Introdução
A presença muçulmana no território actualmente português decorreu ao longo de quase seis séculos. Na sequência da conjuntura política vivida durante grande parte do século XX no país, as visões sobre esse passado continuam algo influenciadas por um discurso fortemente ideológico. Muitas vezes, a presença islâmica é encarada ainda como um parêntesis na vocação cristã, atlântica e europeia da nação. Afirmando-se dominante em muitos meios, inclusive nalgumas academias, um discurso marcado pelo determinismo belicista continua a fazer o seu caminho, descrevendo o avanço dos reinos cristãos para sul como uma conquista sucessiva de povoados, após a qual os sinais de islamização do território ficariam restritos aos ghettos dos derrotados ou desapareceriam mesmo totalmente, com excepção de alguns casos isolados em latitudes mais meridionais. Paradigmática da resiliência desse quadro teórico é a designação de reconquista, que se vai perpetuando, pese embora algum debate recente nos meios historiográficos peninsulares, mais escasso nos arqueológicos.
A progressiva afirmação da prática arqueológica como fonte de conhecimento histórico permite matizar o predomínio do político em muitas dessas análises históricas adstritas exclusivamente à documentação escrita. O estudo da cerâmica oferece possibilidades de uma análise complexa e rica que conduz à conclusão de que a influência cultural islâmica perdura, pelo menos nas materialidades quotidianas, muito para além das substituições de poder, e que o Mediterrâneo persistiu como um referente cultural estrutural até aos finais da Idade Média.
Em virtude das dificuldades em discernir, pelo menos em alguns âmbitos geográficos, as produções coincidentes com o domínio político muçulmano das que sinalizam momentos posteriores, foram necessários cuidados especiais na selecção das amostras em estudo. Nesse sentido, foram preferidas associações materiais que, pela segurança estratigráfica e/ou pela presença de artefactos como moedas, permitissem datações mais rigorosas e uma correspondência menos duvidosa com momentos deposicionais ocorridos após a conquista cristã de cada povoação considerada. Esta opção determinou a evidente disparidade regional dos casos apresentados, que se relaciona directamente com a massa empírica coerente com esses critérios, disponível para cada um dos âmbitos territoriais que compõem actualmente o território nacional.
A conquista islâmica e o reencontro com o Mediterrâneo
A caracterização do impacto da penetração muçulmana no território português tem vindo a fundamentar-se através de um exercício comparativo com as cronologias anteriores. Muito embora seja um tema ainda com escassa base empírica, começa a desenhar-se na actualidade, à semelhança do verificado noutras paragens peninsulares2, um panorama de acentuada atomização das comunidades humanas após a desagregação definitiva do modelo romano de exploração económica, em especial dos finais do século V em diante.
É um facto que algumas cidades e assentamentos portuários, em especial a sul do rio Tejo, resistiram ao colapso do Império em escalas diferenciadas que importa detalhar. Mas assinala-se, na generalidade do território português, entre os séculos VI e IX, um processo de “atrofiamento” tecnológico patente nas características físicas e formais das cerâmicas, que não será mais do que a evidência material da diminuição dos mercados potenciais, com a consequente quebra na especialização do trabalho e na diversidade e qualidade das produções. Tome-se, como exemplo, o caso de Santarém, onde recentemente foi identificado um contexto datado dos séculos VIII-IX, no qual são particularmente evidentes os elementos que definem genericamente as produções locais dessas cronologias: monotonia formal, condições de cozedura pouco controladas, acabamentos frustes e recurso frequente à modelação manual ou auxiliada pelo “torno lento”3. Ainda mais significativa da conjuntura, é a constatação de que as cerâmicas desta cidade, nada menos que uma antiga sede de conventus em período romano, parecem ser indistinguíveis das recolhidas em sítios marcadamente rurais como a Quinta da Granja, em Alcobaça4, ou Ribeira do Barranco 3, em Beja5.
A conquista muçulmana, a partir de 711, reintegrando a Península Ibérica nas dinâmicas e osmoses culturais mediterrânicas, irá alterar estruturalmente o ambiente produtivo, implantando progressivamente um novo modelo cujas características podem ser sintetizadas a partir de três vectores: difusão tecnológica, estandardização morfológica e diversidade formal. De facto, a crescente islamização do território, entendida aqui como a ocorrência de atestadas ligações aos centros nevrálgicos da presença muçulmana na Península, pode ser verificada a partir da disseminação de cerâmicas de fabrico tecnologicamente mais exigente, nomeadamente as que apresentam revestimento vidrado. Como exemplo, refira-se a identificação de produções de Pechina (Almeria)/Málaga/Córdova, que demonstram uma precoce assimilação dos novos padrões culturais, logo a partir do século IX, surgindo sem surpresa em cidades portuárias, como Silves, Mértola ou Lisboa6, mas também em pequenos povoados periféricos do interior, de que temos um exemplo no sítio do Porto Torrão, Ferreira do Alentejo7.
A aceleração deste processo, que testemunha indiscutivelmente uma organização da produção em moldes totalmente diversos, pode ser observada pela distribuição, em território português, das produções decoradas a verde e manganés a partir do Califado, ocorrendo num âmbito espacial bastante mais alargado do que o dos vidrados monocromáticos mencionados. Observa-se que as linhas de força do processo de islamização no tempo longo se desenham logo nestas cronologias, com uma prevalência de ocorrências junto à costa algarvia e seu hinterland ou no entorno das bacias do Tejo e Sado, chegando também a Coimbra e ao povoado da Senhora do Barrocal (Satão), já na área de contacto com os reinos cristãos8. Por fim, entre os finais do período taifa e o período almorávida, a osmose cultural atinge o seu auge, ilustrado pela produção de cerâmicas decoradas segundo a técnica da corda seca, como se verifica nas cidades de Santarém e Lisboa9. A difusão destas cerâmicas de consumo restrito é, no registo arqueológico, o elemento mais facilmente apreensível de um processo amplo, de mutação cultural, derivado da implantação de uma nova formação social.
