O Prof. José Mattoso partiu no passado dia 8 de julho de 2023. A sua morte gerou de imediato um avolumar de evocações, dos mais diversos quadrantes, testemunhando o seu contributo incontornável e a muitos títulos único. Como intelectual, como historiador e como cidadão, não raro associado a um claro empenho político no que este tem de construção da cidade, de procura de um mundo mais justo e fraterno. A Medievalista não podia deixar de se juntar a estes sentimentos partilhados. Tal como já foi assinalado no Editorial que abre este número, José Mattoso foi um dos responsáveis pela consolidação da revista enquanto lugar de discussão e partilha dos estudos medievais, aberto a distintos saberes e historiografias, a autores conceituados e a jovens investigadores, mas igualmente empenhado em promover a inovação e a qualidade da reflexão científica sobre os tempos medievais. Fê-lo tanto nos editoriais que assinou entre 2008 e 2015, como no seu olhar crítico sobre os mais recentes contributos vindos da História, da Literatur, da Musicologia, da Paleografia e da Diplomática ou da Antropologia Histórica, ou ainda na evocação de outros medievalistas de renome.
Assim vistas as coisas, que contributo dar de novo e de diferente? Afastado o figurino tradicional das homenagens científicas, que José Mattoso desde sempre recusou, e pertencendo a outros lugares uma discussão mais aprofundada do seu legado científico e historiográfico, pareceu-nos pertinente convocar outros olhares, mais improváveis, que apelassem a outras facetas da sua multifacetada figura e do seu rico percurso de vida. Olhares de quem se cruzou com ele em diferentes momentos da vida, ou a partir de distintas áreas do saber. Ao jeito de testemunhos, eles evocam - no texto, na imagem, na música e até nos silêncios subentendidos - um José Mattoso mais próximo, atento aos outros, delicado e perspicaz, crítico mas sempre capaz de valorizar as pequenas coisas, as descobertas e os novos indícios pelos quais o passado medieval se podia tornar um pouco mais compreensível.
Eles mostram, desde logo, um percurso entretecido de encontros, de amizades e de cumplicidades. Assim com D. António Montes Moreira, seu colega de estudos em Lovaina, ou com D. Carlos Azevedo, partilhando com ambos a paixão pela história religiosa ou, se quisermos, o mesmo olhar para a realidade do passado a partir do fenómeno religioso, nas suas necessárias ligações com a realidade económica e social e com os distintos contextos políticos. Assim também com Mário Jorge Barroca ou Carlos de Ayala Martínez, um na partilha de projetos editorais, o outro na descoberta atenta dos frutos da sua investigação. Como o mais novo de todos, Luís Rêpas testemunha o mesmo cuidado, o mesmo gosto e a mesma atenção que José Mattoso punha no contacto com outros investigadores, dado o seu genuíno interesse por aquilo que, nos seus trabalhos, encontrava de inovador e promissor.
Rui Ramos fecha este ciclo, alertando para a importância da obra de José Mattoso. Não apenas na inauguração de um novo paradigma historiográfico - salienta-o também Carlos de Ayala ao lembrar o impacto da sua obra além-fronteiras -, mas também no que ela contribuiu, no pós-25 de Abril de 1974, para a reflexão sobre Portugal e a identidade nacional. Atento e particularmente sensível aos dados da geografia, e, em particular, à obra incontornável de Orlando Ribeiro, José Mattoso mostrou um país construído sobre uma diversidade física, cultural e também política, com uma complementaridade entre Norte e Sul, que conjuga distintos legados e vivências. O seu testemunho é ainda importante na evocação do empenho colocado por José Mattoso na construção da democracia, de modo particular junto da jovem nação de Timor Loro Sa’e, ou na salvaguarda da sua memória documental e no estudo do seu passado de luta e resistência1.
Conclui-se este conjunto de olhares improváveis com a evocação proposta por Alfredo Teixeira, um antropólogo fascinado pela abordagem do passado proposta por José Mattoso e que, afinal, se revela incontornável para a compreensão das configurações societais e culturais da contemporaneidade. O desafio da História Contemplativa tem também aqui o seu eco, como um repto a conciliar rigor, inteligência e intuição, num entendimento mais profundo e abrangente da realidade. E o autor termina de forma menos usual, mas profundamente coerente, convocando a poesia de José Tolentino Mendonça e a música para falar dos sábios, dos que “louvam o vulnerável e o inacabado” e perscrutam “dos espaços trabalhados devagar pelo silêncio”. As imagens e a frase escolhidas, como fecho, pela própria família trazem-nos precisamente esta dimensão de finitude e de inacabado, de algo que se interrompe, mas de algum modo continua. Porque a resposta plena ao desejo pertence a uma outra ordem de razões, que se diz já na generosidade da vida e nessa “espantosa realidade das coisas”.
