Educação, privilégio e mobilidade social
As décadas que antecederam a eleição de Bolsonaro foram marcadas por uma mudança profunda no perfil do ensino superior brasileiro. As redes pública e privada foram ampliadas e o número de vagas no ensino superior cresceu significativamente. O número de matrículas nas instituições federais aumentou 71% entre 2009 e 2018, subindo de 753 mil para 1,2 milhões de alunos matriculados1. Fruto de políticas públicas de promoção do acesso e da diversidade, essas transformações foram interrompidas pelo golpe de 2016.
Na rede privada, os grupos empresariais ganharam espaço no mercado desde a abertura da educação superior, no final da presidência de Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, foram as políticas públicas federais, como as bolsas de estudos do Fundo de Financiamento ao Estudante (FIES), em 1999, e o Universidade para Todos (ProUni), em 2005, que alavancaram o seu crescimento. Dentre os grupos empresariais beneficiados, Kroton, Estácio, UNIP, Cruzeiro do Sul, Laureate e Ser Educacional ainda dominam o mercado brasileiro2.
O número de matrículas na rede privada aumentou 45% entre 2009 e 2018, subindo de 4,4 milhões para 6,4 milhões de alunos3. Na graduação, a rede privada aumentou financiamentos e bolsas de 23% dos matriculados em 2009, para 45,7%, em 2016, e 46,8% em 20184.
Concomitantemente, políticas e ações afirmativas, como a Lei de Cotas no ensino superior (Lei no 12.711/2012), a ampliação e a remodelação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que reduziu o peso do vestibular5, e a ampliação da rede de instituições de ensino superior federais, com melhor distribuição geográfica (figura 1), ampliaram o número de vagas e as possibilidades de acesso de uma parcela da população que até então não tinha o ensino superior ao seu alcance.
Tais ações contribuíram para a mudança no perfil socioeconômico dos estudantes, como o número de pessoas negras na graduação, que aumentou de 22% em 2001 para 44% em 20157. Adicionalmente, o número de inscritos no ENEM subiu de 116 mil para 6,1 milhões de estudantes entre 1998 e 20168.
O acesso de novos alunos à universidade contribuiu para uma mudança significativa na história de muitas famílias, especialmente as que tiveram pela primeira vez um representante seu na universidade. Em 2019, o jornal El País publicou a foto de um jovem negro que, em uma manifestação em defesa do ensino público, carregava um cartaz que dizia: «sou o primeiro da minha família a entrar na universidade pública e vou lutar para não ser o último!!! #HISTÓRIAUFF»9. Em nossa pesquisa, João da Silva seria a persona que representa as famílias que, beneficiadas pelas políticas educacionais do período anterior ao golpe de 2016, finalmente levaram um membro seu à universidade.
Entretanto, a prosperidade advinda da ampliação do acesso e a alteração do perfil socioeconômico dos universitários, experimentada por muitos durante os governos FHC (1995-2003), Lula (2003-2011) e Dilma (2011-2016), também criaram constrangimentos e incômodos.
Parte da classe média, que apostava nas escolas privadas para alavancar o «mérito» de seus filhos e levá-los às universidades mais disputadas do país, justamente as públicas, viu seus privilégios ameaçados e sentiu-se traída. Para essas famílias, a educação privada era não apenas um investimento, mas um passaporte para a mobilidade social de seus descendentes.
Quando os estudantes oriundos de famílias de baixa renda e da rede pública de ensino começaram a ter acesso às universidades públicas, ficou claro que os privilégios fundados no culturalismo e na desigualdade social não estavam mais garantidos. Essa elite do atraso10, tradicionalmente inimiga da mobilidade na pirâmide social, aposta mais uma vez no patrimonialismo e no combate à corrupção como ferramentas ideológicas para barrar novos avanços e justificar a urgência de uma agenda conservadora e retrógrada.
Os grandes empresários do ramo da educação e do setor financeiro poderiam prosperar ainda mais e atuar de forma mais livre sem a concorrência do ensino público gratuito e a interferência do Estado de bem-estar social. O bolsonarismo apresenta-se, portanto, como a salvação dos privilégios de classe, sustentados pelo liberalismo econômico, e dos valores e costumes conservadores.
