«A componente das relações externas assumiu um papel primordial, tendo sido empreendidas diversas iniciativas que elevaram o perfil da União e fortaleceram a sua influência a nível internacional. Para além de ter cumprido um vasto programa de diálogos políticos que se inserem no quadro de compromissos regulares assumidos pela UE, dos quais se destacam as cimeiras da UE com a Ucrânia, Rússia, China e Índia (a Cimeira UE-ASEAN comemorativa dos 30 anos do seu relacionamento constituiu um evento singular), a PPUE deu particular destaque ao reforço das relações com o continente africano e com o Brasil.»
MNE, DGAE, Portugal, 2007
Introdução
Este artigo propõe uma teorização sobre o papel de Portugal no fortalecimento das relações externas da União Europeia (UE). Através da identificação da liderança de Portugal na organização de cimeiras internacionais nas suas presidências europeias, o artigo procura demonstrar a vantagem relativa de Portugal como ator que contribui para a consolidação da imagem internacional da Europa como um espaço geopolítico normativo, dialogante e aberto ao mundo.
O artigo demonstra a importância do padrão histórico ecuménico da política externa portuguesa, da adaptação europeia e democrática das suas características identitárias e dos seus reflexos nas práticas e estilo diplomático de Portugal no quadro institucional europeu. Ao contrário das visões racionalistas simplificadoras, o artigo argumenta que os Estados não são todos iguais e que as características identitárias das suas políticas externas são disso um bom exemplo. Deste modo, o artigo desenvolve uma análise sobre as possibilidades de um pequeno Estado com uma grande política externa - Portugal - contribuir para marcar a agenda das relações externas da UE, designadamente na realização de cimeiras internacionais no quadro das presidências portuguesas da UE.
O artigo desenvolve-se ao longo de duas partes principais. Na primeira parte, o artigo realiza uma teorização sobre a identidade internacional portuguesa contemporânea, sublinhando as características identitárias e normativas da política externa do Portugal democrático europeu e desenvolvido (DED), em especial do seu exercício adaptativo de funcionar como Estado-Pivô ecuménico. O artigo argumenta que Portugal reinventou o seu tradicional papel ecuménico através de uma europeização de dois sentidos (de Estado de entrada e de Estado de saída), que se articula com a possibilidade de Portugal ser um ator relevante para as relações externas da UE.
Na segunda parte, o artigo tenta demonstrar a aplicação da teorização de Portugal como Estado-Pivô ecuménico através da identificação do papel da política externa portuguesa na liderança relativa à organização de cimeiras internacionais entre a UE e outros importantes espaços geopolíticos.
A argumentação desenvolvida relativa à liderança da política externa portuguesa na organização das cimeiras internacionais inclui as presidências portuguesas em geral, mas, por razões de espaço e de objeto1, o artigo centra-se na análise da Presidência portuguesa da UE (PPUE) de 2007 e nas cimeiras internacionais asiáticas, nomeadamente nas cimeiras UE-ASEAN e UE-Índia. Contudo, embora a análise se centre na PPUE de 2007, não deixamos de perspetivar até à atualidade a importância das cimeiras no quadro do desenvolvimento das relações externas da UE, incluindo uma breve referência aos objetivos da próxima PPUE de 2021.
O principal argumento deste artigo é relativo à explicitação do contributo que um pequeno país, como Portugal, pode dar à UE, ao nível da política externa europeia, designadamente na sofisticação das relações externas da UE e da sua imagem internacional como ator normativo e aberto ao mundo.
Portugal como estado-pivô ecuménico: identidade e padrão histórico de um pequeno estado com uma grande política externa
Portugal é um pequeno Estado que, sendo relativamente periférico face ao concerto principal de potências, sempre soube, desde 1142, contrabalançar a pressão continental da sua única fronteira terrestre, a Espanha, com uma vocação atlântica2 que lhe proporcionou alianças estratégicas e uma expansão marítima de que resultou um vasto e invulgar império3.
Portugal foi o primeiro império multicontinental da Era Moderna e construiu um importante padrão histórico global na sua política externa, o que lhe conferiu uma grande projeção internacional. Comparativamente com outros Estados da sua dimensão, Portugal teve um papel importante nas relações internacionais e chegou mesmo a ser uma das principais potências mundiais nos séculos XV e XVI4. Isto significa que Portugal sempre foi um pequeno Estado especial pois, fruto da sua expansão marítima e da sua tradição imperial benigna, sempre soube projetar a sua influência externa muito para além do seu peso territorial e demográfico.
