INTRODUÇÃO
Com o envelhecimento emergente da população mundial a qualidade de vida durante a fase final tornou-se uma questão significativa. Estudos recentes indicam que as pessoas preferem receber cuidados paliativos (CP) em vez de tratamentos supérfluos para o prolongamento da vida (Chung et al., 2017; Scala et al., 2020), portanto, há uma necessidade crescente de prestação de cuidados em fim de vida (CFV) de qualidade. Estes cuidados fazem parte dos CP e incluem a gestão do suporte físico, a prestação de apoio psicológico, social e espiritual e a garantia de que os desejos dos doentes e familiares são cumpridos. Embora focados nas últimas fases da vida, a margem temporal para o início da prestação de CFV podem variar (Sercu et al., 2018). Os doentes podem, assim, ter más experiências, incluindo uma morte traumática, se as suas necessidades de CFV não forem atendidas (Spatuzzi et al., 2017; Van Lancker, Van Hecke, Verhaeghe, Mattheeuws, & Beeckman, 2018). As famílias, também, podem sentir ansiedade quando os desejos dos seus entes queridos não são seguidos ou quando os veem sofrer (Ramvi & Ueland, 2019).
Os enfermeiros e os médicos desempenham um papel vital dentro da equipa que presta estes cuidados e espera-se que sejam profissionais altamente qualificados para a prestação de cuidados holísticos, integrais e globais aos doentes e à família (Spatuzzi et al., 2017). Os CFV praticados são considerados inerentemente difíceis para doentes e para profissionais, sendo também difícil desenvolver paixão pelo cuidado durante esses tempos problemáticos (Liu & Chiang, 2017). Os profissionais que prestam CFV podem ser vistos como vulneráveis ou como "os cuidadores do sofrimento" (Luxardo, Padros, & Tripodoro, 2014). A parte mais difícil dessas experiências não é apenas o trabalho físico, mas também o trabalho emocional e espiritual que inclui a ansiedade, a impotência, a incerteza, a angústia, o luto e a frustração (Browall, Henoch, Melin-Johansson, Strang, & Danielson, 2014; Luxardo et al., 2014; Wilson, 2014). Por outro lado, as questões culturais também podem influenciar a prestação de CFV ao não incentivar os profissionais a discutir questões associadas à morte; em vez disso, espera-se que estes deem esperança irrealista aos doentes em fim de vida (Dong et al., 2016).
Face ao exposto, a identificação dos fatores que podem influenciar a preparação e a capacidade de prestação de CFV é muito importante e pertinente, sendo que o papel do conhecimento, do treino e da formação (Hussin, Wong, Chong, & Subramanian, 2018), das atitudes e das crenças positivas (Andersson, Salickiene, & Rosengren, 2016; Oppert, O'Keeffe, & Duong, 2018) têm vindo a ser exploradas, embora de forma muito tímida, e estão associadas à prestação de CFV eficazes e de alta qualidade. Outros fatores, tais como: a experiência em CP potenciam as habilidades e o treino (Oppert et al., 2018); e as competências emocionais e comunicacionais para lidar com o sofrimento psicológico e emocional dos doentes e da família (Hussin et al., 2018) são necessárias para cuidados eficazes no final da vida.
O apuramento de outras relações, como o conhecimento em CP, a autoeficácia, a espiritualidade, a inteligência emocional e o desempenho dos CFV (Rhee, 2015) é praticamente inexistente ou os dados atuais são muito limitados. Neste contexto, esta investigação mostra-se pertinente uma vez que tentamos perceber o efeito impactante da espiritualidade, da inteligência emocional, do conhecimento e da autoeficácia sobre a preparação e capacidade de prestação de CFV pelos profissionais de saúde. A perceção deste modelo pode ser essencial para a definição dos fatores inibidores ou potenciadores da preparação e capacidade dos profissionais de saúde, na prestação de cuidados nas últimas horas ou dias de vida. Assim, através da aplicação de um questionário a médicos e a enfermeiros de um centro hospitalar da região norte de Portugal, conseguimos perceber quais as relações entre estes constructos.
MÉTODO
Este estudo adotou um desenho metodológico quantitativo e descritivo de carácter transversal realizado num hospital do norte de Portugal em 2022.
Amostra
A população-alvo deste estudo foram os médicos e enfermeiros a exercerem funções numa unidade de saúde pública em Portugal (amostragem por conveniência), tendo como critério obrigatório de inclusão contacto com doentes em fim de vida.
