INTRODUÇÃO
A fascite plantar é um dos problemas mais comuns ao nível do pé, sendo caracterizada pela presença de alterações degenerativas da fáscia plantar resultantes do seu sobreuso (Boonchum et al., 2020; Luffy et al., 2018; Siriphorn & Eksakulkla, 2020; Trojian & Tucker, 2019). Na grande maioria das situações, os achados clínicos resultantes da anamnese e exame objetivo são suficientes para efetuar o diagnóstico (Luffy et al., 2018; Siriphorn & Eksakulkla, 2020; Trojian & Tucker, 2019). Ainda assim, o recurso a exames de imagem pode auxiliar na sua confirmação e na exclusão de diagnósticos diferenciais (Luffy et al., 2018; Trojian & Tucker, 2019).
A combinação de abordagens de tratamento conservador é a opção mais comummente utilizada, tendo um prognóstico habitualmente favorável, com 70 a 80% dos pacientes a apresentarem diminuição das queixas álgicas apenas com este tipo de tratamento (Luffy et al., 2018; Siriphorn & Eksakulkla, 2020). Uma vez que um dos possíveis fatores de risco associados a esta condição é a limitação da amplitude de movimento de dorsiflexão, com presença de retração ao nível da fáscia plantar, do tendão de Aquiles e do músculo gastrocnémio, a utilização de alongamentos enquanto estratégia de intervenção ganha importância (Boonchum et al., 2020; Luffy et al., 2018; Siriphorn & Eksakulkla, 2020; Trojian & Tucker, 2019). Apesar de não existir um tratamento estandardizado para todos os casos de fascite plantar, os alongamentos são um recurso frequentemente implementado,dado serem uma intervenção com baixos custos associados e existir a possibilidade de ser executada em contexto domiciliário de forma autónoma (Boonchum et al., 2020; Luffy et al., 2018; Schneider et al., 2017). Ainda assim, destaca-se a existência de pelo menos uma revisão sistemática previamente publicada por Siriphorn e Eksakulkla (2020) em que os alongamentos são comparados a outras estratégias terapêuticas. No entanto, este estudo admitiu como intervenção que os exercícios de alongamento fossem aplicados com outras intervenções terapêuticas adicionais o que dificulta a compreensão da estratégia de tratamento que foi eficaz. Além disso, este trabalho sugere que nova pesquisa fosse conduzida sobre esta temática, uma vez que não conseguiram apresentar conclusões claras e robustas. Por isso, uma vez que, desde a data da sua redação, surgiram novos trabalhos de relevo acerca desta temática torna-se pertinente perceber se é possível tecer conclusões mais orientativas.
Deste modo, o objetivo do presente trabalho é analisar o efeito na dor da utilização de exercícios de alongamento no tratamento da fascite plantar comparando-os com o efeito de outras abordagens terapêuticas utilizadas nesta patologia, placebo ou ausência de tratamento.
MÉTODO
Estratégia de pesquisa
A presente revisão sistemática foi conduzida de acordo com as orientações de Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) e a estratégia população-intervenção-comparação-outcomes-desenho de estudo (PICOS) (Page et al., 2021). Foram pesquisadas nas bases de dados PubMed (MEDLINE), Cochrane (CENTRAL) e PEDro (Physiotherapy Evidence Database).
Os critérios de elegibilidade foram assegurados pela estratégia PICOS. Assim, a população considerada foram indivíduos adultos com diagnóstico de fascite plantar. Os exercícios de alongamento das estruturas adjacentes à fáscia plantar foi a intervenção avaliada. Por sua vez, os exercícios de alongamentos foram comparados com outras intervenções terapêuticas, placebo ou, se caso disso, ausência de intervenção. O outcome de interesse foi o impacto dos tratamentos na dor. Por fim foram pesquisados estudos controlados aleatorizados (ECA).
Foi utilizada uma combinação de palavras-chave presentes no título e/ou resumo e de descritores MeSH (Medical Subject Headings) através dos operadores booleanos. Foram pesquisados os termos: (“Fasciitis, Plantar”[MeSH] OR “plantar fasciitis”) AND (“Muscle Stretching Exercises”[MeSH] OR “stretch*”). Foram também aplicados filtros de pesquisa no que diz respeito ao desenho de estudo (estudos controlados aleatorizados), à data de publicação (nos últimos 10 anos) e língua (inglês e português).