A inserção global de Portugal construiu um padrão histórico na sua política externa que podemos caracterizar como sendo a de um Estado ecuménico. Este padrão histórico solidificou uma identidade internacional de Portugal que se pode sintetizar na fórmula: um Estado aberto ao mundo. Esta identidade assumiu várias formas ao longo dos séculos: Império, Reino Unido de Portugal e Brasil, Estado multicontinental ultramarino, Nação migrante, Nação de diáspora global5. Contudo, existe uma continuidade histórica que se caracteriza pela capacidade de Portugal implementar uma política externa ecuménica assente em diálogos e relações internacionais com todos os espaços geopolíticos e civilizacionais do globo.
Esta capacidade chegou mesmo a ter uma racionalização antropológica com base no luso-tropicalismo de Gilberto Freyre6, que justificava a especial capacidade de Portugal praticar a miscigenação e o diálogo intercultural, sempre negando soluções de apartheid. Para além da África lusófona, as expressões de diálogo intercultural de Portugal deram origem, por exemplo, à cultura luso-brasileira (Brasil), à cultura luso-goesa (Índia) e à cultura luso-macaense (China).
Esta identidade e imagem internacional de Portugal marca historicamente a política externa portuguesa, a sua diplomacia e o seu estilo negocial7. Como sabemos, a política externa é a política pública que melhor capta e expressa a identidade política do Estado. Deste modo, o padrão histórico da política externa e as suas expressões de identidade são indicativas da forma como os decisores veem o passado e o presente da política externa e como projetam as suas escolhas e ações políticas futuras. Assim, o padrão histórico da política externa e a construção de uma consequente identidade internacional formatam a cultura política e o estilo nacional da política externa.
As ideias e valores culturais do padrão histórico das políticas externas dos Estados são interpretados como imagens culturais8 que solidificam uma identidade internacional que emoldura e orienta a política externa dos Estados. Deste modo, as imagens e as ideias sobre quem somos e como nos situamos no mundo servem como guias essenciais para a construção das visões do mundo dos decisores e agentes diplomáticos na sua ação política.
As identidades nacional e internacional dos Estados fundamentam o seu posicionamento hierárquico e normativo na sociedade internacional, as suas alianças, amigos e rivais, e os seus interesses e aspirações essenciais. As assunções básicas sobre a identidade estão embebidas na história. Estados com uma história rica e antiga, como o caso de Portugal, exprimem uma «hiperidentidade»9 ontológica que lhes permite solidificar um padrão histórico com uma forte identidade internacional. Apesar das mudanças e adaptações relativas às constantes evoluções internas e internacionais, os Estados constroem padrões históricos das suas políticas externas que refletem a sua cultura política e o seu estilo de política externa.
Após o processo de extinção e reformulação democrática do seu especialismo imperial10, Portugal fez uma opção estratégica na sua política externa que refletiu a sua democratização e europeização: «a opção europeia»11. Todavia, já na altura o primeiro-ministro, Mário Soares, sublinhou: «A opção europeia, consubstanciada na integração institucional, não é excluidora de uma política atlântica»12.
É verdade que Portugal nunca excluiu a sua vocação atlântica e extraeuropeia da sua política externa, mas foi evidente uma aposta na continentalização europeia. Esta forte europeização da política externa portuguesa, primeiro com a europeização dos objetivos (1976-1986), depois com a europeização das práticas13, começou a solidificar uma identidade com base na democracia, na Europa e no desenvolvimento. Desde finais da década de 1980, assiste-se a uma europeização da identidade de Portugal e a definição dos interesses das políticas públicas do Estado português passa a ser, em grande medida, influenciada pelo contexto institucional da Europa.
O Estado português passa a estar embebido, de forma simultânea, dos ambientes institucionais doméstico e europeu. Esta realidade implicou uma reformulação dos contextos sociais e institucionais da formulação das imagens culturais dos atores políticos portugueses. Os atores da política externa portuguesa passam a assumir o seu papel de intermediários da fronteira interna/externa entre os interesses portugueses e europeus. Esta nova situação de interligação entre o nacional e o europeu introduziu um novo, e profundamente europeu, quadro ambiental, político e ideológico, através do qual os decisores portugueses passaram a emoldurar as suas decisões.
Sobretudo a partir da institucionalização da UE e da sua Política Externa e de Segurança Comum (PESC)14, os decisores da política externa portuguesa atuam tendo em conta dois contextos institucionais preferenciais: o nacional e o europeu. Nesta ótica, os atores da política externa portuguesa passam a ser, simultaneamente, obrigados a agir em conformidade com as normas europeias e europeizadas, bem como agentes envolvidos no processo de (re)construção de identidades e interesses domésticos, alguns dos quais passam a ser «imaginados»15 para além do Estado nacional. Tudo isto conduziu, sobretudo a partir da década de 1990, à consolidação de uma identidade política que se pode designar como a de um Portugal DED16: democrático europeu e desenvolvido17.
