Exemplo singular de resiliência identitária ao longo de quarenta e sete anos, finalmente, em 20 de maio de 2002, Timor conquista a sua independência. No dia 27 de setembro de 2002, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) admite com entusiasmo o seu centésimo nonagésimo primeiro Estado-Membro: a República Democrática de Timor-Leste. A entrada de Timor na ONU vai reforçar a comunidade das democracias e a comunidade de Estados-Membros de língua portuguesa. É uma vitória notável e uma história exemplar, em primeiro lugar do povo timorense, mas não deixa de ser também uma importante vitória da política externa portuguesa, apesar do carácter não linear que ela assumiu ao longo dos anos de ocupação de Timor pela Indonésia.
O nascimento do Estado timorense é um caso excecional, em que as ideias e a identidade de um povo conseguiram triunfar sobre o poder militar de ocupação de um Estado poderoso. Contudo, a resolução da questão timorense não pode igualmente deixar de ser entendida à luz de uma das mais brilhantes páginas da política externa portuguesa, bem como de uma das mais excecionais demonstrações de solidariedade do povo português, que atuou concertadamente com várias redes de solidariedade transnacionais1. No ano em que se comemoram 20 anos da independência de Timor - acontecimento relevante para Timor, para Portugal, para a região do Sudeste Asiático, para a ONU e para todos os atores internacionais e transnacionais que se envolveram na invenção de Timor - é oportuno relembrar a importância das normas internacionais e que, no médio e longo prazo, as anexações militares contra a vontade identitária dos povos raramente resultam.
O dossiê reúne vários ângulos de visão sobre Timor, focando problemáticas relacionadas com o seu trajeto até à independência, bem como o seu percurso pós-independência. O artigo de Pedro Emanuel Mendes sublinha a importância de perceber o jogo dinâmico entre as razões de poder material e de poder normativo da política internacional. Deste modo, em primeiro plano, o autor propõe uma teorização sobre o que designa de razões de poder material e razões de poder normativo para explicar a mudança nas ideias e práticas dos atores nas relações internacionais. Aplicando a sua teorização ao caso de Timor, Mendes começa por analisar as razões de poder material que estiveram na origem do nascimento da questão de Timor, em 1975, para, posteriormente, analisar comparativamente a ascensão das razões de poder normativo que permitiram a sua resolução em finais da década de 1990. O artigo demonstra a existência de três fenómenos interligados que nos ajudam a compreender melhor as dinâmicas da política internacional. Primeiro, o caso de Timor é um exemplo paradigmático da importância decisiva dos contextos políticos e ideacionais que formatam a estrutura normativa da ordem internacional de determinada época e que constroem o que é (ou não é) o comportamento adequado. Segundo, os atores internacionais não têm interesses estáticos e imutáveis. Pelo contrário, como são atores sociais, os atores internacionais socializam e adaptam os seus interesses em função dos ambientes ideacionais e normativos. São estes ambientes que influenciam a definição das suas opções e, como aconteceu com Timor, podem possibilitar mudanças e a revisão de posições aparentemente impossíveis de alterar. Terceiro, o poder material e as diferenças hierárquicas de poder dependem, mas não exclusivamente e não de forma independente, do poder normativo e da legitimidade internacional, nomeadamente da possibilidade de Estados materialmente menos poderosos conseguirem atuar concertadamente e afirmarem estratégias e práticas normativas que podem sobrepor-se à força material.
No segundo artigo, Zélia Pereira e Rui Graça Feijó apresentam-nos uma circunstanciada visão histórica, em que se clarificam as nuances da posição portuguesa sobre o processo de descolonização de Timor no conturbado período da transição portuguesa. Partindo da Cimeira de Macau (junho de 1975), em que se plasmou um consenso com os dois movimentos nacionalistas presentes (UDT e APODETI), em relação ao qual a FRETILIN não opôs reservas de fundo, e o qual haveria de ser formalizado na Lei 7/75 (Lei da Descolonização de Timor), o artigo acompanha as vicissitudes do processo até à invasão da colónia portuguesa pela Indonésia a 7 de dezembro de 1975. Pouco depois da publicação dessa lei estruturante, o «golpe da UDT» em Díli (10 de agosto) e a breve, mas sangrenta, guerra civil que se lhe seguiu, vieram pôr em causa o desenvolvimento do processo tal como gizado. A vitória militar da FRETILIN acentuou a sua reivindicação para ser reconhecida como «único legitimo representante do Povo Timorense» - o que Portugal chegou a contemplar na vigência do V Governo Provisório, mas rapidamente abandonou em função da tentativa de recuperar o processo definido na Lei 7/75. Por outro lado, o refúgio da liderança da União Democrática Timorense (UDT) e da Associação Popular Democrática Timorense (APODETI) - e ainda mais alguns pequenos partidos - em território indonésio, sem real capacidade para iniciativas políticas e diplomáticas sem o aval dos seus anfitriões, também dificultou o retomar do processo que estava em marcha antes da guerra civil. A FRETILIN instou Portugal a regressar a Díli (donde o governador se tinha ausentado em finais de agosto, refugiando-se na pequena ilha de Ataúro) e a liderar o processo de descolonização - mas sem autorizar o regresso dos derrotados, o que inviabilizava qualquer desenvolvimento que passasse pela convocação de eleições multipartidárias conforme estava registado no roteiro desenhado por Portugal. Ainda assim, o ministro Melo Antunes, que assumira esse dossiê no VI Governo Provisório, desdobrou-se em contactos, tanto nas Nações Unidas como junto do Governo indonésio (tendo tido um encontro com o seu homólogo Adam Malik em Roma no início de novembro), com vista a reanimar o processo negocial que permitisse cumprir o roteiro que vinha da Cimeira de Macau. Essas diligências, porém, não surtiram o efeito desejado, e Portugal viu-se confrontado com a proclamação unilateral de independência por parte da FRETILIN (28 de novembro), que não reconheceu, e com a invasão militar por parte da Indonésia, a que não teve forças para se opor. Estava assim provisoriamente encerrado o processo de autodeterminação do «Timor Português».