Instrumentos
Elaboramos um questionário autoadministrado aplicado entre maio e julho de 2022, em que os participantes assinalam as respostas a perguntas de escolha múltipla. Procedeu-se à tradução e validação das escalas de medida, tendo sido realizado um pré-teste no sentido de verificar a sua adaptabilidade à população a estudar. Foram distribuídos 710 questionários. A taxa de resposta foi de 55% (391 questionários preenchidos), sendo 380 questionários válidos.
Todas as variáveis foram mensuradas em escalas Likert de cinco pontos a partir da posição: 1-Discordo totalmente; 2-Discordo parcialmente; 3- Não concordo nem discordo; 4-Concordo Parcialmente e 5-Concordo Totalmente, exceto para a escala de espiritualidade cujos itens foram avaliados em escala numérica de 0 a 10. Valores mais elevados na escala Likert correspondem a índices mais elevados da variável. A espiritualidade foi mensurada pela escala de Hodge (2003) e compreende seis itens. O conceito de inteligência emocional foi avaliado com base na Escala de Inteligência Emocional de Wong e Law (2002) validada para Portugal por Rodrigues, Rebelo e Coelho (2011) e é composta por 16 itens. A autoeficácia (15 itens) e o conhecimento em CP (23 itens) foram medidos através da escala de Bonn Palliative Care Knowledge Test (BPW) adaptada e validada para a população portuguesa (Minosso, Martins, & Oliveira, 2017).
Para a aferição da preparação e capacidade para a prestação de CFV utilizou-se a Escala de Perceção da Preparação e Capacidade para Cuidar de doentes terminais (PPAC R-I) (Todaro-Franceschi, 2013) com seis itens.
Foi realizada uma análise fatorial confirmatória para o modelo de medida. A avaliação da qualidade do modelo de cada constructo foi feita através da análise da validade convergente e discriminante.
Procedimentos
Na realização do estudo foram respeitados os procedimentos ético-legais que constam dos pedidos de autorização formais para a recolha de dados, dirigidos ao presidente do conselho de administração do centro hospitalar e à respetiva comissão de ética da instituição. Foram também adotados procedimentos para a obtenção de consentimento livre e esclarecido pelos participantes do estudo. Cada questionário estava acompanhado de uma nota informativa, onde foram mencionados o título e o âmbito do estudo, os objetivos e os contactos do investigador principal. Nessa nota informativa, foi garantida a confidencialidade do tratamento dos dados e o anonimato.
RESULTADOS
Caracterização da amostra
A amostra é constituída por um total de 380 profissionais de saúde que responderam ao questionário de forma assertiva e completa (Tabela 1). Apenas 24.21% possuem experiência profissional na área dos CP e 21.58% formação. A média de idade é de 37.38 anos (± 9,93 anos).
Variável | Categoria | N | % |
---|---|---|---|
Género | Feminino | 312 | 82.11 |
Masculino | 68 | 17.89 | |
Idade | 22–29 | 82 | 21.58 |
30–44 | 205 | 53.95 | |
45–59 | 83 | 21.84 | |
≥ 60 | 10 | 2.63 | |
Média | 37.98 | ||
Mín= 22; Max= 65; M= 37.98; DP= 9.93 | |||
Estado civil | Solteiro(a) | 151 | 39.74 |
Casado(a)/União de facto | 214 | 56.32 | |
Divorciado(a)/sep. de facto | 14 | 3,68 | |
Viúvo(a) | 1 | 0.26 | |
Categoria profissional | Enfermeiro | 302 | 79.47 |
Médico | 78 | 20.53 | |
Grau académico | Licenciatura | 204 | 53.68 |
Pós graduação ou Mestrado | 174 | 45.79 | |
Doutoramento | 2 | 0.53 | |
Experiência profissional | 0–5 anos | 92 | 24.21 |
6–15 anos | 152 | 40.00 | |
16–25 anos | 72 | 18.95 | |
≥ 26 anos | 64 | 16.84 | |
Mín= 0; Max= 44; M= 14.11; DP= 10.17 | |||
Experiência em CP | Sim | 92 | 24.21 |
Não | 288 | 75.79 | |
Formação em CP | Sim | 82 | 21.58 |
Não | 298 | 78.42 |
Mín: mínimo; Max: máximo; M: média; DP: desvio padrão.
Escalas: análise descritiva das variáveis
Os valores médios (DP) de inteligência emocional, autoeficácia, espiritualidade, conhecimento em CP e preparação e capacidade para a prestar cuidados EOL estão representados na Tabela 2. Os profissionais de saúde revelam níveis moderados a altos de inteligência emocional (3.87± 0.82) e de autoeficácia (3.90± 0.82). O valor médio da espiritualidade foi de 5.06 ligeiramente acima do ponto médio da escala (5.0). Em relação ao conhecimento em CP, os entrevistados revelaram um nível mediano de conhecimento (3.29± 1.10). Globalmente, a escala de perceção de preparação e capacidade para a prestação de CFV apresentou um valor de 3.25± 0.95, pelo que os profissionais estão moderadamente preparados e qualificados.
