Introdução
A menstruação é um processo natural, parte do ciclo reprodutivo, experienciada todos os meses por 1,8 biliões de pessoas1, no entanto, continua a ser um assunto estigmatizado, associado a diversos mitos e tabus, resultantes da falta de informação e educação no tema2.
De acordo com o World Bank, estima-se que, globalmente, mais de 500 milhões de pessoas não têm acesso a condições adequadas para a gestão da higiene menstrual, sendo que isto terá impacto em múltiplas dimensões da vida da pessoa que menstrua, nomeadamente na saúde, no seu potencial de acesso à educação, emprego e qualidade de vida no geral3. Em 2022, a Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou para a necessidade de se reconhecer a menstruação como uma questão de saúde pública e de direitos humanos, e não como uma simples questão de higiene. A abordagem destes problemas deve ser altamente específica e contextualizada tendo em conta o país e/ou situação em questão. Os produtos de higiene menstrual encontram-se inerentes a estas abordagens, sendo que a sua escolha depende de múltiplos fatores específicos da pessoa que vivencia a menstruação, além do próprio contexto sociocultural4. Assim, não faz parte da função das organizações promover um produto em detrimento de outro, mas sim garantir a expansão do acesso a uma maior variedade de produtos seguros e informação adequada acerca dos mesmos, promovendo liberdade e autonomia na escolha com base nas preferências e necessidades individuais5.
Nos últimos anos, tem-se assistido a uma maior consciencialização no que diz respeito à composição e eventuais riscos para a saúde de produtos de higiene, bem como relativamente ao impacto ambiental destes, sendo que estas preocupações têm assumido um peso cada vez maior na escolha do método. Apesar dos produtos ditos convencionais, nomeadamente pensos higiénicos e tampões, continuarem a ser os mais utilizados6, com esta mudança de pensamento, abriu-se uma porta para o crescimento do mercado de produtos de higiene menstrual reutilizáveis no final do século XX7, onde se inclui o copo menstrual. O copo menstrual é um dispositivo reutilizável, com formato de sino, que é colocado na vagina de modo a capturar o fluxo menstrual8. Em média, os copos menstruais têm uma capacidade de acomodação entre 10-38 ml de sangue menstrual, devendo ser esvaziados a cada 4-12h, de acordo com o tipo de fluxo e características do próprio dispositivo9, e higienizados com água e sabão, consoante as indicações de cada fornecedor.
As decisões relacionadas com a saúde menstrual devem ser devidamente informadas sendo para isso crucial a educação e disponibilização de informação sobre os diferentes produtos com base na evidência. Assim, importa reconhecer todas as vantagens e desvantagens deste produto quando se equaciona a sua escolha como produto de higiene menstrual preferencial, tanto a nível individual bem como a nível organizacional ou político, em programas de gestão de higiene e saúde menstrual.
Deste modo, realizou-se uma revisão da literatura com o objetivo de identificar as vantagens e desvantagens associadas ao uso de copo menstrual, examinando a evidência existente, eventuais diferenças associadas a variações do contexto socioeconómico, cultural ou situacional, bem como explorar a existência de usos alternativos do copo menstrual, no sentido de identificar áreas emergentes e lacunas do conhecimento que poderão inspirar trabalhos futuros.
Metodologia
Considerando os objetivos, foi elaborada uma Scoping Review, com base nos critérios orientadores disponibilizados pelo Joanna Briggs Institute. A formulação da questão de investigação obedeceu à estrutura PCC (População, Conceito, Contexto) (Quadro I).
Para a pesquisa recorreu-se a plataformas de bases de dados, PubMed, Cochrane e Trypdatabase, e utilizou-se o descritor “Menstrual Cup’’. Além disso definiu-se uma janela temporal, incluindo apenas artigos publicados a partir de 2018, escritos em inglês ou português. A seleção dos artigos foi baseada na adequação do título e respetivo resumo considerando os objetivos e a questão de investigação, independentemente da qualidade metodológica do estudo. Assim, foram incluídos todos os estudos onde poderiam ser identificados ou interpretados benefícios e vantagens associadas ao copo menstrual, bem como, riscos e desvantagens, decorrentes de estudos experimentais, de opiniões baseadas na utilização do copo menstrual, descrição de casos clínicos ou estudos observacionais. Usos alternativosdo copo menstrual, além do uso convencional para a gestão da higiene menstrual, foram interpretadas como uma vantagem do dispositivo e, como tal, estudos referentes a estas utilizações foram incluídos. Foram excluídos estudos onde os resultados eram obtidos com base na perceção ou opinião de não utilizadores do copo menstrual.