Assim, enquanto muitos colecionavam memórias boas em relação às oportunidades de educação e outros o lucro acumulado desde décadas anteriores, uma parcela da população reagiu às mudanças com raiva ou oportunismo.
Assim chegamos ao porquê. Nem o João da Silva retratado pelo jornal El País nem a grande parcela da população beneficiada pelas políticas de inclusão social aceitariam retrocessos na educação e a implantação de uma agenda neoliberal, sem justificativas ideológicas. A necessidade de apagar as memórias recentes, criadas a partir de experiências exitosas de políticas inclusivas, no contexto da jovem democracia brasileira, justificou o uso da desinformação e tornou-a uma arma para atacar a universidade pública.
Memória e desinformação
A desinformação que circula nas redes sociais sobre a universidade pública no Brasil traz imagens que representam as instituições de ensino como lugares perigosos, antros de drogados, de orgias e de vândalos; fábricas de comunistas e alienados; um desperdício de dinheiro público e que deve ser combatido, controlado ou eliminado para o bem da sociedade.
Essa narrativa não é nova e nem uma prerrogativa brasileira, mas ganha dimensões sem precedentes durante as eleições presidenciais de 2018 no país11. Com o suporte tecnológico12 e uma estrutura de propaganda organizada e pesadamente financiada, esse debate se espalha na esfera pública e privada das famílias.
Durante a campanha eleitoral, o então candidato à presidência Jair Bolsonaro acusou as administrações anteriores, do Partido dos Trabalhadores (PT), de usar o sistema público de ensino para impor a «ideologia de gênero» e fazer apologia da homossexualidade e da imoralidade, com o objetivo de destruir a «família tradicional» e seus valores. Ele atribuiu ao seu oponente, o candidato do PT Fernando Haddad, a distribuição de um kit gay e mamadeiras com bicos em formato de pênis, conhecidas como «mamadeiras de piroca», para escolas públicas e creches durante seu mandato como ministro da Educação nos governos Lula e Dilma Rousseff. Nas palavras de Bolsonaro, segundo uma revista de grande circulação no país, «eles [a esquerda ou o PT] querem estimular a pedofilia. Eles querem sensualizar as crianças precocemente. É uma esculhambação o que fazem com a educação no Brasil»13. As acusações foram provadas falsas, mas a narrativa já havia se espalhado nas redes ao longo da campanha e não deixou de ser reiterada depois disso. Difamado, Haddad teve sua imagem maliciosamente associada à sexualização de crianças e de ser «contra a heterossexualidade» e a «família tradicional».
O uso da desinformação nas redes sociais foi tão sério que, em novembro de 2019, foi instaurada a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, pela Câmara dos Deputados em conjunto com o Senado Federal, para investigar possíveis fraudes nas eleições presidenciais no país. As acusações incluíam o uso de ataques cibernéticos, o uso de perfis falsos para influenciar os resultados eleitorais, o cyberbullying sobre os usuários da rede mais vulneráveis e «o aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio»14.
A partir da posse em janeiro de 2019, a narrativa extrapola o mundo digital e alcança a esfera oficial, referendada pelo Presidente Bolsonaro, ministros e outros agentes governamentais. Já em seu discurso de posse, o então recém-nomeado ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, afirmou:
«É preciso combater o que se denominou de ideologia de gênero, com a destruição de valores culturais, da família, da igreja, da própria educação e da vida social [...] pautas nocivas não serão mais aceitas e vamos combater o marxismo cultural em instituições de educação básica e superior. O MEC não será um bazar de enriquecimento»15.
A pesquisa que vimos desenvolvendo desde 2019 nos possibilitou observar como a narrativa tem, rápida e sistematicamente, se materializado em ações como cortes orçamentários, intervenções, ameaças, perseguições e mesmo assédio institucional, que se tornaram práticas cotidianas. Por isso, o resultado do trabalho de investigação que apresentamos se preocupou em relacionar o como ao porquê da desinformação sobre a universidade pública e da agenda ultraliberal do Governo Bolsonaro se articularem e se reforçarem mutuamente desde a sua eleição.
