Existe uma tendência natural para nos preocuparmos mais com os problemas que nos estão próximos, no âmbito espacial ou temporal, do que com problemas de ordem global ou que têm repercussões apenas a longo prazo. Compreende-se que é geralmente mais prioritário encontrar um colega para fazer urgência num determinado dia da semana do que conseguir assegurar uma equipa médica estável, ou de contribuir para melhorar os cuidados de saúde nacionais. Mas isso não nos deve impedir de ter sempre em mente a “visão alargada” da nossa atividade profissional - aquilo que os anglo-saxónicos chamam “the bigger picture”. Esta necessita de incluir realidades fora do nosso serviço, fora do nosso hospital e mesmo fora do nosso país. O mundo está cada vez mais globalizado e a Obstetrícia e Ginecologia não foge a este fenómeno. Infelizmente, muitas vezes estamos tão preocupados com assuntos do dia a dia, que não conseguimos prestar a devida atenção ao planeamento a longo prazo e a esta visão mais global dos problemas. Mas perdemos muitas oportunidades com isto e, na minha opinião, é essencial mudarmos de atitude.
O conhecimento e a forma de exercer Medicina evoluem com o tempo e podemos aprender muito com a experiência de outros. Podemos também contribuir com a nossa experiência para a melhoria dos cuidados de saúde noutros locais. São estas as vantagens das interações nacionais e internacionais, que frequentemente se estabelecem em reuniões científicas. Mas para que ocorra uma verdadeira interação é necessário haver uma comunicação bilateral eficaz, e para isso não basta frequentar um congresso nacional e passar grande parte do tempo com os colegas do nosso serviço ou frequentar um congresso internacional e estar quase sempre com os nossos conterrâneos. É preciso sair da nossa zona de conforto e estar aberto ao diálogo com outras pessoas e pretender conhecer novas realidades. Portugal poderia ter um papel muito mais importante em organizações internacionais da nossa especialidade, mas tem tido historicamente dificuldades em colocar pessoas nestas estruturas. Perdem-se oportunidades de aprender com a experiência dos outros e é necessário que as gerações mais jovens modifiquem esta realidade. Apenas com um número elevado de médicos com competências de comunicação e contactos internacionais se consegue que alguns deles tenham a oportunidade de ter um papel importante nestas organizações.
Outro aspeto que necessitamos de trabalhar é o nosso sentido coletivo. Costumo dizer que, quando queremos comprovar rapidamente que um serviço hospitalar está desorganizado, basta-nos encontrar o sentido coletivo concentrado nas equipas de urgência ou nos setores individuais do serviço. Estes pequenos mundos são fáceis de se autogerir pelos profissionais que aí trabalham, mas não existem oportunidades nem motivação para um sentido coletivo mais alargado. É crucial para o desenvolvimento da nossa especialidade que o sentido coletivo ultrapasse os setores individuais do serviço, os próprios serviços e as instituições, e que vá mesmo para além das fronteiras do país. Os pequenos antagonismos que ainda existem dentro de alguns serviços e as pequenas rivalidades que existem entre algumas instituições não fazem qualquer sentido no século 21, e são sinal de visões muito limitadas do mundo. Não existe qualidade dos cuidados de saúde, nem bons indicadores de saúde nacionais sem que o conhecimento se estenda a todos os hospitais do país. E deve ser obrigação de todos nós dar o nosso contributo para que isso aconteça, para bem do país e para bem das mulheres que aqui vivem e necessitam dos nossos cuidados. É claro que nem todos os hospitais possuem profissionais com tempo e vocação suficientes para estar a par de todas as novidades científicas, nem para interpretar a forma como estas devem afetar os nossos cuidados de saúde. Devem ser sobretudo os hospitais centrais e universitários a assumir esta como uma das suas principais responsabilidades, juntamente com a disseminação alargada desta informação. Mas é sobretudo o respeito mútuo e o espírito coletivo dos profissionais que assegura o ambiente construtivo necessário para que o país evolua.