Critérios de elegibilidade
Os seguintes critérios de inclusão foram considerados: população de ambos os sexos com idade igual ou superior a 18 anos; presença de fascite plantar sintomática; participantes com capacidade de compreender e executar as atividades solicitadas; estudos que abordassem o uso de qualquer protocolo de exercícios de alongamento de estruturas adjacentes à fáscia plantar (fáscia plantar e gastrocnémio); estudos que comparassem esses exercícios de forma direta com outras intervenções ou não intervenção; estudos que avaliassem o impacto destas medidas na melhoria da dor, através de qualquer instrumento de avaliação com esse propósito; estudos controlados aleatorizados (ECA).
Foram excluídos: estudos em que os participantes apresentassem comorbilidades do sistema musculoesquelético que condicionassem sintomas semelhantes aos de fascite plantar e/ou a capacidade de desempenhar as atividades pedidas; estudos que aplicassem alongamentos como co-intervenção; estudos que não avaliassem como intervenção exercícios de alongamento das estruturas envolvidas na fascite plantar; intervenções em que existisse dúvida se esse propósito seria alcançado; estudos que não avaliassem de alguma forma o outcome dor; artigos que apresentassem outro tipo de desenho de estudo.
A pesquisa foi limitada a artigos originais publicados online, em inglês ou português, até 18 de janeiro de 2022, sendo considerados apenas os artigos publicados até 10 anos antes dessa data.
Processo de seleção
Os artigos duplicados foram removidos antes da aplicação dos critérios de elegibilidade. Os artigos foram avaliados por dois revisores quanto ao cumprimento dos critérios de inclusão e exclusão. Foram avaliados de forma sequencial quanto ao título, resumo e artigo, pelos autores de forma independente. As divergências foram resolvidas pela discussão da interpretação dos critérios de elegibilidade até ser obtido consenso. Caso tal não fosse conseguido, um terceiro revisor seria consultado.
Avaliação do risco de viés, níveis de evidência e força de recomendação
A avaliação do risco de viés realizada por dois revisores com recurso à Cochrane Risk of Bias Tool version 2.0 (RoB2) para os seus cinco domínios: processo de randomização, desvios da intervenção pretendida, dados de outcomes em falta, medidas de outcome e seleção dos resultados reportados. Para avaliação do nível de evidência e força de recomendação foi utilizada a Strength of Recommendation Taxonomy (SORT).
RESULTADOS
A pesquisa de literatura resultou num total de 87 estudos controlados aleatorizados. Após a aplicação dos critérios de elegibilidade e da remoção de artigos duplicados, 3 estudos foram incluídos nesta revisão conforme apresentado no fluxograma seguinte (Figura 1).
A Tabela 1 sumariza a caracterização das amostras dos estudos incluídos nesta revisão. Não se observou a repetição de comparadores entre os estudos analisados. Assim, os exercícios de alongamento foram comparados com proloterapia, analgesia farmacológica, palmilhas de silicone associadas à aplicação de calor e exercícios com foam roller, conforme apresentado na Tabela 2 que apresenta a descrição das metodologias utilizadas, outcomes avaliados, resultados e nível de evidência.
Autores (Ano) | Título | Desenho de Estudo | Caracterização da Amostra | |
---|---|---|---|---|
Tamanho da Amostra (M, F) | Média de Idades± DP | |||
Ersen et al. (2018) | A randomized-controlled trial of prolotherapy injections in the treatment of plantar fasciitis. | Estudo Controlado Aleatorizado | GI: 26 (5, 21) GC: 25 (6, 19) |
GI: 45.1± 6.7 GC: 46.3± 7.6 |
Gupta et al. (2020) | Comparing the Role of Different Treatment Modalities for Plantar Fasciitis: A Double Blind Randomized Controlled Trial. | Estudo Controlado Aleatorizado | Total: 156 (51, 105) G1: n.d. G2: n.d. G3: n.d. G4: n.d. |
Total: 43.4± 10.6 G1: n.d. G2: n.d. G3: n.d. G4: n.d. |
Ranbhor et al. (2021) | Immediate effect of foam roller on pain and ankle range of motion in patients with plantar fasciitis: A randomized controlled trial. | Estudo Controlado Aleatorizado | GI: 25 (18, 7) GC: 25 (18, 7) |
GI: 33.08± 10.83 GC: 38.28± 13.67 |
DP: desvio padrão; GI: Grupo de intervenção; GC: Grupo de controlo; M: género masculino; F: género feminino; n.d.: não descrito.