Na cerâmica comum é mais difícil detalhar a diacronia do processo, mas é indiscutível que algumas formas que vão surgindo neste território constituem uma marca material da islamização da sociedade. O perfil “jarra”, com o seu característico colo recto e duas asas, assume-se como uma das suas mais emblemáticas produções, uma vez que se afasta definitivamente do serviço de mesa da Antiguidade Tardia e das derivações posteriores que vão ocorrendo nos âmbitos ruralizados do Norte da Península. A sua distribuição por todo o território português até à linha do Mondego10, ainda que com frequências variadas, será o exemplo mais eloquente da ampla estandardização formal, o segundo elemento que destacamos para ilustrar as profundas alterações verificadas nas cerâmicas durante o período islâmico.
O terceiro elemento que relevamos como diferenciador da cultura material islâmica é a grande diversidade formal, especialmente patente nas cidades do Sul, como Silves ou Mértola11, denunciando uma sociedade altamente urbanizada, um nível de especialização do trabalho e uma complexidade social não detectados no registo arqueológico desde a época romana. A par da presença de cerâmicas com revestimento, este é o elemento que mais contrasta com os conjuntos materiais típicos de paragens setentrionais, onde a presença islâmica foi mais curta e precária e a monotonia formal, herdada da Alta Idade Média, continuará amplamente dominante até ao século XIV12. Assim, nas vésperas dos sucessivos avanços cristãos, o território português a sul do Mondego encontrava-se amplamente islamizado, no que às fórmulas de produção e opções morfológicas e ornamentais diz respeito, a avaliar pelas características da cultura material aí presente, ainda que com assimetrias relevantes, que surgem mais evidentes quando se observa a evolução ulterior à conquista.
Sociedades de fronteira e hibridismo cultural: o vale do Mondego
No vale do Mondego, a presença islâmica terá sido menos consistente e determinante, quando comparada com paragens mais meridionais, desde logo porque foi menos duradoura. De facto, em torno de 878, a cidade de Coimbra foi integrada nos domínios cristãos e só voltará à esfera do poder califal com as campanhas de Almansor em 987, para ser definitivamente conquistada pelo reino leonês em 1064. No entanto, a importância estratégica desta cidade, derivada do seu posicionamento fronteiriço, terá dinamizado um processo relativamente precoce de islamização, muito embora sem intensidade suficiente para se sobrepor definitivamente às tradições autóctones, nomeadamente nas cerâmicas. O contexto do Beco das Condeixeiras, onde se identificou um candil datado dos séculos IX-X, associado a púcaros, alguns dos quais pintados a branco13, sublinha essa realidade. Posteriormente, a reintegração da cidade nos domínios islâmicos, nos finais do período califal, terá revitalizado os contactos com o mundo mediterrânico. Nas escavações da “Alta” da cidade surgem produções como cerâmica decorada com a técnica de corda seca e louça dourada, datáveis dos séculos X-XI14. Esta realidade realça um elemento importante para a análise do processo de islamização: a latitude não será o factor determinante para as diferenças observadas. Esta constatação encontra apoio na comparação das realidades conimbricenses com outra antiga civitas romana, Conímbriga, localizada a cerca de 20 km a sul, mas onde os indicadores meridionais estão praticamente ausentes15.
Nos contextos do século XII, imediatamente posteriores à definitiva conquista cristã, parece assistir-se a um esbatimento muito rápido e marcado da herança islâmica. Nas escavações do Museu Machado de Castro, a cerâmica pintada a branco passa a ser residual, enquanto se reforça percentualmente a presença de formas típicas dos ambientes ruralizados do Norte Peninsular, nomeadamente de uma das suas expressões mais características, os alguidares de fundo em disco16. Não obstante, a sobrevivência de características meridionais é detectável, por exemplo, no perfil mais comum da forma cântaro ou na manutenção, ainda que tímida, da pintura a branco em contextos de transição entre os séculos XII e XIII, como nos demonstra o conjunto escavado na Rua Corpo de Deus17.
Às portas do Sul: os vales do Tejo e do Sado
Observa-se uma situação completamente diferente no vale do Tejo. A conquista cristã das cidades de Lisboa e de Santarém só ocorreu cerca de um século mais tarde, em 1147, mas esta diferença cronológica não explica por si só a alteridade face a regiões mais setentrionais. Embora periféricas no contexto do Al-Andalus, aquelas cidades obedeciam a lógicas geográficas, económicas e políticas totalmente diversas das vivenciadas no vale do Mondego. Ali começam as extensas planícies cerealíferas, cuja produtividade é estimulada pelo grande rio do ocidente peninsular - como nos lembram sucessivamente os tratados islâmicos de geografia - 18, que se constitui ainda como veículo de contactos, que se percebem constantes, com a área do Guadalquivir, onde se encontram os paralelos mais aproximados para algumas produções locais19.