Novas ferramentas, velhas narrativas
Para investigar como a desinformação sobre a universidade e a agenda ultraliberal do Governo se articulam, concentramos nossa análise em três conjuntos de dados:
as declarações dos agentes públicos, sobretudo em canais oficiais do Governo, na imprensa convencional e em seus perfis nas redes sociais;
a circulação da narrativa nas redes sociais, sobretudo quando vinculada entre alguns influenciadores que apoiam o Governo Bolsonaro; e
as ações do Governo Federal que manifestam concretamente a sua agenda política.
Os dois primeiros conjuntos de dados produzem e reverberam a desinformação, em uma narrativa que legitima e justifica as medidas tomadas pelo Governo identificadas no terceiro conjunto de dados. Essa narrativa constrói uma representação da realidade, que clama a agenda bolsonarista como necessária e urgente.
Essa narrativa tem como missão estratégica: modificar, enquadrar e apagar a memória recente dos brasileiros que foram beneficiados, direta ou indiretamente, pelas políticas de expansão e diversificação do acesso ao ensino superior, nas décadas anteriores. A transformação do ensino superior nos governos que antecederam o mandato de Jair Bolsonaro marcou a vida de muitas famílias. A agenda de retrocessos almejada pelo novo governo a partir de 2019 precisaria, portanto, de argumentos fortes e que mobilizassem os medos e angústias socialmente arraigados no imaginário coletivo ao ponto de instalarem a polarização e a discórdia.
Os dados foram coletados a partir do monitoramento de noticiários, Diário Oficial da União e de redes sociais - Facebook, Twitter, YouTube, Instagram e WhatsApp - entre o dia da posse de Bolsonaro, em 1.º de janeiro de 2019, e o lançamento oficial do programa federal Future-se, destinado ao ensino superior, no dia 17 de julho do mesmo ano.
O tratamento e a análise dos dados coletados possibilitaram a identificação de práticas recorrentes, que nos ajudaram a compreender como o Governo vem utilizando-se do ecossistema de desinformação em favor da sua agenda política. Podemos listar aqui algumas das práticas identificadas em nossa análise:
contradições: divulgação de informações contraditórias por fontes e vozes oficiais para, estrategicamente, confundir a capacidade de discernimento da audiência entre o que de fato estava acontecendo ou não16;
revogações: anúncio de medidas e nomeações que logo eram revogadas, aumentando a instabilidade e as incertezas nas e sobre as instituições de ensino superior e o seu futuro; e
poder econômico: as restrições orçamentárias serviram de instrumentos de ameaça ao funcionamento das instituições e estímulo à polarização na sociedade sobre os destinos do dinheiro público.
Os atos do Governo analisados eram predominantemente relacionados a alguma das áreas e temas listados abaixo:
orçamento e finanças
exonerações e nomeações
abertura/fechamento de cursos e programas
moral, ideológico, anticomunista, religioso
eficiência de gestão
normas, estruturas, organização
captação de recursos privados.
Por outro lado, as declarações oficiais e as mensagens disseminadas em redes sociais utilizavam argumentos que poderiam ser agrupados em alguns grupos, como os seguintes:
Produtivista: retorno do investimento social; má gestão e corrupção na administração pública; melhor relação custo-benefício do ensino fundamental e técnico; conhecimento para gerar renda; formação e preparação para o mercado de trabalho.
Político-ideológico: doutrinação comunista; controle e manipulação pelos partidos políticos de esquerda; antigovernamental; comunistas e desordeiros entre estudantes e professores de ciências humanas; mídia manipuladora.
Moral-religioso: drogas; orgias e perversão; destruição familiar; «ideologia de gênero»; paganismo; corrupção.
Liberdade individual e «privativismo»: esforço e mérito; universidades responsáveis pela busca de recursos para se financiarem de empréstimos e vouchers para estudantes pagarem o ensino privado; denúncia e exposição de professores comunistas e de «doutrinação de esquerda».