Contudo, mesmo neste processo de crescente europeização, Portugal não deixou de pensar a sua política externa para além da Europa e de sofisticar o seu padrão histórico ecuménico. O que é interessante é compreender que Portugal procurou conjugar as suas várias dimensões de inserção internacional, nomeadamente a europeia e a extraeuropeia.
Partindo da sua posição geopolítica europeia e da sua forte aposta no processo de construção europeia, Portugal começou a pensar-se como um Estado-Pivô da Europa com o objetivo de desenvolver uma articulação de interesses através das suas relações especiais extraeuropeias. Isto significa que apesar da sua condição internacional europeia - Estado eurocomunitário - Portugal procurou conjugar esta europeização com a possibilidade de reforçar e potenciar os outros eixos tradicionais, não europeus, da sua política externa. Neste sentido, os decisores portugueses vão potenciar o Portugal DED, fortemente europeizado, para conseguirem projetar os seus interesses - quer intra quer extra-Europa - de uma forma mais eficaz do que anteriormente a 1986. Isto significa que a afirmação do Portugal DED conjuga a dimensão europeia de forma cumulativa e interdependente com a dimensão extraeuropeia, designadamente: atlântica, latino-americana, africana, mediterrânica e asiática.
Assim, Portugal passou a formular uma política externa que desenvolve uma ligação potenciadora da sua qualidade de Estado europeu com a sua qualidade de Estado ecuménico, com uma presença em várias regiões geopolíticas extraeuropeias. Neste quadro, Portugal é um dos principais defensores da consolidação da ação externa da UE, onde é um Estado com claras vantagens comparativas.
Portugal começou a pôr em prática a ideia essencial relativa à possibilidade de adaptar a sua tradição universalista para capacitar e reforçar a sua multilateralização num quadro de interligação com a Europa, tornando-se um Estado-Pivô ecuménico da UE. Com esta ideia, Portugal construiu uma visão valiosa de Estado-Pivô que, simultaneamente, providencia relações de saída para espaços extraeuropeus para os seus parceiros europeus, bem como de um Estado de entrada na Europa para os seus parceiros extraeuropeus.
Deste modo, Portugal começou a consolidar uma aposta no seu papel de pivô diplomático, que possibilita a construção de pontes de cooperação internacional, nomeadamente, entre África e a Europa e entre a América Latina e a Europa, bem como entre a Europa e a Ásia. Isto significa que várias das relações bilaterais especiais de Portugal no contexto extraeuropeu começam a ser potenciadas no quadro do relacionamento multilateral, passando Portugal a ser um Estado-Pivô desse relacionamento.
Por exemplo, as relações entre Portugal e o Brasil, para além da relação bilateral, começam a enquadrar-se numa estratégia de cooperação multilateral inter-regional entre a UE e o Mercosul. O mesmo acontecendo com a Africa lusófona, e até com a Índia e com a China e que se refletem na liderança de Portugal na organização das cimeiras internacionais da UE.
Esta ideia e prática da política externa portuguesa, de se assumir como Estado-Pivô, enquadra-se na visão estratégica mais larga que, desde meados da década de 1990, Portugal vem manifestando, nomeadamente assumindo que «a prioridade das prioridades» da política externa portuguesa é afirmar a presença de Portugal «nos centros de decisão da vida e das instituições mundiais», projetando uma imagem internacional «mais forte na Europa e no Mundo, confiante na sua identidade, na sua capacidade de modernização e na projecção global da sua língua»18. Devido ao seu padrão histórico ecuménico e à sua identidade internacional normativa, os decisores portugueses têm vindo a consolidar a ideia de que Portugal «deve assumir um papel mais ativo na preparação da agenda global», em especial no quadro das reformas do sistema das Nações Unidas e no desenvolvimento de «uma nova parceria para a paz e para o desenvolvimento»19.
Deste modo, a política externa portuguesa do Portugal DED é caracterizada pela ideia estratégica de afirmação global da imagem de Portugal e da sua identidade ecuménica e normativa. Isto significa duas ideias-chave que se interligam. Primeiro, Portugal assume-se como um Estado europeizado e fortemente empenhado na construção do projeto europeu. Segundo, embora seja um estado Europeu, Portugal tem igualmente uma identidade global extraeuropeia que importa solidificar. Portugal é, simultaneamente, um Estado eurocomunitário e um Estado aberto ao mundo global. Neste quadro, para além do seu comprometimento em participar ativamente na consolidação e aprofundamento do projeto europeu, Portugal sublinha o seu compromisso com uma ordem internacional assente num «multilateralismo efetivo», com base «na Carta das Nações Unidas, no reforço do papel do Conselho de Segurança e da credibilidade das demais instituições do sistema das Nações Unidas»20. Estas ideias refletem-se nas decisões estratégicas da política externa portuguesa e nas suas práticas diplomáticas. Por exemplo, Portugal tem uma posição fortemente favorável à governação global e à criação e desenvolvimento de pactos globais e regionais sobre questões como as migrações e as alterações climáticas. Estas ideias e práticas foram, aliás, bem expressas na PPUE de 2007.