Ao longo da diacronia, Santarém parece ganhar preponderância regional em conjunturas que coincidem com a activação das suas valências militares, decorrendo da sua posição fronteiriça20. Seria essa a realidade nas vésperas da conquista portuguesa, quando a administração almorávida levou a cabo um amplo reforço das suas fortificações21. Esta presença constante e interventiva dos poderes terá dinamizado uma integração ainda mais intensa no ambiente cultural e tecnológico mediterrânico, patente na completa islamização das formas identificadas nos contextos do século XII, sem que possam ser rastreadas quaisquer influências de tradições cerâmicas anteriores. Este traço determina, aliás, uma certa invisibilidade da incorporação da cidade no reino de Portugal, que passa praticamente despercebida no registo arqueológico. Os conjuntos artefactuais da segunda metade do século XII e da centúria seguinte, provenientes de contextos de enchimento de silos, bem datados pela presença de moedas, apontam sempre para lógicas de efectiva continuidade22.
Muito embora se observem diferenças de pormenor nos perfis ao longo do século XIII, os referentes correspondem indubitavelmente a protótipos islâmicos. A forma “jarra”, que já apresentámos como um dos mais característicos recipientes meridionais, não apresenta praticamente discrepâncias morfológicas com o período anterior, pelo menos na parte superior das peças. Na variante mais vulgarizada, assinala-se apenas um elemento de ligeira divergência, que consiste no lábio introvertido, que se traduz num perfil dos colos em S pouco pronunciado (Fig. 2, n.º 6)23, não sendo possível determinar se já ocorre o típico fundo em bolacha, que caracterizará as produções trecentistas (Fig. 2, n.º 9)24, uma vez que não se recuperaram peças completas.
Nas panelas, mantém-se uma grande diversidade formal, com quase todas as variantes assinaladas a corresponderem a uma clara “herança” anterior, que se detecta em pelo menos três perfis diferentes. No primeiro caso, assinalam-se recipientes com corpo globular e marcado estrangulamento no colo, apresentando bordos triangulares, ligeiramente extrovertidos (Fig. 2, n.º 4). Já o segundo tipo corresponde a bordos com lábio de perfil semicircular ou boleado, também extrovertido. Menos comum é a ocorrência de uma variante com bordos ligeiramente extrovertidos, muito moldurados e o lábio afilado. Estas três morfologias estavam já presentes nos conjuntos almorávidas da cidade25.
Aquela que parece ser a grande inovação deste período é um tipo de panela bastante difundido, que apresenta bordo em aba, em geral com estrangulamento do colo (Fig. 2, n.º 8), tendo semelhanças flagrantes com soluções especialmente divulgadas a partir de meados do século XII no Sul da Península. A sua presença em cidades que estavam já sob administração cristã aquando da conquista almóada poderá ser explicada por contactos comerciais com o Sul islâmico, a partir da importação de produções mais cuidadas, como os exemplares vidrados de Mértola26. Sintomaticamente são identificados também em povoações onde a presença das tropas magrebinas foi muito curta, como em Calatrava La Vieja27. Assim, parece ficar demonstrado que a integração na esfera de influência política cristã, para além de não obliterar a tradição islâmica local, também não interrompeu as relações culturais estabelecidas com as regiões meridionais.
Este processo poderá ser também observado no caso das tigelas, destacando-se a peça que apresenta carena alta, pé anelar e rebordo para receber tampa, rodeado por seis pequenas asas (Fig. 2, n.º 7). As semelhanças com peças da Beja almóada são evidentes, nomeadamente no perfil carenado e na distribuição das asas (embora os exemplares pacenses apresentem 8 apêndices), surgindo nesta cidade com uma cronologia centrada em meados do século XII. Os bordos adaptados à colocação de tampa, bem como os pés anelares, são também conhecidos naquela cidade, muito embora não estejam publicados exemplares que apresentem o pleno destes quatro caracteres28.
Outro elemento de continuidade imediatamente apreensível é a manutenção da pintura a branco como opção ornamental dominante nas produções locais. Muito embora se identifiquem diferenças ao nível da difusão, diminuindo a sua percentagem ao longo do tempo, assinala-se sistematicamente em contextos do século XIII, sendo exemplos as amostras provenientes de escavações na Avenida 5 de Outubro29 e na Rua Capelo Ivens/Travessa do Froes30. São observáveis mais mutações da técnica nestes ambientes tardios, verificando-se a sua concentração nalguns perfis, em especial naqueles relacionados com o consumo de líquidos. A desarticulação progressiva dos programas decorativos do período islâmico é também evidente à medida que vão surgindo novas soluções na sua aplicação, nomeadamente a pintura a ponteado, que parece ser um indicador cronológico31, na medida em que não foi identificada em contextos anteriores à conquista cristã. Muito embora se reduzam os contextos onde está presente, comparativamente a épocas anteriores, essa opção decorativa sobreviverá até ao século XIV. Porém, os eventuais significados simbólicos primevos da ornamentação estavam, então, totalmente desarticulados, a julgar pela simplificação das composições, reduzidas a conjuntos de linhas rectas e onduladas32.
De momento, no que diz respeito às cerâmicas, a conjuntura da conquista de Santarém só pode ser assinalada, de forma relativamente exuberante, a partir da diminuição acentuada e abrupta da circulação de produções com revestimento vítreo, que desaparecem de muitos dos contextos do século XIII. Só com a chegada de produções tradicionalmente atribuídas ao território actualmente francês e ao Levante espanhol, a partir da centúria seguinte, se voltarão, progressivamente, a identificar cerâmicas vidradas ou esmaltadas em praticamente todos os contextos com componente artefactual abundante33.
A escala desta cidade facilita a articulação de informação heuristicamente diversa, suficientemente abundante para escorar algumas conclusões, ainda assim manejável no momento de obter uma imagem genérica, mas amplamente documentada, do seu conspecto físico. A par da relativamente profusa bibliografia sobre as suas materialidades, a existência de duas monografias sobre a evolução urbana em época medieval, e que se encontram adiante citadas, assentes em sistemáticas leituras de documentação escrita, constituem-se como elementos estruturantes no momento de tentar uma abordagem explicativa ao fenómeno das evidentes continuidades após a conquista cristã.