Repressão e violência: criminalização das drogas e das manifestações antigovernamentais; ameaça do golpe comunista; defesa a liberação do uso de armas.
Nacionalismo e patriotismo: defesa do povo e da soberania brasileira contra o comunismo e o globalismo, representado por instituições como a ONU e alguns países escolhidos como alvo.
A narrativa que constrói um «outro» e a ameaça iminente por ele representada, e passa a ser divulgada com as novas tecnologias e as plataformas digitais, é a mesma utilizada em outros tempos. A ideologia comunista que destruiria a «família tradicional brasileira» está, novamente, no centro da propaganda da direita, repetidamente há décadas. Até mesmo o universo vocabular identificado repete o passado, como acontece com a tríade «Deus, Pátria e Família», que reaparece nas comunicações de ministros e do próprio Bolsonaro.
Esse pânico moral associado à «ameaça comunista», comum nos tempos da Guerra Fria e da Ditadura Militar, no caso brasileiro, já na década de 1960 ecoava as ansiedades de gerações anteriores. A direita católica integralista, anterior à era Vargas no Brasil, já «denunciava uma crise de moralidade» e identificava o «desvio sexual e moral como elemento crítico de uma conspiração comunista para subverter a segurança nacional»17.
Atualmente, a propaganda conta com as novas ferramentas digitais de produção e reprodução de conteúdos. As mensagens, meticulosamente elaboradas, são disseminadas de forma coordenada em canais oficiais e contas privadas. Políticos, militares, policiais, jornalistas, celebridades, e influenciadores, que foram ganhando notoriedade nas redes18, promovem a divulgação da propaganda dentro de um ecossistema de desinformação.
Essas mensagens são direcionadas a públicos específicos, selecionados por sua afinidade de valores e crenças e pela sua predisposição para reproduzi-las e amplificá-las. Dessa forma, a narrativa se espalha rapidamente, ganhando legitimidade e força19.
A propaganda aproveita-se da desordem informacional e a alimenta ativamente com o objetivo de levar a cabo a agenda do Governo. Atos jurídicos, políticos e administrativos, que desmantelam as instituições, apoiam-se nessa propaganda para provocar «polarização» ou mesmo a anomia, enunciada por Durkheim.
Os atos autoritários têm ocorrido nos mais diversos regimes políticos. O capitalismo de choque continua viabilizando as reformas neoliberais20, contando com a instabilidade gerada pela desinformação e, mais recentemente, pela pandemia de covid-19.
Alguns autores relacionam o avanço do autoritarismo nas proeminentes democracias iliberais com teorias da justificação do sistema que provocam o conformismo nos indivíduos21. Outros, sobretudo em relatórios de organizações sociais, monitoram a relação entre autoritarismos e direitos humanos e têm documentado os ataques contra as liberdades e direitos, em diferentes frentes, como os trabalhos do grupo francês ritimo22 e do Freedom House23.
O apelo à nostalgia - no sentido de fantasiar um passado e buscar uma nova compreensão de tempo e espaço para (re)criar relações entre a biografia individual e coletiva24 - tem sido uma das estratégias usadas quando as narrativas do presente não são convenientes. Passado e futuro são inatingíveis, mas a sua representação pode ser cuidadosamente selecionada, idealizada ou aspirada para aliviar a consciência sobre o que acontece no presente25 ou «criar um anseio por um tempo diferente»26. No Brasil, as ambições políticas da extrema-direita neoliberal e a necessidade das oligarquias de manterem sua hegemonia de classe ilustram esse processo de nostalgia disfarçado de conservadorismo (e vice-versa), como observamos no caso do ensino superior.
Memórias e assombrações
A metáfora do eclipse de Traverso 27 pode ser estendida para explicar como certas memórias podem sombrear outras, torná-las menos evidentes ou até esquecidas. A sobreposição de algumas memórias sobre outras, sobretudo quando nos referimos à memória oficial, promovida nas esferas públicas e institucionais, e coletiva não é algo eventual, espontâneo ou ingênuo28.
