitucional dos fascismos, traçando-lhe os pontos de contacto com o pensamento da modernidade e os métodos e ação que delineou. Do ponto de análise teórico, o livro é um confronto com a definição avançada por Ernst Nolte, que se tornou (de forma mais ou menos refletida) genericamente aceite, de que as finalidades do fascismo se opunham ao cosmopolitismo, racionalismo, anomia e transcendência da modernidade3 . Os exemplos dados pelo autor são abundantes. Não só estes «fascismos» assumiram em diferentes graus, por princípio ou prudência, um conjunto de tradições ante ou anti- modernas, como em muitos casos se fundiram com essa mesma modernidade, gerando novas conceções de justiça social. O homem novo das novas constituições nacionalistas é uma solução não menos abrangente, metafísica e cosmopolita que o homem novo do socialismo científico, em que a decisiva diferença entre as duas conceções se situa no horizonte máximo de libertação radical do indivíduo face à comunidade política do marxismo, e na ideia de radical dependência face às tradições comunitárias das visões nacionalistas. Os «estados novos» emergentes na época descrita, são também fortemente tributários do Estado novecentista e assumidamente liberal, sob a forma de um aparato mecanicista que concretiza, de forma impiedosa, mecanicista e impessoal, um ideal de justiça niveladora da condição humana proposta pelas várias ideologias nacionalistas.
A APOSIÇÃO DO FASCISMO ÀS ESTRUTURAS TRADICIONAIS
Sendo «religiões políticas»4 , afirmando-se como experiências totais da existência humana, as perspetivas do nazismo e do fascismo colidem, condicionam ou tentam sobrepor-se à experiência religiosa cristã que lhes serve de berço. A forma como gerem esse conflito tem muito de contingente, mas também expõe com grande abertura a natureza e finalidades próprias de cada regime. Se alguns criaram novos panteões de divindades a partir da ideologia materialista, como no caso das «etnolatrias»5 , visando assim a total identificação entre a ordenação jurídico-política e a moral, à criação de líderes acima das normas morais e de estatuto semidivino, como decorreu em várias declinações do führerprinzip, à gestação de regimes cristãos com finalidade política subjacente6 , outros reconheceram ao Estado uma autolimitação do seu contexto de aplicação, por reconhecimento da sua não abrangência. Nestes contam-se os casos católicos do franquismo e do salazarismo, mas também do regime corporativo e antinazi de Dolfüss, que via no nazismo uma expressão do mesmo mal totalizante da ideologia7 . A radical incompatibilidade das duas propostas fica demasiado patente na obra para que se possam apresentar os dois tipos de regime como formas diversas de uma mesma realidade. Fazem falta, por essa razão, nas conclusões, algumas linhas que sublinhassem a ideia, que salta à vista do leitor. Subjaz na obra uma perspetiva de que a análise dos fascismos, mais do que uma anatomia8 , de um estudo dos componentes e métodos de interação do organismo, precisa de uma biologia, uma análise integral das normas que regulam o funcionamento de organismos distintos.
OS «FASCISMOS» E O MONOLITISMO ANALÍTICO
O livro fornece elementos mais que suficientes para questionar os pressupostos e tendência coetânea de apresentar os nacionalismos do século XX de forma monolítica. Monolitismo esse que prende mais com certa forma de ativismo catedrático, do que com uma análise dos fenómenos ideológicos nos seus próprios termos.
Há a registar na obra a decisão de exclusão dos regimes-estandarte. A omissão do nazismo e do fascismo italiano dificulta uma perceção clara do enquadramento dos vários sucedâneos e regimes. Por decisão editorial9 , a análise fica despida das suas principais unidades de medida e termos de comparação. Também por este facto, a análise das continuidades entre o fascismo e o nazismo fica apenas subentendida em toda a obra, não se manifestando plenamente na sua integridade e relevância.
O método utilizado para descobrir a realidade dos regimes de entre guerras é profundamente inovador. Opera no âmbito da teoria constitucional clássica, mas socorre-se de conceitos de outras áreas do saber e de abordagens, logrando, dessa forma, uma visão abrangente e documentada, que não só obedece aos cânones e exigências da investigação, como oferece ao debate uma abordagem metodológica que possibilita a expansão dos horizontes do conhecimento na área, sem ceder à tentação de «fazer política» em que incorre a esmagadora maioria de quantos abordam o tema no nosso país.
NOTAS
1 A utilização do termo «pluriverso» na p. 257 parece um reconhecimento de que os fenómenos que se inserem no objeto de estudo são, de facto, realidades diversas, quase incomensuráveis entre si, mas com coincidência temporal e origem comuns.
2 A visão de que o nacionalismo fascista seria uma alternativa para romper com a dicotomia direita-esquerda, capitalismo-socialismo, povo-burguesia, é uma das ideias mais antigas do ideário fascista e das que atingiram maior longevidade.
3 Cf. NOLTE, Ernst – The Three Faces of Fascism: Action Française, Italian Fascism, National Socialism. 1.ª edição. Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1966.
4 No sentido dado por Voegelin de sobreposições políticas à supremacia moral do religioso (cf. VOEGELIN, Eric – As Religiões Políticas. 1.ª edição. Lisboa: Vega, 2002.
5 No caso das etnolatrias descritas no capítulo 5 da obra, o caráter materialista da pertença física à comunidade torna-se a única fonte de pertença ou exclusão.
6 Descritos no capítulo 4 da obra.
7 Davies e Lynch referem-se aos casos de Franco, Salazar e Dolfüss como «para-fascismos» que aproveitam expressões exteriores do fascismo e nazismo, para se oporem às suas finalidades últimas (cf. DAVIES, Peter, et al. – The Routledge Companion to Fascism and the Far Right. 1.ª edição. Londres: Routledge, 2002).
8 Conforme a proposta de PAXTON, Robert – The Anatomy of Fascism. 1.ª edição. Nova York: Alfred A. Knopf, 2004.
9 Cf. p. 19, da obra.