Assim, saliente-se em primeiro lugar que se registam em Santarém, ainda que episodicamente, fragmentos de asas puncionadas ou de alguidares de fundo em disco, em contextos dos séculos XI-XIII. Soluções tipicamente setentrionais que representam seguramente o registo material da chegada de contingentes populacionais alógenos34. Abordagens arqueométricas a alguns desses elementos não demonstraram uma diferenciação geoquímica face às fontes de matéria-prima da região35, permitindo defender a sua produção na cidade. Sinalizariam, portanto, um momento em que novos habitantes teriam insistido na reprodução dos referentes morfológicos e técnicos dos seus locais de origem. Mas, contrariamente ao que seria expectável numa interpretação que atribuísse especial relevância à origem étnico-religiosa dos oleiros da cidade, as tradições setentrionais nunca se tornaram dominantes, sendo, pelo contrário, sempre residuais.
Em sentido oposto, todos os dados apontam para que, em termos demográficos, a tendência tenha sido exactamente a inversa e o carácter minoritário da comunidade muçulmana se tenha acentuado fortemente logo nas primeiras décadas após 1147. Convoca-se como primeiro elemento comprovativo desta leitura o fulgurante crescimento da cidade nessa conjuntura. A leitura de que a “valorização de Marvila parece posterior à Reconquista”, alicerçada na referência documental a vários espaços não construídos no perímetro dessa paróquia ao longo do século XIII36, recebeu contributos adicionais da Arqueologia durante este século: amplas áreas da mesma constituíam-se como necrópole durante o período islâmico37.
Por outro lado, a construção da muralha em redor deste arrabalde só se concretizou durante o reinado de D. Sancho I, densificando-se progressivamente a ocupação no seu interior, como nos informa a sucessão de novas sedes paroquiais ao longo da primeira metade de Duzentos38. Para além da comprovação de que a cidade crescia com a chegada de gente cristianizada, o recenseamento da antroponímia na Santarém pós-1147, onde surgem amiúde os referentes galego ou castelhano39, volta a sugerir uma fortíssima componente setentrional.
Sendo inegável que a participação de alguns membros da minoria muçulmana na atividade oleira40 potenciaria as lógicas de continuidade atestadas, esse dificilmente se poderá considerar o factor determinante, na medida em que a progressiva diluição demográfica dessa minoria, num mercado em clara expansão, não se refletiu na evolução das materialidades. Assim, a referência aos antecedentes islâmicos das cerâmicas dos séculos XII-XIV deve ser interpretada a partir de uma hipótese mais sustentável, que se relacionará directamente com uma diferença estrutural entre as áreas onde a formação social islâmica se implantou sem interrupções desde 711 e o restante território actualmente português. No que diz respeito ao tema em apreço, a principal alteridade corresponde à superior complementaridade e consequente osmose cultural entre os núcleos de povoamento, desde a mais relevante cidade ao assentamento rural com escassa identidade estrutural41. Esta afirmação decorre, e simultaneamente pode ser comprovada, da absoluta coerência morfológica e ornamental que se verifica em espaços geográficos alargados, só explicáveis por uma escala e um volume de distribuição, especialização e organização da produção que não tinha paralelo nas regiões setentrionais, onde a circulação das manufacturas raramente ultrapassaria um nível local.
Terá sido a existência de uma economia orientada para o mercado, dinamizada e fornecida de artefactos a partir de centros urbanos que, aliada a um saber fazer acumulado durante séculos, permitiu a sobrevivência de caracteres meridionais muito para além da conquista. O contacto das novas populações com essa estrutura produtiva, bastante mais eficiente e com tradições morfológicas e ornamentais muito enraizadas, traduziu-se na subalternização das produções típicas do norte ruralizado, mesmo quando os colonos e os seus descendentes passaram a ser amplamente maioritários. Num primeiro momento o consumo terá passado a ser orientado para as cerâmicas produzidas localmente, seguindo-se, com elevada certeza, a mimetização do enquadramento técnico e organizacional com que contactaram. Buscaram assim a participação em lógicas de mercado já presentes, mas que sairiam dinamizadas pelo aumento populacional do núcleo urbano.
Lisboa, a outra grande cidade na bacia do Tejo, também revela uma cultura material cerâmica totalmente integrada na matriz mediterrânica islâmica, sem que se vislumbre qualquer resquício de influência setentrional. Destaca-se, no âmbito nacional, pela identificação e sistematização de vários contextos relacionados com a produção oleira em período tardo-islâmico, nomeadamente fornos e fossas detríticas, reforçando o que fica dito sobre a evolução pós-conquista e a sua relação directa com a “capacidade instalada” durante o período anterior, com especial ênfase para a organização e especialização da produção e os recursos técnicos disponíveis. No Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros atesta-se um amplo conjunto cerâmico, que permitiu definir as características formais, ornamentais e técnicas da cerâmica num momento anterior à conquista cristã, enquanto no “Mandarim Chinês” se destacam as evidências de manufactura de cerâmica vidrada e vidrada estampilhada, bem como a sucessão de fornos diferentes, que se sobrepõem estratigráfica e cronologicamente42.