Há um tempo para a maturação, seleção, reinterpretação ou transformação dos artefatos, a partir das «sensibilidades culturais, interrogações éticas e as conveniências políticas do presente»29, até que sejam incorporados à memória coletiva30. Esse processo é longo31, possibilitando a intervenção e o deslocamento de sentido. Em nossa pesquisa, observamos que o (re)enquadramento da memória conta com o apoio do aparato institucional32 e do Estado33, mas também do ecossistema de desinformação.
A inversão das camadas da memória do brasileiro torna-se uma necessidade para subjugar as boas recordações e os avanços das últimas décadas, antes que sejam incorporados à memória coletiva. É preciso novamente assombrar a população com as recordações sobre os eventos de corrupção, como se fossem prerrogativa dos governos de esquerda, e com o fantasma de ditaduras comunistas, retratadas em conteúdos que se referiam ao Foro de São Paulo34, à irônica URSAL (União das Repúblicas Socialistas da América Latina)35 ou à «Venezuelização do Brasil»36.
Mesmo legendas de partidos políticos, como o Partido Social Liberal (PSL) de Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2019, se comprometem publicamente com as agendas de «combate à censura, aos constrangimentos e aos desequilíbrios morais e sociais decorrentes do discurso politicamente correto»37 e de combate «aos privilégios decorrentes de “quotas” que resultem na divisão do povo [...] em função de gênero, opção sexual, cor, raça, credo»38. Alguns grupos chegaram a mencionar uma agenda contra o racismo reverso, como se fosse possível tal conceito39.
O objetivo dessa narrativa é construir um sentimento de perigo em que é necessário e urgente salvar os valores e a «identidade brasileira» das orgias, profanação e balbúrdia que acontecia inclusive nos campi das universidades públicas às custas dos impostos pagos pelos trabalhadores40. Assim, os brasileiros precisavam ser (re)lembrados de que as universidades são lugares maus, de gente mal-intencionada e vagabunda desde os tempos da Ditadura.
O primeiro da linha sucessória de ministros da Educação de Bolsonaro, Ricardo Vélez, assumiu o cargo afirmando que as universidades não deveriam ser para todos, mas «reservadas para uma elite intelectual»41 e que uma pessoa não precisaria «perder seis anos estudando legislação» para se tornar um motorista de Uber42. O posicionamento do ministro, contrário ao modelo de universidade pública, gratuita e universal, e a sua negligência sobre a precarização do trabalho, que afeta o Brasil de forma severa sobretudo após as mudanças na legislação trabalhista instituída pelo Governo do Presidente Michel Temer (2016-2018), sinalizavam as pretensões do novo governo.
Não seria possível prosseguir com uma agenda conservadora e de desmantelamento de direitos se a memória coletiva sobre os anos que precederam o bolsonarismo fosse baseada na prosperidade e mobilidade social, experienciada pela grande maioria da população brasileira. Os mecanismos de apropriação e regulação capitalista em democracias pós-coloniais, como o Brasil, não se distanciaram dos observados no seu passado monárquico, oligárquico e escravocrata. A memória compartilhada pelos brasileiros não poderia colocar em xeque alguns de seus fundamentos essenciais como a meritocracia, o apartheid social, contratual e territorial43 e conceitos de justiça e igualdade que ignoram os privilégios de classe. Afinal, é necessário manter e reforçar a distância entre os corpos dóceis e frágeis e as instituições para garantir essa alienação dentro da identidade imaginada44 e a minorização das maiorias.
A contínua construção e reafirmação de um outro, reforçando continuamente o maniqueísmo do bem contra o mal e as teorias conspiratórias que fundamentam a nostalgia restauradora45, é central nesse processo. A sociedade brasileira, representada pelos seus patriotas-nacionalistas que honram «Deus, Pátria e Família», teria a obrigação de defender as gerações futuras dos comunistas, imorais, profanos, pagãos, corruptos, perdulários, que ocupam as instituições públicas de ensino no Brasil. A única forma de proteger suas crianças e seus jovens de tais perigos (ou assombrações) e restabelecer a hegemonia oligárquica na qual se sustenta o processo de acumulação capitalista no Brasil seria, pois, fazer uma limpeza nas universidades, como defendia outro dos ministros da Educação de Bolsonaro, Abraham Weintraub46.