Deste modo, Portugal assume uma política externa normativa21 que integra os princípios e ideais da UE e da ONU. É com base nesta política externa normativa que Portugal define a sua identidade internacional de Estado ecuménico aberto ao mundo. Portugal tem vindo a assumir o papel de Estado-Pivô ecuménico promotor de diálogos universais e interculturais com todos os espaços geopolíticos e civilizacionais do globo, com destaque para o diálogo euro-atlântico, para o diálogo UE com a América Latina, nomeadamente com o Mercosul, bem como para os diálogos entre a UE com África e com a Ásia.
Neste contexto, importa sublinhar que Portugal tem contribuído para o reforço da imagem externa da UE e para a solidificação das relações externas da Europa com outros espaços regionais. Este papel de Portugal no quadro da UE não é único, mas Portugal tem sabido de forma inteligente aproveitar as suas presidências da UE para pôr em prática estas ideias. Assim, tem sido evidente o papel de Portugal como propiciador de diálogos e pontes intra e extraeuropeias. Vários exemplos desta identidade e estilo diplomático dialogante podem ser apontados, desde logo o caso da última Presidência portuguesa, em que se conseguiu concluir as negociações do tratado reformador da União, que viria a ser assinado no Mosteiro dos Jerónimos no dia 13 de dezembro de 2007, o Tratado de Lisboa22.
Convém recordar que foi igualmente durante uma Presidência portuguesa, em 2000, que se realizou a primeira cimeira com África, no Cairo. Sete anos após a realização desta primeira cimeira, foi no âmbito de uma Presidência portuguesa da UE que novamente Portugal liderou a iniciativa da Cimeira UE-África, que teve lugar entre os dias 8 e 9 de dezembro em Lisboa. Nesta cimeira, foi assinada a Declaração de Lisboa e o Governo português voltou a sublinhar a estratégia de colocar África na agenda europeia. Do mesmo modo, Portugal liderou a aproximação da UE com o Brasil, designadamente com a realização da 1.ª Cimeira UE-Brasil no dia 4 de julho de 200723.
Para além de termos consciência das ideias que formatam e consolidam a identidade internacional de Portugal, importa sublinhar que esta identidade ecuménica, normativa e dialogante se reflete na prática da política externa portuguesa, designadamente no estilo diplomático e negocial de Portugal.
Deste modo, em primeiro lugar, importa sublinhar que, ao contrário de outros Estados, Portugal não tem um especialmente complexo processo de interligação entre a política interna e a política externa na formulação das ideias-chave da sua política externa. Embora, infelizmente, Portugal também não tenha ficado imune ao surgimento de partidos populistas e extremistas, em geral os interesses e ideias fundamentais da política externa portuguesas não são prejudicados por processos de polarização ou de excessiva politização da política interna. Ainda que existam exceções, em regra, os partidos do arco governativo comungam das mesmas ideias estratégicas e mesmo os partidos mais à esquerda, com ideias divergentes, sempre demonstraram um especial sentido de cooperação institucional nos assuntos de política externa que contribuem para a projeção da imagem de Portugal no mundo, como é o caso das presidências de Portugal na UE.
Em segundo lugar, como sublinhámos, é necessário ter consciência de que a política externa é uma política de autor24 que reflete a identidade nacional e internacional do Estado. Esta identidade reflete-se na diplomacia que é a instituição chave da política externa, bem como no seu estilo de negociação que não deixa de ser a prática chave da diplomacia. Isto significa que as ideias e práticas do papel identitário de Portugal como Estado-Pivô ecuménico também se refletem no estilo negocial da diplomacia portuguesa.
Ao contrário das visões racionalistas dominantes, em que todos os atores internacionais se comportam de forma semelhante, isto é, de acordo com uma visão utilitária e consequêncialista de maximização de ganhos e minimização de custos, importa sofisticar esta visão monista sobre o racionalismo dos atores e das suas práticas diplomáticas. Esta lógica de comportamento racionalista dos atores internacionais existe e está presente em todas as práticas diplomáticas negociais. Contudo, é necessário introduzir uma lógica de comportamento adicional, a lógica identitária25, para complementar a lógica racionalista e conseguirmos explicar de forma mais completa os comportamentos dos atores internacionais.
Isto significa que os Estados e os seus decisores são atores sociais que socializam as identidades, imagens culturais e padrões históricos dos seus Estados e que esta socialização se reflete no seu estilo negocial e nas suas práticas diplomáticas. Vários estudos, com diferentes abordagens, demonstram que as culturas nacionais dos Estados determinam distintos estilos negociais das suas diplomacias26.