Embora sejam praticamente desconhecidos, por ora, os conjuntos cerâmicos de época imediatamente posterior à conquista cristã, aparentemente as produções da última fase de ocupação islâmica continuariam a ser os referentes dos momentos subsequentes, ou seja, à semelhança do já observado para Santarém, também em Lisboa a chegada do poder cristão não terá desestruturado a matriz meridional da produção oleira. A primeira publicação que se dedicou a analisar o período de transição em Lisboa, apoiada na presença de moedas de Sancho I, em contextos fechados, permitiu definir que as panelas de bordo triangular ou em aba e asas no colo, as jarras de duas asas e os grandes cântaros, frequentemente pintados a branco, tinham continuado a ser especialmente comuns no século subsequente à integração da cidade no reino de Portugal.
No que diz respeito às formas abertas, constituem, sem dúvida, evoluções derivadas das suas congéneres do século XII47. Assinala-se ainda que, pelo menos macroscopicamente, não se detectam alterações ao nível da selecção da matéria-prima (o que é natural), da modelagem ou das condições de cozedura48.
De resto, ainda entre a segunda metade do século XIII e o século XIV, embora se assista a uma certa monotonia formal devido à concentração da produção nalguns perfis, estes são derivações evidentes das soluções islâmicas, sendo exemplos as jarras já referidas, agora com o típico fundo em bolacha (Fig. 4, n.º 7), ou as escudelas e tigelas carenadas, quase sempre com pé anelar (Fig. 4, n.º 15)49. As produções de Lisboa e Santarém são neste período absolutamente coincidentes, com excepção da ornamentação, uma vez que a pintura a branco não se registou tão frequentemente na capital do reino, não sendo possível determinar se esta diferença se deve a uma maior resiliência da base cultural islâmica, derivada dos equilíbrios sociais locais, ou a um simples traço de conservadorismo, patente na cidade menos dinâmica.
Se no momento da redacção de uma primeira reflexão sobre as lógicas de continuidade, os autores alertavam que se poderia tratar de uma realidade espacial muito específica, uma vez que os contextos eram quase exclusivamente provenientes do interior da alcáçova50, começam agora a percepcionar que as sistematizações de outros sítios arqueológicos revelam evidências crono-tipológicas muito semelhantes. Um exemplo são os materiais provenientes da última utilização de quatro silos de S. Vicente de Fora. Ainda que datados num primeiro momento de período califal/taifa, a presença de numismas dos séculos XII-XIII, no enchimento de alguns deles, é coerente com a maioria dos perfis ilustrados, bem como com a pintura ponteada de algumas das peças51. Outra escavação mais recente, na Rua das Cruzes da Sé, parece ter identificado um momento de urbanização posterior à conquista cristã, anulado por um grande aterro aparentemente relacionado com a construção do claustro dionisino (1279-1325), tratando-se de um ambiente cronológico consonante com os materiais identificados. Numa abordagem preliminar, dado que os materiais ainda não estão sistematicamente estudados, tanto as formas de panelas, tigelas e testos, como o tipo de pintura branca e os vidrados que foram recuperados remetem para um momento de transição centrado nos séculos XII-XIII52. No caso referido, assinalam-se melados muito escuros - uma aparente variação de tom que parece ser comum à decoração com traços de manganés -, que parecem mesmo coexistir com importações já provenientes de território francês. O estudo sistemático dos materiais desta intervenção poderá ser crucial para clarificar a problemática da manutenção de produções vidradas autóctones.
Uma quebra da distribuição de vidrados é indiscutível na segunda metade do século XII - inícios do XIII, uma vez que marcou de forma evidente o registo arqueológico, pela sua rarefacção nos contextos pós-conquista53, quando, ainda assim, continuaram também a ser importados de centros produtores meridionais (Fig. 5). De resto, a substituição de fornos de barras para produção de vidrados por um forno de dupla câmara para produção de cerâmica comum e pintada, na olaria identificada no Mandarim Chinês, poderá estar relacionada com uma progressiva diminuição da produção de peças vidradas54, ainda em período islâmico. Começam, no entanto, a ser tipificadas características que parecem corresponder a produções locais e que, sobrevivendo à conquista, continuariam a abastecer a cidade, pelo menos até ao incremento definitivo da importação de peças vidradas francesas, que ocorre a partir de finais do século XIII. Nessas séries mais tardias, as estampilhas são diferentes e apresentam motivos diversificados. Assinala-se a mesma mutação nas cores do vidrado, com vários tons de melado ou amarelo e, com frequência, do tom verde, alargando-se assim a paleta cromática, em comparação com a época islâmica. A forma das tigelas também parece ser algo diferente, com maior altura e de perfil mais sinuoso, por oposição aos modelos anteriores, tendencialmente carenados. Por fim, em relação a esta forma, deve referir-se a principal distinção dos conjuntos cerâmicos meridionais coevos: a ausência da caçoila de “costillas” almóada.
Um outro exemplo da manutenção dos contactos técnicos, estéticos e comerciais, entre as cidades já sob domínio cristão e o território ainda islâmico a sul, é a produção e o consumo de talhas estampilhadas não vidradas, que ocorrem nos contextos tardo-medievais de Lisboa, como se observa em alguns fragmentos expostos no núcleo museológico do Castelo de São Jorge56, aspecto que merecerá atenção em estudos futuros. Assinale-se ainda a evolução morfológica da forma “panela”, que assume progressivamente um corpo globular de colo/bordo curto, recto e estrangulado, enquanto noutra variante se afirma um perfil em forma de saco e corpo de tendência quase quadrangular, também muito frequente, surgindo ambas as formas com ou sem pintura branca e com ou sem revestimento vidrado no interior (Fig. 4, n.ºs 3 e 4). Saliente-se que estas tendências são semelhantes às verificadas na mesma época no Sul ainda islâmico, sugerindo a existência de fortes contactos e influências, que embora eventualmente recíprocos, favoreciam a preponderância do ambiente técnico mais avançado, o islâmico. Relativamente à forma “jarra”, embora mantendo um perfil tendencialmente semelhante ao nível do colo alto e recto, perde progressivamente a carena no corpo, que se torna mais curvo ou mesmo globular, mas principalmente ganha um pé destacado e em bolacha, em substituição do anterior fundo plano ou ligeiramente convexo (Fig. 4, n.º 7). Por fim, refira-se a forma “copo”, que evolui para o jarro tardo-medieval, mantendo os principais traços de perfil carenado de uma asa, mas ganhando um alongamento da parte inferior do corpo e uma maior dimensão (Fig. 4, n.º 11).