O artigo de Reinaldo Saraiva Hermenegildo desenvolve uma contextualização sobre as diferentes fases porque passou a política externa portuguesa na União Europeia em defesa da questão timorense. O autor começa por sublinhar as dificuldades e barreiras iniciais que Portugal encontrou na Europa na defesa de Timor devido à presença de poderosos interesses económicos indonésios ao nível de vários Estados europeus importantes e também ao nível da própria Comissão Europeia. De forma resiliente e gradual, contudo, Portugal foi conseguindo passar a sua mensagem, alcançando uma primeira importante vitória em 1988, quando logrou a primeira posição comum dos 12 Estados-Membros relativamente a Timor. Esta posição comum defendeu a fórmula clássica segundo a qual Timor deveria alcançar «uma solução justa, negociada e internacionalmente aceite»2. Posteriormente, com a institucionalização da Política Externa e de Segurança Comum (PESC), Hermenegildo sublinha que Portugal vai exponenciar a sua influência através da europeização da sua política externa e, cumulativamente, da definição de uma estratégia de europeização da questão timorense, obtendo na década de 1990 vários sucessos desta estratégia, com destaque para a posição comum de 1996.
O autor conclui que a defesa portuguesa da questão de Timor no quadro da PESC, para além de reforçar a posição de Portugal na União Europeia, também contribuiu para a solução da questão de Timor na ONU.
No quarto artigo, Fábio de Souza Rocha e Ramon Blanco apresentam-nos uma visão crítica neomarxista sobres os pressupostos políticos e económicos do processo de reconstrução do Estado timorense. Com base numa interpretação sobre a teoria marxista da dependência (TMD), os autores argumentam que os processos de reconstrução económica associados ao peacebuilding em Timor refletiram os princípios e normas das instituições financeiras internacionais (FMI e Banco Mundial), conhecidas como o Consenso de Washington. Na ótica da TMD, estas instituições aplicam planos de desenvolvimento que, na prática, não ultrapassam as limitações económicas estruturais e produzem um «desenvolvimento subordinado». De acordo com Rocha e Blanco, existe uma contradição entre os objetivos de desenvolvimento nos processos de peacebulding originalmente definidos pela ONU e as estratégias preconizadas pelas instâncias financeiras internacionais, nomeadamente a continuação de economias dependentes das exportações de matérias-primas, sem capacidade de industrialização. De acordo com os autores, o caso de reconstrução pós-bélica de Timor reflete estas contradições, nomeadamente a «intensificação da transferência de valor por meio da deterioração dos termos de intercâmbio», que se reflete na «dolarização da economia timorense» e no «descarte de uma política de industrialização petrolífera». Embora existam alguns bons exemplos de que esta política de dependência esteja a tentar ser revertida após 2010, os autores sublinham que outros fatores, como o crescente endividamento internacional e a necessidade de investimento de 40% das receitas do petróleo terem de ser investidas em ações do mercado global, continuam a criar obstáculos ao desenvolvimento de Timor.