Por outro lado, para além de percebermos a influência dos estilos negociais dos Estados, é essencial equacionar a capacidade de diálogo intercultural dos estilos diplomáticos dos Estados. Neste quadro, num mundo exponencialmente global e multilateral e de consequente intensificação de contextos de negociação internacional, é importante que os diferentes atores diplomáticos desenvolvam boas capacidades de diálogo intercultural. Novamente, Portugal tem aqui uma vantagem comparativa, uma vez que a sua identidade e o seu padrão histórico assentam, como sublinhado, numa relativamente extraordinária capacidade de diálogo intercultural. Isto significa que não podemos compreender o sucesso diplomático e negocial de Portugal sem levarmos em consideração a sua identidade internacional de Estado-Pivô ecuménico, e o seu consequente estilo negocial altamente sensível ao diálogo e compreensão intercultural.
Portugal como estado-pivô ecuménico na UE: o caso das cimeiras asiáticas da PPUE de 2007
A Presidência portuguesa da UE (PPUE) de 2007 definiu como um dos seus objetivos estratégicos contribuir para a solidificação das relações externas da UE27 e, no caso em análise, para «o reforço do relacionamento entre a UE e a Ásia Oceânia»28, em especial solidificar e alargar as parcerias estratégicas com a China, a Índia e a ASEAN. Para além das relações estratégicas com estes atores líderes regionais, a PPUE também procurou desenvolver a «cooperação e o diálogo com outras organizações regionais»29, bem como uma estratégia de cooperação entre a UE e Timor-Leste.
A cimeira UE-ASEAN
A Cimeira UE-ASEAN realizou-se no dia 22 de novembro, em Singapura, e comemorou 30 anos de relações externas entre as duas regiões. Neste contexto, esta cimeira serviu, em primeiro lugar, para se realizar um balanço avaliativo das relações de cooperação entre as duas organizações regionais e para dinamizar um novo quadro de cooperação. Esta nova estratégia cooperativa centrou-se nos novos problemas globais, com destaque para as alterações climáticas, para os seus desafios no contexto da energia e do desenvolvimento sustentável, bem como no desenvolvimento de melhores instrumentos regulatórios do comércio internacional no sentido de desenvolver mais, e melhor reguladas, trocas comerciais entre as duas regiões.
A preparação desta cimeira iniciou-se com uma reunião de ministros de Negócios Estrangeiros UE-ASEAN, nos dias 14 e 15 de março, em Nuremberga. Aqui foi adotada uma primeira declaração sobre a parceria UE-ASEAN e definido que era importante realizar uma cimeira, simultaneamente comemorativa e prospetiva dos 30 anos de relações UE-ASEAN. Foi a Declaração de Nuremberga, de março de 2007, que definiu a importância de se construir uma parceria reforçada UE-ASEAN, e lançou os seus objetivos num plano de ação, em novembro de 2007.
No seguimento desta reunião iniciaram-se, no dia 4 de maio, as negociações com o objetivo de definir um Acordo de Comércio Livre UE-ASEAN. Deste modo, as partes reuniram as suas delegações negociais no quadro do Comité Conjunto UE-ASEAN entre os dias 19 e 20 de julho. Aqui, a UE desenvolveu e entregou non-papers relativos ao conteúdo negocial, ao calendário de negociações (estabelecendo um prazo de dois anos para a sua conclusão), bem como se definiu a estrutura dos vários grupos de trabalho criados para a negociação. Estas negociações tiveram uma segunda ronda em outubro.
Finalmente, a cimeira comemorativa dos 30 anos de relacionamento entre a UE e a ASEAN teve lugar em 22 de novembro, em Singapura, e contou com a presença do primeiro-ministro português, José Sócrates, que foi quem presidiu à delegação europeia. Nesta cimeira adotou-se uma declaração conjunta e um plano de ação para implementar a Declaração de Nuremberga. Foi também nesta cimeira que os líderes da ASEAN e da UE acordaram em acelerar as negociações para um acordo de comércio livre e sublinharam o objetivo de adesão da UE ao Tratado de Amizade e Cooperação da ASEAN.