Muito embora seja necessário avançar na sistematização de contextos deste período para firmar certezas, a progressiva dispersão espacial assinalada para estas produções “epi-islâmicas”57, quer de cerâmica comum, quer de vidrada, parecem anunciar que a corrente cultural dominante no primeiro século da Lisboa portuguesa tinha óbvias soluções de continuidade com os séculos anteriores. É imprescindível associarmos aos indicadores materiais os comprovativos das fontes escritas que, neste âmbito, nos são trazidos pela investigação de Filomena Barros. Refira-se, a título de exemplo, que a autora reporta, para os arrabaldes da Mouraria de Lisboa, ainda no último quartel do século XIV, tendas de muçulmanos que vendiam “olas”58.
A norte de Lisboa, em Torres Vedras, a eventual ocupação islâmica ainda se encontra deficientemente definida, na medida em que não existem contextos absolutamente seguros dessas cronologias. Os materiais publicados como correspondentes a esse período têm na pintura a branco o principal argumento para esse enquadramento cronológico59, o que, como o nosso estudo torna manifesto, é uma evidência muito frágil, dada a sobrevivência temporal desta opção ornamental. De facto, uma análise contextual a algumas cerâmicas que se encontram publicadas como muçulmanas nega essa classificação, como o denominado silo n.º 1 do sítio dos Paços do Concelho. A apresentação de um jarro/cântaro pintado a branco, sem bordo, poderia sugerir essa cronologia, mas o perfil completo de outro recipiente semelhante, com a mesma proveniência estratigráfica60, é altamente coincidente com as peças em circulação nos séculos XIII-XIV em Lisboa61. Adicionalmente verifica-se que, no enchimento da mesma estrutura negativa, foram recuperados dois bordos de escudelas vidradas, indiscutivelmente baixo-medievais, confirmando uma datação em torno de trezentos para este conjunto, podendo mesmo alcançar a centúria seguinte.
É inegável, no entanto, a ocorrência de características meridionais em Torres Vedras, desde logo a partir da presença de dezenas de fragmentos que apresentam pintura a branco - e, muito raramente, a vermelho -, embora se denote uma simplificação dos motivos, tipificada para cronologias avançadas62, não ocorrendo sequer linhas onduladas. Esta continuidade reflecte-se também nos aspectos morfológicos dos recipientes, como nalgumas panelas que derivam das soluções de lábio aplanado (Fig. 6, n.º 2), que convivem com cântaros de lábio “amendoado” introvertido (Fig. 6, n.º 3), um perfil abundantemente reconhecido nos momentos finais da presença islâmica por todo o vale do Tejo63. A completar este quadro genérico, e caso se confirme a sua associação contextual com a restante amostra64, anote-se o declínio tardio da típica jarra de beber (Fig. 6, n.º 4). Em sentido contrário, assinala-se o jarro de perfil bitroncocónico, profusamente estriado (Fig. 6, n.º 1). Este pormenor estilístico, essencialmente quando registado no bordo, parece ser mais comum em ambientes arcaizantes, onde a presença islâmica nunca foi suficientemente intensa para anular as tradições locais, sendo frequente, por exemplo, no Alto Mondego a partir do século X ou em Conímbriga, entre os séculos X-XII65.
Muito embora seja prematuro firmar certezas, parece concebível que o índice de continuidade com as soluções islâmicas tenha um valor retrospectivo. No caso de Torres Vedras, aquando da sua integração no domínio cristão, poderíamos estar perante um assentamento com menor complexidade social e económica, algo periférico face aos lugares centrais do vale do Tejo, tornando a sua estrutura produtiva mais permeável a influxos dos conquistadores setentrionais. Mas os evidentes sinais de continuidade também não decorrem da especial vitalidade da comunidade muçulmana local após a conquista, uma vez que não se detecta a existência de uma comuna na abundante documentação disponível para os séculos finais da Idade Média66. Sendo assim, um caso que tende a reforçar a perspectiva de que o seu factor determinante se relacione antes com a prévia participação em escalas de integração e complementaridade económica directamente associáveis à preponderância da formação social islâmica.
Os estudos que se vão realizando sobre as materialidades em torno dos estuários do Tejo e do Sado assinalam uma forte unidade cultural entre estas duas áreas geográficas, que também não será alterada pela conquista portuguesa. Muito embora os dados sejam ainda bastante precários, a mesma tendência para a preponderância de lógicas de continuidade pode ser observada em pelo menos um contexto escavado em Almada, cidade na margem esquerda do Tejo, fronteira a Lisboa.