Da pesquisa inicial realizada nas três bases de dados referidas, a 11 de Janeiro de 2024, obtiveram-se um total de 207 resultados, sendo que 21 artigos eram duplicados. Dos 186 artigos obtidos foram excluídos os artigos relacionados com estudos ainda não concluídos e artigos que, após a leitura do título e resumo, não atendiam aos objetivos da Scoping Review, tendo sido selecionados um total de 49 artigos elegíveis para leitura integral. Destes, após leitura, foram excluídos 13 artigos, 12 por não corresponderem ao objetivo e critérios de inclusão da revisão e 1 por não estar escrito em Português ou Inglês, tendo sido incluídos nesta revisão um total de 36 artigos. Foi elaborado um fluxograma, de acordo com as diretrizes PRISMA10, onde está ilustrado todo o processo de pesquisa, apresentado na Figura 1.
O propósito final deste processo foi obter um resumo lógico e descritivo dos resultados, de modo a mapear a evidência disponível. Assim sendo, os resultados foram, maioritariamente, apresentados sob a forma de tabelas e breves descrições ou resumos, com o objetivo de facilitar a compreensão do leitor sobre os mesmos e da sua relação com os objetivos e questão de investigação, permitindo o mapeamento da evidência de uma forma simplificada.
Resultados
Para esta revisão foram incluídos 36 estudos, realizados nos últimos 6 anos.
Ao longo da leitura e análise dos artigos selecionados, foram extraídas as características e informações mais relevantes, de acordo com os objetivos da Scoping Review, tendo sido categorizadas de modo a sumarizar os resultados de cada estudo incluído. Deste modo, foi elaborada uma tabela, apresentada no Quadro II, de acordo com: tipo de estudo; objetivo do estudo; população ou contexto de realização do estudo; conceito do estudo, referindo-se este termo às características do estudo que levaram à sua inclusão na revisão, tendo em conta os objetivos definidos; resultados do estudo, sendo apenas mencionados os resultados relacionados com os objetivos da revisão.
Todas vantagens e desvantagens extraídas dos vários estudos incluídos na revisão foram sumarizadas no Quadro III. As principais vantagens identificadas foram o facto de se tratar de um produto económico, ecológico, prático e seguro, associado a poucos efeitos adversos. A aplicabilidade deste dispositivo para outros fins, além do seu uso como produto de higiene menstrual, confere uma vantagem adicional, estando estas aplicações sumarizadas na Figura 2. Em contrapartida, o período de adaptação, desconforto e risco de ocorrência de fugas parecem ser as principais desvantagens identificadas nos artigos revistos. Quanto aos efeitos adversos reportados, estes eram na sua maioria ligeiros, sendo que os efeitos mais graves foram extraídos, maioritariamente, de casos clínicos e séries de casos, e incluíam: prurido e ardor vaginal, mau odor, urgência urinária, expulsão de dispositivo intrauterino (DIU), retenção intravaginal do copo menstrual, ureterohidronefrose e síndrome de choque tóxico.
Dos dez estudos incluídos associados a um contexto específico, sete deles foram em países com condições socioeconómicas desfavorecidas, um num país de alto rendimento e os restantes dois em contextos socioculturais específicos da Índia e Turquia, respetivamente.
Segue-se um destaque dos resultados obtidos associados a contextos socioeconómicos desfavorecidos (Quénia, Nepal e Gana) e que não foram objetivados em estudos cujas amostras abrangiam outras realidades socioeconómicas:
Uso de copo menstrual terá benefício na saúde do trato reprodutor (composição do microbioma vaginal) e na redução de infeções (diminuição da vaginose bacteriana e infeções por Herpes Simplex Virus 2 (HSV-2);
Custo-efetividade de programas de gestão de higiene menstrual com fornecimento de copos menstruais;
Benefício de programas de fornecimento de copo menstrual na redução do absentismo escolar;
Benefício do uso de copo menstrual na gestão a curto prazo (pré-cirúrgico) ou nos cuidados de reabilitação de fístulas vesicovaginais, de uma forma não invasiva.
Sumarizam-se ainda os resultados obtidos a partir dos estudos realizados em contexto cultural específico (Turquia e Índia) e que não foram encontrados nos outros contextos, sendo de destacar a existência de preconceções sobre o copo menstrual, tais como:
Discussão
Com base na análise dos artigos incluídos na revisão, foi possível perceber que as características mais apontadas como vantagens associadas ao uso de copo menstrual foram o facto de este ser uma alternativa mais económica e com um menor impacto ambiental, parecendo ser isto um dos principais motivadores para a experimentação deste produto, além de ser considerado confortável e prático em diferentes contextos e atividades, passível de ser utilizado durante várias horas seguidas sem esvaziar. Um outro aspeto positivo foi a associação a baixa taxa de efeitos adversos, conferindo, às utilizadoras, uma sensação de maior segurança e de menor impacto na saúde feminina, tendo sido reforçada pela demonstração da segurança do uso de copo menstrual por testes in vitro24. De realçar que, quando aplicado a contextos socioeconómicos específicos, existem algumas vantagens específicas, tal como foi apresentado nos resultados e, como tal, isso deve ter sido em consideração aquando a sua análise.