Autores (Ano) |
Intervenção | Outcomes | Resultados | NE | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Caracterização | Aplicação | Instrumentos de Medição | Momentos de Avaliação | |||
Ersen et al. (2018) | GI: proloterapia guiada por ecógrafo (3.6 mL dextrose a 15% e 0.4 mL de lidocaína) administrada em 5 pontos da fáscia plantar. GC: exercícios de alongamento da fáscia plantar e tendão de aquiles. |
GI: 3 injeções administradas a cada 3 semanas. GC: exercícios implementados conforme o descrito por DiGiovanni et al. (2006) com uma frequência de 3 vezes por semana ao longo de 3 meses. |
10-point Visual Analog Scale (VAS) Food and Ankle Outcome Score (FAOS) Foot Function Index (FFI) |
Baseline e aos 21, 42, 90 e 360 dias. | Diferenças estatisticamente significativas a favor do GI em VAS, FAOS (42, 90, 360 dias) e FFI (42, 90 dias). | 2 |
Gupta et al. (2020) | G1: tratamento AINEs. G2: aplicação de calor combinada com o uso de palmilhas de silicone. G3: alongamento ativo da fáscia plantar e placebo do gastrocnémio. G4: alongamento ativo do gastrocnémio e placebo da fáscia plantar. |
G1: 75mg Indomethacin uma vez por dia ao longo de um período máximo de 3 semanas. G2: aplicação de calor por 20 minutos por noite e uso de palmilhas durante as atividades da vida diária. G3: alongamento realizado 2 vezes por dias, sendo mantido por 10 segundos ao longo de 15 repetições. G4: alongamento realizado 2 vezes por dias, sendo mantido por 10 segundos ao longo de 15 repetições. |
Foot Function Index (FFI) The Foot and Ankle Disability Index (FADI) |
Semanalmente ao longo dos primeiros 4 meses, aos 6, 8 10 e 12 meses. | Diferenças estatisticamente significativas entre G1e G2, G1 e G3, G1 e G4 em FFI com piores resultados em G1; diferenças estatisticamente significativas entre G1 e G2, G1 e G3, G1 e G4, G3 e G4 em FADI, não favorecendo G1 e G4. | 2 |
Ranbhor et al. (2021) | GI: exercícios com foam roller (gastrocnémio e fáscia plantar) GC: auto-alongamento (gastrocnémio e fáscia plantar) |
GI: alongamentos mantidos por 45 segundos seguidos de 15 segundos de repouso, sendo realizadas 5 repetições dos mesmos. GC: alongamentos mantidos por 45 segundos seguidos de 15 segundos de repouso, sendo realizadas 5 repetições dos mesmos. |
Visual Analog Scale (VAS) Pain Pressure Threshold (PPT) |
Antes e imediatamente após a implementação da intervenção. | Sem diferença estatisticamente significativa na VAS e PPT da fáscia plantar. Diferenças estatisticamente significativa a favor do GI em PPT do gastrocnémio e solear. |
2 |
NE: Nível de Evidência; GI: Grupo de intervenção; GC: Grupo de controlo; AINEs: Anti-inflamatórios Não Esteroides.
A avaliação do risco de viés, apresentada na Figura 2, foi dificultada pela ausência de dados, não sendo revelado em nenhum dos artigos se existiu ocultação da alocação. Além disso, na maioria das intervenções analisadas não foi possível realizar ocultação aos investigadores ou participantes, contudo Gupta et al. (2020) tentaram realizar ocultação dos diferentes tipos de alongamentos realizando falsos exercícios com esse propósito.
DISCUSSÃO
No trabalho de Ersen et al. (2018) observam-se diferenças estatisticamente significativas a favor da proloterapia em comparação com os alongamentos da fáscia plantar e tendão de Aquiles nos outcomes VAS (Visual Analog Scale) e FAOS (Foot and Ankle Outcome Score) (aos 42, 90 e 360 dias) e FFI (Foot Function Index) (aos 42 e 90 dias). Os aparentes benefícios da proloterapia parecem estar de acordo com as revisões de Lai et al. (2021) e Sanderson e Bryant (2015). Já Gupta et al. (2020) destacaram os resultados sem diferença estatisticamente significativa entre a aplicação de calor com palmilhas de silicone, alongamento ativo da fáscia plantar e alongamento ativo do gastrocnémio no que diz respeito ao outcome FFI e nos outcomes das duas primeiras intervenções quanto ao outcome FADI (Foot and Ankle Disability Index). O grupo tratado com anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) mostrou, no entanto, resultados inferiores aos outros grupos. Li et al. (2019) já teriam apresentado o uso de AINEs como uma alternativa que, apesar de mais eficaz que placebo, apresenta menor eficácia que outras opções avaliadas nessa meta-análise. Gupta et al. (2020) destacam, ainda, o efeito superior dos alongamentos específicos da fáscia plantar quando comparado com os alongamentos específicos do gastrocnémio, estando em concordância com a revisão sistemática e meta-análise de Siriphorn and Eksakulkla (2020). Por outro lado, Ranbhor et al. (2021) identificaram diferenças estatisticamente significativas a favor da utilização de foam roller nos exercícios dirigidos à fáscia plantar e ao gastrocnémio nos outcomes PPT (Pain Pressure Threshold) do gastrocnémio e solear, mas sem diferença estatisticamente significativa na VAS ou PPT da fáscia plantar, instrumentos que, discutivelmente, são mais direcionados aos resultados avaliados nesta revisão. O uso de foam roller já tinha sido previamente identificada como eficaz na abordagem da fascite plantar no trabalho de Hameed e Srivastava (2020).