Conquistada em 1147, foi temporariamente integrada nos domínios almóadas durante apenas 3 anos, entre 1191 e 1194. Os materiais identificados nos níveis de aterro de um silo ofereceram materiais absolutamente idênticos aos que circulavam em Lisboa durante o século XIII, nomeadamente as panelas de lábio aplanado com asas no colo, associadas neste caso a moedas de D. Sancho I68, portanto posteriores a 1185. Uma delas, pintada a branco (Fig. 7), sublima essa imagem de ligação com as soluções islâmicas, mau grado se identifiquem também algumas diferenças assinaláveis: as formas abertas parecem já não receber sistematicamente esse pigmento, de resto uma tendência já observada em Santarém.
A cultura material de Palmela, cidade localizada mais a sul na Península de Setúbal, apresenta um grau de sistematização que permite uma análise mais detalhada da evolução por formas. Assinala-se, como nas cidades do Vale do Tejo, a persistência da pintura a branco, ainda que pareça ter aqui menos vigor, sendo suplantada pela estriagem das peças como opção ornamental dominante69. No que diz respeito às panelas, assinala-se uma evolução formal também directamente derivada de protótipos almóadas70. Esta tendência é aqui menos surpreendente, uma vez que, apesar do curto momento em que se encontrou sob administração da dinastia africana (partilhando a diacronia com Almada), constituiu a fronteira com os seus domínios até à conquista de Alcácer do Sal em 1217, o que facilitou certamente a permeabilidade com os influxos culturais meridionais.
Há ainda que salientar o facto de, tanto em Almada como em Palmela, ter permanecido uma comunidade muçulmana, que constituiria um substrato populacional significativo na primeira fase da instalação portuguesa, após a conquista de 1165. A atribuição, em 1170, de carta régia a essa comunidade - o chamado “Foral dos Mouros Forros” -, 15 anos antes de a população cristã de Palmela ter sido contemplada, testemunha a importância do grupo e a garantia da permanência dos seus saberes e influências culturais71. As respectivas marcas materiais são naturalmente mais expressivas em sítios do núcleo urbano, como a Rua de Nenhures72.
Outras formas de Palmela que durante o século XIII apresentam diferenças de pormenor com os seus referentes islâmicos são os cântaros ou os alguidares, muito embora seja mais rara a pintura a branco nestes recipientes, face a períodos anteriores. Novamente, são as jarras que apresentam semelhanças irrepreensíveis com as suas congéneres anteriores. Nesta localidade, surgem ainda em período islâmico formas carenadas para consumo de líquidos, geralmente designadas por púcaros ou copos, que circulam a par do perfil mais comum, de jarra com duas asas (Fig. 8). Serão estes dois modelos e seus derivados a dominar os conjuntos artefactuais até ao século XIV73. Assinale-se, no entanto, que se verifica uma diminuição evidente do reportório formal após a conquista cristã, rareando por exemplo as formas abertas. Esta constatação derivará da proveniência da maioria dos materiais analisados, a alcáçova do castelo da cidade. Tendo sido ocupada por elementos alógenos, membros da Ordem de Santiago, nomeadamente quando instalaram neste castelo a sua casa-mãe (c. 1194-1217), é natural que outros hábitos alimentares se tenham traduzido na escolha das formas mais utilizadas. De acordo com esta constatação, verifica-se que o tratamento de superfície mais disseminado passa a ser a estriagem, substituindo a pintura a branco, sendo de admitir que as particulares condições políticas e demográficas do hisn Balmalla, um pequeno assentamento militar quando comparado com Lisboa ou Santarém, tenha permitido um maior contributo cultural dos contingentes setentrionais na evolução da produção cerâmica, à imagem do que já se propôs para Torres Vedras. No caso de Palmela esse processo correu em paralelo com a presença de uma comunidade muçulmana organizada em comuna, menorizando, uma vez mais, uma correspondência unívoca entre a expressão populacional dessa minoria e a vitalidade comparativa de caracteres meridionais.
O reino do Algarve e a ligação estrutural ao Mediterrâneo
Já nas povoações costeiras do Algarve, no estado actual da investigação, não é detectável qualquer ruptura assinalável entre os séculos XIII-XIV. Para tal terá contribuído o âmbito temporal da presença islâmica neste território, que só seria totalmente conquistado nos finais da primeira metade do século XIII. Mas o factor determinante será a permanente e constante integração cultural e comercial com o vale do Guadalquivir, nomeadamente com Sevilha. Sendo este um dos mais dinâmicos centros difusores da cultura mediterrânica e onde, sem surpresa, o elemento mudéjar perdurou com maior intensidade nas produções oleiras, tornando-o axial na perpetuação da influência islâmica nas regiões confinantes.
Tomemos como exemplo o castelo de Alcoutim, fundado após a conquista cristã da região, pelo que não é expectável que acolhesse contingentes populacionais com um vínculo declarado ao universo cultural islâmico. Na sua primeira fase de ocupação, com cronologia centrada no século XIV, as cerâmicas recolhidas nos pisos dos espaços domésticos apresentam características que remetem para a tradição almóada, cujos modelos circulariam ainda na segunda metade e finais do século XIII. Trata-se de cerâmica comum não vidrada, de pastas granulosas, com superfícies alisadas, algumas brunidas e outras com engobe. Entre as formas mais representadas, estão púcaros de bordo adelgaçante e colo cilíndrico, panelas de bordo triangular com sulco interno e tigelas/caçoilas de paredes curvo-convexas74. No nível sobrejacente (5.b), igualmente trecentista, continua a verificar-se a subsistência de modelos tardo-almóadas na cerâmica comum, a que se juntam cerâmicas vidradas sevilhanas das séries branco e verde e melado e negro, em pratos e tigelas de pé anelar desenvolvido. Para as cerâmicas não vidradas que mantêm tradição almóada, dão-se como exemplo panelas de bordo boleado, sulco na ligação com o colo, ligeiramente convexo, corpo globular, fundo plano e duas asas a partir do bordo, ou as tigelas/caçoilas de perfil curvo-convexo com caneluras abaixo do bordo. A mesma tradição observa-se nas tigelas carenadas com superfícies vidradas, de tom melado e acastanhado, que continuam a aparecer associadas às primeiras produções sevilhanas das séries acima referidas75.