Em contrapartida, no que diz respeito às desvantagens do copo menstrual, os aspetos mais realçados foram a dificuldade na utilização, principalmente numa fase inicial, sendo que, de um modo geral, esta era ultrapassada após cerca de três ciclos de utilização12. Assim, apesar de estar associado a uma curva de aprendizagem, após esta fase inicial, parece haver uma boa adaptabilidade e aceitação ao uso do copo menstrual. Adicionalmente foi realçada a necessidade de condições de privacidade para a colocação e remoção do dispositivo, particularmente quando se realiza o seu esvaziamento, o que condiciona a sua utilização, com uma necessidade frequente de se associar um outro produto de higiene menstrual durante o ciclo menstrual. A ocorrência de extravasão de fluidos menstruais durante o uso e remoção do copo menstrual foi reportada em vários dos estudos (Quadro III), tendo sido também denotado a inexistência de um guia de orientação formal para auxiliar na escolha do copo menstrual adequado, com base nas características da mulher e dos seus ciclos menstruais22. Assim, no futuro, poderá ser útil determinar se a elaboração de estas orientações poderão ter impacto na redução da extravasão bem como na melhoria do conforto e facilidade de utilização.
No que toca a eventos adversos, foram identificados alguns ligeiros como sensação de prurido, ardor vaginal, mau odor, urgência urinária e expulsão de DIU, e outros mais graves, com necessidade de intervenção médica, nomeadamente, retenção do copo menstrual, ureterohidronefrose secundária a compressão extrínseca por copo menstrual e síndrome de choque tóxico por Staphylococus Aureus (Quadro III).
No que diz respeito a aplicações alternativas do copo menstrual, foram identificados vários estudos onde este foi utilizado como método de colheita de amostras de fluido menstrual com diferentes propósitos (Figura 2), não se tendo demonstrado inferior comparativamente a outros métodos de colheita em termos de eficácia, possuindo até algumas vantagens, tal como o facto de se tratar de um método simples e não invasivo42. Além disso, foi incluído um estudo que demonstrou a sua utilidade na melhoria da função e tónus dos músculos do pavimento pélvico, no entanto, apesar de se tratar de um estudo com uma amostra reduzida e duração curta20, apresentou resultados promissores que deverão ser explorados em estudos futuros com amostras mais significativas e protocolos robustos. Por fim, o copo menstrual foi também aplicado na gestão a curto prazo e nos cuidados de reabilitação de fístulas vesicovaginais39, com diminuição das perdas urinárias de uma forma não invasiva, sendo isto útil particularmente em contextos socioeconómicos mais desfavorecidos, onde a resposta ou disponibilidade cirúrgica não é tão eficaz.
A maioria dos trabalhos incluídos nesta revisão compreendiam estudos observacionais (Quadro II). De realçar que os eventos adversos de maior gravidade foram identificados através de casos clínicos publicados, sendo que, futuramente, será pertinente a realização de estudos mais robustos para perceber o real impacto e incidência destes eventos adversos em utilizadoras do copo menstrual, bem como determinação da existência ou não de uma relação de causalidade. Assim, com o mapeamento da evidência disponível realizado ao longo da elaboração desta revisão, foi possível perceber-se que a existência de estudos de qualidade com tamanhos amostrais significativos é limitada, sendo estes mais dirigidos para determinadas características, tanto populacionais como individuais. Observa-se uma tendência para abordar e estudar a aplicabilidade/utilidade do copo menstrual em contextos mais desfavorecidos, não havendo grande diversidade de estudos realizados em países de alto rendimento, sendo que apenas um dos estudos incluídos nesta revisão é específico para este contexto. Assim, torna-se difícil visualizar o real panorama e o impacto do uso de copo menstrual em países de alto rendimento, podendo ser este um foco de interesse para trabalhos futuros, considerando o aumento do interesse relativamente ao copo menstrual nesta população.