Modelo conceptual de relação entre as variáveis
Na Figura 1 está representado o modelo estrutural. A relação direta mais forte é para a "Autoeficácia → Capacidade prestação CFV" (β= 0,553, p< 0,001). Quanto aos efeitos totais, o efeito mais forte é o da autoeficácia, sendo a variável conceptualmente mais próxima da capacidade de prestação de CFV, a espiritualidade tem uma influência ligeira (β= 0,283, p< 0,001) sobre a variável dependente, contudo é mais relevante do que o conhecimento em CP (β= 0,171, p< 0,001). A inteligência emocional tem pouca influência na predição do modelo.
Concluindo, no caso da inteligência emocional apenas são considerados os efeitos indiretos na explicação do modelo, assumindo a autoeficácia um papel mediador entre a inteligência emocional e a capacidade de prestação de CFV. No caso do conhecimento em CP só existe o efeito direto sobre a capacidade de prestação de CFV. No que diz respeito à espiritualidade, a mediação é parcial, ou seja, há efeitos diretos e indiretos sobre a capacidade de prestação de CFV.
DISCUSSÃO
Os resultados obtidos indicam um valor global médio moderado a alto de inteligência emocional (3.88± 0.83) para os profissionais de saúde alvo do estudo, resultados semelhantes foram obtidos em estudos recentes: 3.17± 0.56 (Ishii & Horikawa, 2019); 4.67± 0.78 (Al-Ruzzieh & Ayaad, 2021) e 3.77± 0.47 (Wang et al., 2022); 3.33± 0.50 (Park & Oh, 2019). Para a autoeficácia, o valor médio obtido foi alto (3.90± 0.82) o que está em consonância com os valores existentes na literatura atual: 3.71± 0.46 (Choi & Yu, 2022), 3.38 (Becker-Haimes, Wislocki, DiDonato, & Jensen-Doss, 2022; Elkhadragy, Christ, Bashawri, & AlSaran, 2021) e 3.60± 0.60 (Van der Voorn, Camfferman, Seidell, & Halberstadt, 2022). No que diz respeito à espiritualidade a média global da escala indicou um valor mediano de 5.06± 2.30. Este resultado não retrata os dados existentes na literatura que indicam valores substancialmente mais elevados, nomeadamente: 7.05± 2.08 (Caton, 2021), 7.18± 2.40 (Fradelos, Alexandropoulou, Kontopoulou, Papathanasiou, & Tzavella, 2022); 7.71± 1.85 (Atarhim, Lee, & Copnell, 2019). A espiritualidade é algo a considerar para lidar com as emoções do doente e da família. Para se comunicar de forma eficaz com os doentes, os médicos e os enfermeiros, precisam de compreender como a espiritualidade e a cultura de uma pessoa afeta as suas perceções de saúde e de doença, particularmente os seus desejos em relação aos CFV. Este resultado reforça a importância de incluir nos programas formativos dos médicos e dos enfermeiros temáticas sobre a espiritualidade.
O nível de conhecimento em CP obteve um valor médio global de 3.29± 1.10. Comparativamente com outros estudos 2.34± 0.57 (Etafa et al., 2020); 2.23± 0.23 (Menekli, Doğan, Erce, & Toygar, 2021); 2.54± 0.67 (Tsao et al., 2019), o valor obtido é francamente superior. No global a escala da perceção da preparação e capacidade de prestação de CFV revelou um valor médio de 3.25± 0.95, o que indica que os profissionais de saúde que participaram no estudo estão moderadamente preparados e capacitados para a prestação de CFV. Estes dados são atinentes com os estudos existentes relativamente a este constructo: 3.20 (Gelfman, Morrison, Moreno, & Chai, 2021); 3.08± 0.55 (Chan, Chun, Man, & Leung, 2018) e 3.39 (Rodenbach et al., 2020). A preparação para a prestação de CFV por parte dos profissionais de saúde passa pela compreensão das suas crenças pessoais sobre a morte e o morrer; ser capaz de prestar assistência ao doente e à família; combinar os conhecimentos teóricos, a experiência pessoal e profissional e os recursos disponíveis; equilibrar o diálogo entre o papel profissional e pessoal; e encontrar estratégias que deem sentido à experiência de morrer, especificamente através do encerramento (Hall, 2020). Oferecer CP e CFV é uma tarefa complexa e desafiadora para os profissionais mais jovens e é um campo fortemente influenciado por fatores culturais, religiosos, espirituais e sociais (Oji, Onyeka, Soyannwo, Paal, & Elsner, 2022).