Dentro deste âmbito da “visão alargada” da especialidade e do espírito coletivo nacional, gostava de vos falar de três boas notícias que se concretizaram recentemente:
A primeira é a criação da página web do Consórcio Português de Dados Obstétricos (www.cpdo.pt). Trata-se de uma iniciativa de 13 hospitais nacionais que utilizam o programa de registos clínicos eletrónicos em Obstetrícia “ObsCare” e que permite a divulgação pública mensal automática dos principais indicadores obstétricos, relativos às atividades conjuntas dos seus membros. O consórcio representa cerca de um terço dos partos que ocorrem em Portugal e conta com o apoio da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal e da Direção Geral de Saúde, os quais têm acesso a um lote mais alargado de indicadores. Pretende-se que a iniciativa venha a possibilitar também a investigação multicêntrica nacional.
A segunda boa notícia diz respeito ao acordo estabelecido entre a Sociedade Portuguesa de Contraceção e a Direção Geral de Saúde para a publicação conjunta de Orientações Clínicas nacionais. Não somos um país grande, nem somos tão diferentes que não consigamos acordar Orientações Clínicas únicas, apoiadas pelas Sociedades Científicas, pelo Colégio da Especialidade e pela Direção Geral de Saúde, de forma a serem vistas como verdadeiramente nacionais. A Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia tem sido uma grande apoiante desta visão, sabendo que a sua concretização depende sobretudo das Sociedades Científicas afiliadas e das outras instituições envolvidas.
A terceira boa notícia é a publicação da primeira orientação clínica europeia na área da Perinatologia, mais ainda sendo a primeira autora portuguesa e estando a trabalhar em Portugal (Nunes I et al. European Guidelines in Perinatal Medicine - Oxytocin for labor induction and augmentation. J Matern Fetal Medicine 2021 - publicado online em 1 de setembro de 2021 - https://doi.org/10.1080/14767058.2021.1945577). Os meus sinceros parabéns à equipa que coordenou este trabalho, a qual envolveu também uma autora francesa e outra finlandesa. São várias as sociedades científicas europeias que têm publicado orientações clínicas para todo o continente. Nos últimos anos, causa-me cada vez mais estranheza o facto de basearmos muitas das nossas orientações clínicas em recomendações americanas, inglesas ou canadianas, como se a nossa realidade fosse igual à desses países, ou como se estivéssemos cientificamente dependentes deles. Questões semelhantes têm-se colocado noutros países da Europa continental. Não se trata de desvalorizar ou de questionar o mérito e a qualidade destes trabalhos, ou das instituições que os promovem, mas seguramente que na totalidade dos países europeus existe qualidade e experiência suficientes para desenvolver orientações clínicas próprias. A Europa necessita de se assumir com uma alternativa aos países anglo-saxónicos, à sua influência cultural e científica. Apesar das diferenças culturais e sociais existentes dentro da Europa, existe um núcleo de países com valores humanos, científicos e técnicos muito semelhantes. Estes valores são vistos como uma referência em grande parte do mundo e necessitam de ser disseminados como forma de progresso da humanidade. Naturalmente que as orientações clínicas europeias necessitam de ser da mais elevada qualidade e devem existir em quantidade suficiente para ter impacto internacional. Esta primeira orientação clínica na área perinatal define a metodologia a utilizar e significa que o processo já se encontra em marcha.
Ao contrário do que possamos pensar quando somos mais jovens, o progresso não ocorre de um dia para o outro, mas sim através de uma série de pequenos passos tomados na direção certa. Com perseverança, estes passos podem levar a mudanças estruturais e comportamentais importantes. Mas não basta sermos apenas espectadores ou avaliadores críticos destas iniciativas. Cabe a cada um de nós contribuir para este progresso, demonstrando vontade de melhoria, capacidade de iniciativa, capacidade de concretização e dando apoio a iniciativas que entendemos serem benéficas para o coletivo. Só assim se cria o espírito construtivo necessário para que as mudanças tenham efeito dentro das nossas instituições, no nosso país e mesmo fora das nossas fronteiras. É claro que nem sempre as nossas ideias têm o efeito que pretendemos e por vezes podem ser prematuras para a realidade que se atravessa, pelo que é necessária capacidade de encaixe, humildade e resiliência para lidar com algumas frustrações. Mas o coletivo tem muita mais força do que imaginamos, podendo mudar mentalidades e mesmo pressionar iniciativas de pessoas que ocupam lugares de decisão. Penso que no futuro teremos de usar muito mais vezes esta força coletiva, para o bem da nossa da nossa especialidade e para o bem do nosso país.