Esta cimeira representou um marco e um ponto de viragem no desenvolvimento das relações UE-ASEAN30. A partir daqui as relações políticas e económicas entre os dois blocos regionais conheceram um aumento exponencial. Este foi um marco importante para os consequentes passos de reforço das relações UE-ASEAN, nomeadamente: o Plano de Ação de Bandar Seri Begawan para consolidar a Parceria Reforçada ASEAN-UE (2013-2017), aprovado no Estado do Brunei Darussalã em 27 de abril de 2012; a adesão da UE ao Tratado de Amizade e Cooperação no Sudeste Asiático, em 12 de julho de 2012 em Phnom Penh; a comunicação conjunta da Comissão e da alta representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de 18 de maio de 2015, intitulada «A UE e a ASEAN: uma parceria com um objetivo estratégico»31; e a Declaração de Banguecoque, de 14 de outubro de 2016, sobre a promoção de uma parceria mundial ASEAN-UE para objetivos estratégicos comuns. Como sublinhado:
«a UE e a ASEAN partilham o mesmo empenhamento em “constituir uma Comunidade” e consideram que um desenvolvimento sustentável e uma integração assente em regras são a melhor forma de garantir a segurança e a prosperidade aos seus cidadãos (mais de 1,1 mil milhões no total). A estratégia UE-2020 poderá servir de inspiração para definir a visão e o programa pós-2015 da ASEAN.»32
Com efeito, inspirada no modelo europeu, a ASEAN constitui a partir de 2015 a Comunidade ASEAN. Embora sem o nível de integração europeu, a Comunidade ASEAN fundou-se em três pilares - a Comunidade de Segurança Política da ASEAN, a Comunidade Económica da ASEAN e a Comunidade Sociocultural da ASEAN - e institucionalizou mecanismos de decisão intergovernamentais para agir concertadamente na região. Hoje, a ASEAN é a quinta maior economia do mundo, com um PIB combinado de 2,8 biliões de dólares, estimando-se que seja a quarta maior economia do mundo em 203033.
Atualmente, as relações UE-ASEAN regem-se pelo ASEAN-eu Plan of Action (2018-2022) que é uma atualização da parceria estratégica e que engloba seis pontos principais: 1) a cooperação política e de segurança; 2) a cooperação económica; 3) a cooperação sociocultural; 4) a cooperação na conectividade; 5) a iniciativa para a integração da ASEAN e a redução do fosso das desigualdades de desenvolvimento; e 6) o plano de ação de follow-up34. Neste quadro, este plano e os seus progressos devem ser objeto de análise nas reuniões ministeriais bianuais entre a ASEAN e a UE. A última reunião ministerial aconteceu em 21 de janeiro de 2019 e contou com a presença do ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva. Aqui se discutiu como desenvolver as relações UE-ASEAN, nomeadamente nos domínios da conectividade e do comércio, bem como questões transversais relativas às alterações climáticas, ao desenvolvimento sustentável, à cibersegurança, à pesca ilegal e à gestão de fronteiras35.
Em síntese, importa sublinhar que a UE e a ASEAN partilham interesses estratégicos no desenvolvimento da integração regional e na construção de «ilhas de paz» e da promoção do desenvolvimento sustentável. Ao presente, a UE é o segundo maior parceiro comercial da ASEAN, com uma quota de 13% do comércio internacional da ASEAN. Por sua vez, a ASEAN representa o terceiro maior parceiro da UE fora da Europa (depois dos Estados Unidos e da China). O comércio entre a UE e a ASEAN representou 237 mil milhões de euros em 2018 e a UE continuou a ser a maior fonte externa de fluxos de investimento direto estrangeiro (IDE) na ASEAN em 2017, investindo cerca de 27 mil milhões de euros na região asiática36.
A cimeira UE-Índia
A ideia de uma parceria estratégica com a Índia teve origem na PPUE de 2000, como aliás aconteceu com a Cimeira UE-África. Esta ideia lançada na PPUE em Lisboa, foi depois desenvolvida institucionalmente na Cimeira de Haia em 2004 e sucessivamente consolidada ao longo das várias cimeiras UE-Índia. Contudo, importa ressaltar que Portugal foi palco da primeira cimeira entre a UE e a Índia, que decorreu de 27 a 29 de junho, em Lisboa. Como argumentámos, esta iniciativa, realizada no âmbito da PPUE, só foi possível devido às relações privilegiadas entre Portugal e a Índia. Foi em Lisboa que, originalmente, se definiu o objetivo de institucionalizar uma parceria entre a UE e a Índia ao nível da cooperação para o desenvolvimento, do comércio e investimentos.
Como corolário desta cimeira, assinou-se uma declaração conjunta entre a UE e a Índia, documento fundamental no estabelecimento de uma parceria estratégica para o século XXI. Recorde-se, ainda, que a UE mantinha, até à data, este tipo de iniciativas apenas com os Estados Unidos, a Rússia, a China, o Japão e o Canadá.
Relativamente, à 8.ª Cimeira UE-Índia, importa referir que foi em abril de 2007 que o Conselho aprovou o mandato de negociação relativamente ao Acordo de Comércio Livre com a Índia. Para além das questões comerciais, o Conselho definiu igualmente que era decisivo para a ue o aprofundamento das relações políticas com a Índia. Isto significou que era necessário desenvolver esforços negociais para atualizar o «antigo» Acordo de Cooperação de 1994, bem como definir novos objetivos estratégicos de cooperação global com este ator fundamental da ordem internacional do século XXI.