Conclusão
A história recente do país, ao trazer para a universidade parcelas da população até então excluídas, alterou a memória que se construía sobre ela. A universidade começou a deixar de ser vista como lugar reservado aos eleitos e vencedores, para ser um lugar possível. Pela primeira vez na história do país, o acesso de maiorias minorizadas à universidade ameaçou o sólido apartheid herdado de um passado colonial e escravocrata.
As mudanças desagradaram, contudo, aqueles cujos privilégios eram sustentados pela desigualdade. Ao mesmo tempo, a elite financeira percebeu novas possibilidades de expansão e um grande mercado em potencial com a destruição da concorrência do ensino superior público e gratuito.
O bolsonarismo e sua agenda conservadora, autoritária e neoliberal aquece os corações daqueles que se sentiram traídos pelo Estado de bem-estar social, a elite do atraso, ou daqueles que almejavam trair aquele mesmo Estado que lhes possibilitou a fartura nas últimas décadas, os empresários. A reversão de direitos recém-conquistados não seria, contudo, fácil. Era preciso desconstruir a memória recente e trazer de volta os fantasmas do passado que assombraram a vida das universidades durante o século passado. A universidade, que sempre foi assediada com acusações de doutrinação de jovens, de profanação do sagrado e degradação dos valores e da moral da família cristã brasileira torna-se novamente alvo com a posse do Governo Bolsonaro.
A estratégia bolsonarista para levar a cabo sua agenda articula desinformação e atos administrativos. A instabilidade institucional necessária é criada trazendo à tona os velhos medos e angústias da população. Restrições orçamentárias e intervenções administrativas, associadas à massiva propaganda, têm buscado enfraquecer institucionalmente a universidade pública e neutralizar possíveis mobilizações em sua defesa.
A utilização do ecossistema de desinformação pelo Governo Federal atua, portanto, ao mesmo tempo enquadrando a memória e provocando insegurança quanto ao presente e futuro. A narrativa disseminada justifica e legitima sua agenda neoliberal, conservadora e autoritária. Assim acontece com muitas ideologias atuais, que prometem reconstruir um «lar ideal», seguro e melhor que o presente, levando os indivíduos a agirem pelas emoções em detrimento da razão47.
Se, no passado, os atos autoritários e impopulares, como os ataques ao Estado de bem-estar social ou avanços da agenda neoliberal conservadora precisavam de ditaduras, como no Chile, ou catástrofes naturais, como o furacão Katrina, para serem executados, hoje eles acontecem dentro do curso normal das democracias e sob as vistas das instituições48. Uma estratégia de disseminação de narrativas e um consistente e bem financiado ecossistema de desinformação tem se mostrado o bastante para gerar a confusão, a apatia e a anomia necessárias.
O Brasil antes do golpe de 2016 não podia ser definido por fatos ou por experiências individuais, mas pela narrativa dos seus sucessores que, sem ela, o próprio golpe não haveria razão de ser. O Governo bolsonarista usa a desinformação para fazer sentido ao mundo a partir das óticas do autoritarismo, conservadorismo e capitalismo. Ao prover elementos para estimular a idealização de um Brasil cristão, liberal na economia e conservador nos costumes, inclusive enaltecendo o período da Ditadura e a tortura, o bolsonarismo tenta eliminar qualquer chance de nostalgia de um Estado de bem-estar e justiça social e menos desigual que alguns experienciaram nas últimas décadas.
A memória coletiva do Brasil pré-2016 não podia ser pautada pela experiência da parcela da população diretamente beneficiada pelas políticas de inclusão na sociedade e no ensino superior. A narrativa dos que recuperavam o poder por meio do golpe precisava se impor para que o próprio impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (2016) fosse justificado. A disputa ideológica travada buscou trazer sentido ao mundo a partir das óticas do autoritarismo, do conservadorismo e do capitalismo, eliminando, assim, qualquer chance de nostalgia de um Estado de bem-estar e de avanços na justiça social.