Em relação ao modelo concetual a espiritualidade teve uma influência positiva e direta sobre a autoeficácia. Este resultado vem corroborar as investigações recentes sobre o tema (Jun & Lee, 2016; Kasapoğlu, 2022; Rakhshanderou, Safari-Moradabadi, & Ghaffari, 2021) que enfatizam o papel da espiritualidade e da saúde espiritual sobre a autoeficácia e outras percepções psicológicas. Estudos recentes também indicam que a espiritualidade pode aliviar a ansiedade (González-Sanguino et al., 2020; Kasapoğlu, 2020). Fator essencial para quem cuida de doentes em fim de vida e que é constantemente confrontado com a morte, os seus dilemas e o significado da vida. A autoeficácia está assim associada à espiritualidade, sendo que estes dois atributos são, portanto, considerados como dois fortes motivadores do desenvolvimento humano (Adegbola, 2011).
A espiritualidade também teve uma influência positiva e direta na perceção da preparação e capacidade para a prestação. Apenas foi encontrado um estudo de Espinoza-Venegas, Luengo-Machuca e Sanhueza-Alvarado (2016) que relaciona estas variáveis, tendo concluído que a perceção da crença religiosa e/ou espiritualidade não influência a perceção da preparação e capacidade para a prestação de CFV. Face a estes resultados, mais investigações são necessárias para inferir (com maior robustez), que quanto maior for a espiritualidade maior será a capacidade de prestação de CFV.
A inteligência emocional teve uma influência positiva e direta sobre a autoeficácia. Os profissionais que se consideram mais aptos para regular as suas emoções e reconhecer as dos outros, também se consideram mais capazes de trabalhar em CP. Este resultado é bastante relevante uma vez que escasseiam estudos que enfatizam esta relação. No entanto, este resultado corrobora os estudos de Chan (2004) e de Sommaruga, Casu, Giaquinto e Gremigni (2017).
A variável que maior impacto teve sobre a perceção da preparação e capacidade de prestação de CFV foi a autoeficácia. Portanto, os resultados da investigação confirmam que quanto maior for a autoeficácia mais elevada será a preparação e capacidade para a prestação de CFV. Apesar de não se ter identificado nenhum estudo que tivesse averiguado diretamente esta relação, consideramos que este resultado é importante e traduz um aspeto original relativamente a outras investigações.
Limitações do estudo e sugestões para futuras investigações.
Uma limitação desta investigação é o seu desenho transversal, que não permite examinar as relações de causalidade e os efeitos de feedback entre as variáveis em estudo. Outra limitação foi a amostra feita a partir das perceções dos profissionais de uma única organização, o que nos impede de generalizar os resultados.
Estudos futuros com uma abordagem qualitativa poderiam complementar a abordagem quantitativa utilizada, incorporando numa fase inicial entrevistas, com o intuito de efetuar um levantamento das variáveis que poderiam influenciar a capacidade de prestação dos CFV, uma vez que o modelo aqui apresentado apenas indica uma maior expressividade para a relação da autoeficácia sobre a perceção da preparação e capacidade para a prestação de CFV. Como tal, existem outras variáveis que condicionam a variável dependente, que possivelmente poderiam explicar melhor o modelo apresentado.
CONCLUSÕES
Considerando os efeitos totais das variáveis independentes estudadas, verificou-se que o efeito mais forte e positivo foi o da autoeficácia, sendo a variável conceptualmente mais próxima da capacidade de prestação de CFV, o efeito da espiritualidade foi mais relevante do que o do conhecimento em CP, já o efeito da inteligência emocional foi globalmente fraco. As perceções medidas de espiritualidade, inteligência emocional, conhecimento em CP, autoeficácia e preparação e capacidade para a prestação de CFV revelaram um valor médio global moderado, podendo, por isso serem alvo de melhorias, através de planos formativos internos, debates institucionais sobre o tema e adoção de uma política de partilha de informação.
Um dos contributos desta investigação reside na aferição do nível de conhecimento em CP por parte dos médicos e dos enfermeiros, uma vez que a maior parte dos estudos mede esta variável apenas nos enfermeiros ou em estudantes da área da saúde. Ao demonstrarmos empiricamente o modelo proposto, foi realçada a importância das variáveis em análise na explicação da perceção da preparação e capacidade para a prestação de CFV, podendo ser um contributo para a literatura sobre CP e CFV, e ajudar a definir estratégias de melhoria da literacia em CP e de planos formativos e de treino dos profissionais de saúde.