Com base nas ideias já lançadas em cimeiras anteriores, que se fundamentam na Parceria Estratégica entre a UE e a Índia e no Plano de Ação Comum de Parceria Estratégica de 2005, aprovado na 6.ª Cimeira UE-Índia, em Nova Deli, em 7 de setembro de 2005, a ideia-chave da oitava cimeira foi a de iniciar um processo negocial para um novo acordo de parceria e cooperação que incluísse importantes cláusulas políticas, como a globalização e o desenvolvimento sustentável, a não proliferação de armas nucleares, o combate ao terrorismo, as alterações climáticas e a cooperação em matérias de I&D em todos os domínios.
A 8.ª Cimeira UE-Índia foi pensada e preparada com base num documento da PPUE em julho e obedecia a vários objetivos, dos quais se destacavam um novo acordo comercial e uma renovada parceria estratégica global.
O processo negocial relativo ao estabelecimento de um novo Acordo de Comércio Livre UE-Índia iniciou-se em Bruxelas no dia 27 de junho. A segunda ronda de negociações teve lugar em Nova Deli, na primeira semana de outubro. Finalmente, a terceira ronda destas negociações teve lugar em Bruxelas entre os dias 10 e 14 de dezembro, já depois da Cimeira UE-Índia.
A 8.ª Cimeira UE-Índia teve lugar em Nova Deli, no dia 30 de novembro, e contou com a participação do primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, do presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, e do presidente em exercício da UE, José Sócrates, sete anos após Portugal ter lançado o diálogo estratégico entre as duas partes. Nesta cimeira foram adotados uma declaração conjunta, bem como um Relatório de Implementação do Plano de Ação Conjunto UE-Índia37. Na declaração conjunta, a UE e a Índia destacaram os progressos na implementação do Plano de Ação Conjunto, afirmando que este seria objeto de avaliação em 2008, altura em que ambas as partes deveriam equacionar novas formas e meios de aprofundar o enquadramento global das suas relações.
Isto significa que esta cimeira foi um importante ponto de partida para abrir o caminho para um futuro e novo acordo de parceria e cooperação global entre a UE e a Índia. Quer a delegação europeia quer a delegação indiana sublinharam o reforço das relações económicas bilaterais e os progressos alcançados com as primeiras rondas de negociação no âmbito do futuro acordo de comércio e investimento, manifestando empenho na intensificação das negociações rumo a um acordo final. Também realçaram a importância de uma abordagem integrada das alterações climáticas e energia e acordaram no desenvolvimento de um programa de trabalho conjunto neste domínio e nas áreas do ambiente e da investigação. Importa acrescentar que nesta cimeira foi ainda assinada a renovação do Acordo de Ciência e Tecnologia, bem como o Memorando de Entendimento entre a Comissão Europeia e a Índia sobre o Programa Indicativo Plurianual 2007-2010.
Apesar do otimismo manifestado, na véspera da cimeira o comissário europeu Peter Mandelson alertou que a UE estava a trabalhar para um acordo com «conteúdo» em vez de um mero acordo político. Mandelson afirmou que se procurava um «progresso rápido» na conclusão do acordo, mas salientou não querer «sacrificar o conteúdo». Contudo, sublinhou Mandelson, a UE estava empenhada num acordo com a Índia, pois «Um pacto de livre comércio beneficiará enormemente as duas economias»38.
Atualmente, na 15.ª Cimeira UE-Índia, realizada a 15 de julho de 2020, os líderes europeus e indianos definiram um EU-India Strategic Partnership: A Roadmap to 202539. Este roteiro, relativo à parceria estratégica até 2025, é bastante ambicioso e amplo nas questões que engloba (tem 118 pontos), mas relativamente modesto na definição de metas práticas e nos respetivos compromissos legais e financeiros.
Contudo, importa sublinhar que o primeiro passo em qualquer relacionamento internacional começa numa visão normativa e estratégica comum, numa fórmula política de entendimento a que naturalmente se seguem os consequentes planos e acordos específicos ao nível setorial. Neste quadro, a UE e a Índia assumem que:
«Num ambiente internacional complexo, a União Europeia e a República da Índia, ambas “uniões de diversidade”, partilhando valores de democracia, Estado de direito e direitos humanos, estão igualmente convencidas da necessidade de preservar a ordem internacional baseada em regras e num multilateralismo eficaz. A UE e a Índia têm um interesse comum na segurança, prosperidade e desenvolvimento sustentável um do outro. Podem contribuir conjuntamente para um mundo mais seguro, mais limpo e mais estável.»40
A UE é o maior parceiro comercial da Índia e é responsável por um quinto das suas exportações, por outro lado, a UE lidera a lista de investidores estrangeiros na Índia.