Implicações clínicas
Apesar da menor eficácia dos AINEs, continuam a ser uma opção terapêutica que, sendo prescrita ou não, é utilizada como uma alternativa acessível para controlo da dor (Nahin, 2018). Desta forma, os exercícios de alongamento devem ser considerados parte integrante do tratamento conservador da fascite plantar, uma vez que apresentam custo reduzido, facilidade de reprodução em contexto domiciliário e efeitos secundários negligenciáveis, tornando-os uma opção a ter em conta (Siriphorn & Eksakulkla, 2020). Assim, a acessibilidade e segurança dos alongamentos torna-os uma alternativa importante na prática clínica. Contudo, não pode ser descurada a evidência de que existem tratamentos mais eficazes.
Limitações
A dor é um elemento avaliado pelos vários instrumentos de medida implementados, tanto de forma direta (VAS, PPT) como sob a forma de componente/domínio de questionários específicos (FFI, FAOS, FADI). Assim sendo, em todos os estudos incluídos é apresentada informação que engloba pontos como a dor e a funcionalidade, ainda que não exista uniformização do instrumento usado entre os estudos, o que dificulta a interpretação dos resultados.
Os exercícios de alongamento da fáscia plantar e do gastrocnémio/tendão de Aquiles implementados nos estudos aqui incluídos foram os mesmos, diferindo na frequência, séries, repetições. Tal facto, constitui uma limitação na compreensão do real efeito desta abordagem na fascite plantar. Para além disso, a intervenção baseada em alongamentos empregue por Ranbhor et al. (2021) teve lugar em apenas um episódio de tratamento ao contrário dos restantes estudos em análise nesta revisão, que se estenderam durante um período mais alargado. Essa característica deve-se ao objetivo definido pelos autores de compreender os efeitos imediatos da utilização de foam roller enquanto abordagem de libertação miofascial (Ranbhor et al., 2021). Por outro lado, os períodos de follow-up especificados por Ersen et al. (2018) e por Gupta et al. (2020) foram de 360 dias e 12 meses, respetivamente. No entanto, é referido por outros estudos que cerca de 80% dos pacientes com fascite plantar apresentam melhoria dos sintomas em 12 meses com tratamento conservador (Luffy et al., 2018; Trojian & Tucker, 2019). Este fator pode, também, constituir uma limitação uma vez que poderá influenciar as conclusões expostas pelos autores, nomeadamente no estudo de Gupta et al. (2020) que, apesar de avaliações intermédias, apenas analisam os resultados da avaliação realizada ao final de 1 ano.
As características da literatura que cumpriu os critérios de elegibilidade aqui definidos também constituem uma limitação. Por um lado, o risco de viés associado a cada um dos estudos incluídos foi elevado, destacando-se negativamente os domínios processo de randomização (D1), desvios da intervenção pretendida (D2) e medidas de outcome (D4). Por outro lado, verificou-se uma grande diversidade de comparadores e a inexistência de comparação com placebo ou com não-intervenção. Deste modo, é aconselhada ponderação na interpretação dos resultados obtidos.
Seria pertinente que investigação futura conseguisse uniformizar os instrumentos para avaliar a dor e diferenciar as estruturas em foco (fáscia plantar, gastrocnémio/tendão de Aquiles ou a combinação das duas) bem como as características dos exercícios de alongamento (como frequência, repetições, duração, por exemplo). Para além disso, nos estudos com follow-up de maior duração, os resultados intermédios serão também relevantes para perceber os efeitos das intervenções em estudo.
CONCLUSÕES
Os exercícios de alongamento mostraram-se menos eficazes que a proloterapia e exercícios com recurso a foam roller e tão eficazes como o uso de palmilhas associado à aplicação de calor. Ainda assim, verificaram-se resultados favoráveis da realização de alongamentos da fáscia plantar quando comparado com o uso de AINEs. Deste modo, os alongamentos devem ser uma estratégia conservadora na abordagem de tratamento da fascite plantar (Força de Recomendação: B).