Nuno Canas Mendes apresenta uma análise sobre a política externa de Timor-Leste, nomeadamente a importância das ideias e práticas relativas ao multilateralismo defendido pelas lideranças políticas timorenses. O autor identifica os principais eixos e parceiros da inserção internacional de Timor-Leste, sublinhando a natural ligação aos países da sua região geopolítica, o Sudeste Asiático e o Pacífico. Timor conta, ainda, com outras importantes relações externas, a começar pelas grandes potências, China e Estados Unidos, mas também com o seu «parceiro histórico, Portugal» e «os países de língua portuguesa (agregados na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP)». O autor sublinha que Timor integra várias organizações internacionais e regionais, e que o multilateralismo sempre foi uma trave mestra da política externa de Timor, mesmo nos anos da diplomacia de resistência. Canas Mendes centra-se na análise de dois casos exemplares, embora com resultados diferenciados, da aposta de Timor no reforço do multilateralismo: o G7+ e a ASEAN. No caso do G7+, Timor tem conseguido ter um papel de liderança na organização que integra Estados Frágeis, tendo demonstrado um êxito assinalável no desenvolvimento de programas de state building e cooperação como o «F2F - Fragile to Fragile Cooperation». O autor argumenta que a aposta de Timor no G7+ é uma marca identitária da política externa de Timor e prova do seu compromisso com a democracia, o desenvolvimento e um multilateralismo não-alinhado e solidário no Sul Global. No caso da ASEAN, Canas Mendes sublinha que, apesar de Timor sempre ter defendido a entrada na ASEAN como um dos principais objetivos da sua política externa, o processo não tem sido fácil. Embora, em 2002, alcançasse o estatuto de observador, e de, em 2005, ter passado a integrar o Fórum Regional da ASEAN e, em 2007, ter assinado o Tratado de Amizade e Cooperação no Sudeste Asiático, a verdade é que, desde 2009, Timor tenta a aprovação da sua candidatura, projetada para 2015, mas ainda não concretizada. Apesar de várias iniciativas importantes que provam a vontade de Timor em entrar na ASEAN, a sua integração não é uma prioridade para os Estados líderes da organização, que permanece enredada numa encruzilhada de opções geopolíticas, em particular da assunção plena do seu papel agregador da região, que o caso da não integração de Timor parece refletir.
O artigo de Moisés Fernandes propõe uma análise histórica sobre o papel de monsenhor D. Martinho da Costa Lopes, antigo administrador apostólico de Díli, na defesa da identidade e dos direitos humanos timorenses. De acordo com o autor, D. Martinho da Costa Lopes «foi um precursor da paz através da autodeterminação e da independência para Timor-Leste» e é um caso que nos ajuda a perceber melhor as relações entre a Igreja Católica, a Indonésia e o papel dos clérigos em Timor na defesa da identidade católica timorense. Fernandes começa por contextualizar as relações entre a Igreja Católica e a colónia portuguesa de Timor nas décadas de 1960 e 1970 para, seguidamente, apresentar as razões que levaram a Indonésia a querer impor um bispo indonésio em Timor na década de 1980. Finalmente, o autor apresenta-nos o percurso de D. Martinho da Costa Lopes como defensor da identidade e resistência timorense após a sua saída de Timor. Em primeiro plano, na sua viagem ao Vaticano e, posteriormente, em Portugal e na Suíça. Moisés Fernandes sublinha a importância dos contactos diplomáticos que D. Martinho da Costa Lopes realizou, especialmente em Genebra, quando, como membro da delegação da Pax Christi International, apresentou, em 1984, um importante e revelador testemunho na Comissão dos Direitos Humanos da ONU.
O dossiê encerra com um ensaio da autoria de Luís Manuel Brás Bernardino que apresenta uma visão, vivida na primeira pessoa, sobre o importante processo de transformação que ocorreu quando as Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (FALINTIL), guerrilheiros da resistência timorense, deram origem às Forças de Defesa de Timor-Leste (FDTL), forças armadas regulares do Estado de Timor-Leste. Brás Bernardino identifica as duas principais fases deste processo, salientando a capacidade de liderança dos políticos timorenses na afirmação da necessidade de se construir um exército nacional que simbolizasse o espírito de soberania e de reconciliação nacional de Timor. O autor argumenta que apesar das dificuldades materiais e de algumas resistências políticas regionais, a construção de uma força de defesa nacional soberana em Timor com a criação das FDTL foi um sucesso. Por outro lado, Brás Bernardino sublinha o papel de Portugal neste processo, quer ao nível material quer ao nível da formação, o que, mais uma vez, contribuiu para prestigiar as Forças Armadas Portuguesas e o nome de Portugal. O autor conclui que a criação das FDTL constituiu um marco decisivo na construção do Estado de Timor-Leste e na sua consolidação como Estado de direito.
Pedro Emanuel Mendes Investigador auxiliar do IPRI-NOVA. Os seus artigos aparecem nas seguintes publicações: Análise Social, Relações Internacionais, Brazilian Journal of International Relations, População e Sociedade, Estudos Internacionais (PUC-Minas), Austral: Journal of Strategy & International Relations, Tempo e Argumento, Dados: Revista de Ciências Sociais, Revista Brasileira de História, Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, História da Historiografia, Opinião Pública e Ler História.
Rui Graça Feijó Investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e investigador associado do Instituto de História Contemporânea (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa). Doutorado em História Moderna e Contemporânea pela Universidade de Oxford (1984) e com agregação em Democracia no Século XXI, pela Universidade de Coimbra (2017). Coordenador do projeto de investigação (financiado pela FCT) «A Auto-determinação de Timor-Leste: Um Estudo de História Transnacional» (2018-2022).