Adicionalmente, um dos critérios que foi considerado como fator de exclusão em vários dos estudos, era a necessidade das participantes terem ciclos menstruais regulares e ausência de patologia uterina, como por exemplo existência de fibromas ou endometriose. Tem em consideração a prevalência destas patologias, sendo que as hemorragias uterinas anómalas afetam até cerca de 35% das mulheres em idade reprodutiva45, a perceção da adaptabilidade, aceitação e impacto do uso de copo menstrual em pessoas com estas irregularidades torna-se bastante relevante, sendo pertinentes estudos nesta área específica. Alguns dos estudos incluídos nesta revisão mencionaram também a hipótese de o uso de copo menstrual condicionar uma menstruação retrógrada, estando este fenómeno na base de uma das teorias mais aceites acerca da fisiopatologia da endometriose46. Considerando que esta patologia afeta cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva46, importa perceber se esta associação possui efetivamente fundamento e evidência científica.
Pelos resultados obtidos, parece haver uma limitação na avaliação crítica do tipo de evidência disponível pelo facto de não existir um protocolo ou critérios orientadores transversais para a avaliação e comparação de diferentes produtos de higiene menstrual, sendo que os estudos nesta área se baseiam maioritariamente em métodos qualitativos, muito dependentes da opinião pessoal das utilizadoras e com influência de múltiplos fatores externos, sendo difícil determinar se as conclusões retiradas têm evidência forte o suficiente para fundamentarem futuras guidelines ou orientações47. A criação de protocolos orientadores para a elaboração de estudos na área da gestão da higiene menstrual poderá ter um impacto importante para a posterior interpretação e obtenção de conclusões objetivas, capazes de gerarem recomendações que sirvam de suporte para os profissionais de saúde consultarem e apoiarem o seu aconselhamento clínico com confiança.
Apesar de já existirem duas revisões sistemáticas sobre a aceitabilidade e segurança do copo menstrual9,7, a metodologia escolhida para a elaboração desta revisão permitiu mapear toda a literatura, independentemente do nível de evidência científica da mesma e, assim, agrupar uma maior variedade de estudos, possibilitando uma melhor análise das variações inerentes aos diferentes contextos, bem como uma perceção de algumas áreas/tópicos pertinentes e que ainda não foram amplamente investigados, passíveis de inspirar trabalhos futuros com metodologias mais criteriosas, tais como revisões sistemáticas.
Como limitações, importa realçar que a metodologia usada para a elaboração da mesma é insuficiente para o estabelecimento de guidelines de utilização, devendo ser aprofundados além de complementados por estudos de eficácia e satisfação de uso. Além disso, os critérios de exclusão, nomeadamente o idioma, e as bases de dados incluídas poderão ter condicionado os resultados obtidos.
Conclusão
Tal como todas as decisões em saúde, a escolha do produto de higiene menstrual deve ser feita com base numa decisão informada, sustentada pela melhor evidência disponível. Tendo em conta a crescente divulgação do copo menstrual e o aumento do interesse por este produto para a gestão da higiene menstrual, a elaboração desta Scoping Review tornou-se muito pertinente para se obter uma visão abrangente da evidência disponível, tendo dado resposta aos objetivos inicialmente definidos.
Em suma, o copo menstrual apresenta diversas vantagens e desvantagens que podem conferir ou não preferência pela sua utilização, em diferentes contextos e circunstâncias. Por um lado, é um produto económico, ecológico e aparentemente seguro, sendo que os efeitos adversos mais reportados eram na sua maioria ligeiros. Por outro lado, requer um período de adaptação associado a uma curva de aprendizagem, podendo ser desconfortável e com algum risco para a ocorrência de fugas, principalmente numa fase inicial da sua utilização. Por se tratar de um produto reutilizável, requer condições adequadas de água, saneamento e privacidade para uma correta higienização, mas que parecem ser facilmente reunidas, sendo que isto não foi um entrave para a sua aplicação em contextos mais desfavorecidos, por exemplo. Além disso, nesses contextos em específico, apresenta algumas vantagens e aplicações particulares que não se verificaram em contextos de países mais desenvolvidos, podendo a sua utilização em programas de gestão e higiene menstrual ser custo-efetiva.
Relativamente às implicações dos resultados para trabalhos de investigação futuros, quando analisados, concluímos que existem diversas vantagens e desvantagens aparentemente contraditórias, associando-se a algumas relações de causalidade não claramente estabelecidas. Assim constatou-se a existência de várias lacunas na evidência disponível em determinadas áreas/contextos e onde será pertinente incidir investigações futuras e investir para se obter estudos mais robustos.
Para concluir, o incentivo à abordagem destes assuntos em contexto de consulta, poderá ser benéfico na relação de confiança médico-doente, dando abertura ao doente para colocar as suas dúvidas e procurar aconselhamento junto do seu médico, fomentando decisões informadas, idealmente com base na melhor evidência disponível.