Esta forte permanência das mesmas formas, a par do abastecimento de cerâmicas vidradas e esmaltadas na região, que parece ter decorrido sem interrupção assinalável, na medida em que se encontra plenamente reactivado no século XIV, dificulta a rigorosa integração cronológica de muitos contextos, que têm de receber uma datação lata, entre o século XIII e a centúria seguinte.
É esta a realidade que começa a ser detalhada para a capital do reino do Algarve, Silves, onde elementos como as grandes talhas estampilhadas (Fig. 9) (agora sem revestimento e com decoração distribuída aleatoriamente pela peça) e as produções vidradas (igualmente estampilhadas ou decoradas a traços de manganés) estão presentes ininterruptamente no registo arqueológico dos séculos XIII-XIV, não sendo imediatamente diferenciáveis as produções anteriores à conquista, daquelas que circulavam na cidade cristã76.
De igual modo, no castelo de Paderne assinalam-se, por exemplo, panelas com asas adjacentes ao colo (Fig. 10, n.º 1) ou caçoilas com depressão para receber tampa (Fig. 10, n.º 2), que são formas frequentes durante o século XIII, mas que se prolongam ao longo da centúria seguinte. Outras formas tipicamente islâmicas, como o alguidar trípode (Fig. 10, n.º 4) ou os grandes cântaros (Fig. 10, n.º 3), continuam a ser comuns durante o século XIV, mantendo os perfis dos seus antecessores almóadas.
Considerações finais
Verifica-se, assim, que a conquista cristã não influenciou estruturalmente a evolução das materialidades no território actualmente português, no que à cerâmica diz respeito. O salto qualitativo, em termos tecnológicos e de especialização do trabalho, que representou a integração de grande parte desta área geográfica no âmbito civilizacional islâmico, herdeiro das tradições de osmose cultural centradas no Mediterrâneo, impediu que algumas expressões materiais dos conquistadores portugueses, em especial as produções cerâmicas, se firmassem em muitos dos seus novos territórios, particularmente a sul do Mondego.
Representando a expansão de uma formação social predominantemente ruralizada e com tratos comerciais de menor escala, a integração nos seus domínios de áreas onde o poder islâmico se havia instalado de facto e dinamizado com maior intensidade a difusão das soluções meridionais, as suas produções tenderam a diluir-se nas tradições locais, não deixando vestígios marcantes no registo arqueológico.
Esta linha de interpretação ganha particular apoio na evolução diferenciada que se verifica nos territórios de fronteira, explicando, por exemplo, a sobrevivência, ainda que tímida, de algumas características meridionais na Coimbra pós-conquista, periférica no contexto peninsular islâmico. No entanto, esta cidade tinha uma importância estratégica relativa, na medida em que era a primeira linha de defesa do Garb-al-Andalus. Ao contrário, em Conímbriga, localizada a escassos quilómetros, esses sinais são praticamente inexistentes, mesmo em cronologias em que a história política determina um domínio, pelo menos nominal, dos poderes muçulmanos.
Estas escalas de integração com o universo meridional terão também determinado a forte componente “mudéjar” das cerâmicas da Lisboa e, de forma ainda mais marcada, a sobrevivência temporalmente mais dilatada da pintura a branco na Santarém dos séculos XIII e XIV. Tendo esta última cidade assumido a capitalidade da bacia do Tejo, no contexto da sua defesa pelo poder almorávida, a conquista cristã não parece ter influenciado a evolução da cerâmica comum. O seu impacto restringiu-se ao aparente desaparecimento temporário de produções vidradas, eventualmente pela desarticulação de oficinas que tinham como principal mercado alguns grupos sociais privilegiados e que, no contexto da integração no reino português, podem ter abandonado a região.
A mesma lógica, relacionando o nível de sobrevivência da matriz mediterrânica com a anterior proximidade aos poderes islâmicos, pode ser aplicada ao reino do Algarve. A sua relação estrutural com a bacia do Guadalquivir, sede natural do poder durante a presença muçulmana e base de todas as tentativas de unificação dos domínios peninsulares, terá determinado, nos séculos posteriores à conquista portuguesa, uma cultura material absolutamente derivada dos estandardizados perfis almóadas, dificultando mesmo, como já avançámos, a destrinça entre contextos pré e pós integração nos domínios do monarca português.
É evidente que o âmbito temporal da presença islâmica, a latitude ou a permanência de comunidades de mouros forros, tiveram o seu peso no processo aqui analisado, mas parece seguro que o factor determinante reside nas lógicas de centro/periferia. Verifica-se, portanto, que nas cidades e regiões consideradas pelo poder islâmico como fundamentais para o controlo do território, a sua instalação dinamizou um amplo processo de aculturação e o progressivo desaparecimento das tradições localistas, surgidas na conjuntura tendencialmente autárcica da Alta Idade Média, substituídas por produções claramente derivadas de uma matriz cultural mediterrânica. Nas periferias esse processo nunca se completou, permitindo a disseminação de produções cerâmicas com características setentrionais após a conquista cristã. A análise de conjuntos materiais provenientes de meios rurais e de assentamentos menos relevantes na malha do povoamento islâmico permitirão, futuramente, voltar a testar esta hipótese e detalhar novas nuances geográficas, a escalas diversas.