Relativamente à próxima PPUE de 2021, está agendada a 16.ª Cimeira UE-Índia. Apesar da crise pandémica, os primeiros-ministros de Portugal e da Índia concluíram «que é mais importante do que nunca a realização da Cimeira UE-Índia durante a Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia», no primeiro semestre de 202141.
Para os dois líderes políticos, é essencial «unir esforços para que prevaleça a visão de um mundo mais seguro, assente na prosperidade partilhada e na defesa da democracia»42.
Neste quadro, a Cimeira UE-Índia está agendada para o dia 8 de maio, no Porto, com o objetivo de aprofundar a parceria estratégica. De acordo com o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, «o objetivo essencial dessa reunião é dar impulso político às relações entre as duas entidades e, em particular, [realizar] negociações para incrementar o relacionamento económico - quer comercial, quer de investimento - entre a Índia e a União Europeia»43.
A cimeira começou a ser preparada, tendo já existido uma reunião em videoconferência entre os dois ministros dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva e Subrahmanyan Jaishankar. Para além das relações multilaterais, nesta reunião também se tratou das relações bilaterais entre Portugal e a Índia, nomeadamente decidiu-se avançar com a realização da quinta comissão mista Portugal/Índia. Neste quadro, foram ainda discutidos o ponto de situação dos acordos bilaterais44 iniciados na última visita à Índia do Presidente da República portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, bem como o acordo face aos apoios mútuos às candidaturas dos dois países ao Conselho de Segurança da ONU, o que acontecerá com a Índia em 2021 e com Portugal em 2026. Serviu, finalmente, para Portugal confirmar o seu apoio à candidatura apresentada pela Índia à CPLP para ser seu observador associado.
Conclusão
Na última Presidência portuguesa, em 2007, Portugal definiu «23 pontos principais»45 para a sua agenda política e negocial. Destes, os primeiros cinco - excluindo o primeiro referente ao «Tratado de Lisboa: acordo político sobre a composição do Parlamento Europeu» - foram relativos às relações externas da UE46, o que reflete bem a teorização deste artigo e a respetiva argumentação sobre a identidade internacional portuguesa. Com efeito, importa sublinhar que a PPUE de 2007 organizou sete cimeiras internacionais e 52 reuniões internacionais ao nível ministerial. Ao nível das relações externas, no seu conjunto, a PPUE de 2007 organizou mais de 200 encontros internacionais com países terceiros47. Para além do aspeto organizativo, o que é relevante sublinhar é que Portugal está na origem de três cimeiras internacionais da UE. Portugal liderou as iniciativas de realizar as cimeiras com África e com a Índia, na PPUE de 2000, bem como com o Brasil, na PPUE de 2007, o que comprova o papel de Portugal como Estado-Pivô ecuménico.
A gradual e consistente relevância que a política externa portuguesa tem atribuído às relações externas no âmbito das suas presidências europeias demonstra que Portugal tem conseguido exercer um papel relevante na afirmação das relações externas da UE. Neste contexto, é possível afirmar que a identidade internacional de Portugal e a sua política externa têm conseguido articular bem a sua dimensão bilateral com a dimensão multilateral europeia, e dado um contributo decisivo para a afirmação da UE como um ator normativo e especialmente empenhado no diálogo internacional face aos desafios da regulação global do século XXI.
Isto mesmo foi assumido pelo Conselho Europeu nas suas conclusões sobre a PPUE em Bruxelas no dia 14 de dezembro. Deste modo:
«O Conselho Europeu salienta a importância de aprofundar as relações entre a União Europeia e os seus parceiros num mundo cada vez mais globalizado. As cimeiras realizadas durante este semestre com o Brasil, a Rússia, a Ucrânia, a China, a Índia, a ASEAN e a África contribuíram para reforçar as relações da UE com estes parceiros e para fortalecer um entendimento comum face aos desafios globais.»48
Finalmente, importa sublinhar que, por um lado, a identidade internacional do Portugal DED - baseada numa política externa dialogante, aberta, normativa, europeia e multilateral - tem demonstrado uma boa adaptação face aos desafios globais do início do século XXI. Por outro lado, a identidade internacional de Portugal, ecuménica e normativa, é um bom exemplo de como os Estados podem articular os seus interesses nacionais numa lógica multilateral e praticar uma política externa WIN-WIN, em que os interesses nacionais não colidem com interesses globais multilaterais. Na verdade, mais do que uma estratégia negocial win-win entre interesses nacionais e multilaterais, Portugal tem demonstrado capacidade de marcar a agenda das relações externas europeias com uma visão sofisticada sobre os interesses comuns da União e do resto do mundo.