Que a visitação destes olhares possa ser também uma forma de não sermos ingratos e de dizermos o nosso “bem-haja” a um querido Mestre e Amigo, com quem aprendemos tanto. E também um compromisso para, ao seu jeito, não deixarmos de procurar caminhos novos, que permitam compreender a humanidade de que todos somos feitos.
A Medievalista
Recordando
Em 1958-1960 fui condiscípulo do Prof. José Mattoso na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. Ele morava na abadia beneditina de Mont César, nos arredores de Lovaina, e cursava História na Faculdade de Filosofia e Letras; eu residia no convento franciscano da cidade e era aluno da Faculdade de Teologia. Nesse biénio ele frequentou nesta Faculdade uma cadeira ministrada pelo conceituado mestre lovaniense Prof. Roger Aubert. Esta convivência académica marcou o início duma amizade que se prolongou por mais de seis décadas.
A 4 de Novembro de 1968 abriu em Lisboa a Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, da qual fui Secretário desde o início até 1981. O Prof. Mattoso lecionou aí História da Igreja Medieval no segundo semestre de 1969-1970.
Neste mesmo ano recenseou a minha dissertação de doutoramento, Potamius de Lisbonne et la controverse arienne, na revista de cultura dos Franciscanos portugueses2. Mais tarde fiz o mesmo para a sua, Le monachisme ibérique et Cluny - Les monastères du diocèse de Porto de l’an mille à 12003.
De 8 a 11 de junho de 1982, comemorando os 750 anos da morte de Santo António de Lisboa, a Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, com o patrocínio da Câmara Municipal de Lisboa e em colaboração com o Cabido da Sé Patriarcal de Lisboa e a Família Franciscana Portuguesa, organizou em Lisboa um colóquio sobre o Santo, de que fui Secretário-Geral. O Prof. Mattoso apresentou a comunicação O enquadramento social e económico das primeiras fundações franciscanas em Portugal, que abriu assim: “Devo confessar a minha hesitação ao abordar o terreno da vida religiosa franciscana e do mundo urbano medieval. Até aqui raramente me tenho aventurado para fora da vida monástica e do mundo rural. Ora, na Idade Média, os contrastes entre estas duas zonas são muito grandes. Não quis, no entanto, deixar de responder à amável solicitação do Secretário deste Congresso, meu querido Amigo e Colega de Lovaina, o Pe. António Montes Moreira. De resto, também me estimulou uma certa curiosidade. Senti-me como o viajante em terra desconhecida, como o campónio que se passeia, admirado e perplexo, todos ele olhos e ouvidos, para captar as maravilhas fascinantes da cidade”4.
Ainda em 1982, o Prof. Mattoso e eu participámos em Lisboa num colóquio sobre “A História da Igreja no ensino da História”, promovido pelo Centro de Reflexão Cristã. Fronteiras da História da Igreja - Perspetivas teológicas foi o tema da minha comunicação e Condicionalismos materiais da história da Igreja, o da sua5.
De 30 de abril a 3 de maio de 1992, no âmbito das comemorações nacionais dos “Cinco Séculos de Evangelização e Encontro de Culturas”, a Universidade Católica Portuguesa, através do seu Centro de Estudos de História Religiosa, promoveu em Lisboa um Congresso Internacional de História sobre “Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas”. A Comissão Científica do Congresso, a que presidi, encomendou ao Prof. José Mattoso a conferência inaugural. Intitulada Raízes da missionação portuguesa, esta substanciosa comunicação analisa o processo de conversão dos pagãos da Lusitânia e da Galécia nos séculos IV-VIII e o modo como se foram purificando os costumes e crenças religiosas dos povos do ocidente ibérico entre os séculos VIII e XI6.
A 22 de dezembro de 1997 encontrei-me imprevistamente com o Prof. Mattoso no aeroporto de Madrid. Ele tinha-se inscrito numa peregrinação espanhola à Terra Santa e eu ia fazer a visita canónica sexenal aos conventos, santuários e confrades da Custódia da Terra Santa por incumbência do superior geral da Ordem Franciscana. Chegámos a Israel já noite dentro. Do aeroporto de Tel Aviv até Jerusalém fomos juntos no autocarro da peregrinação e aproveitámos para por a conversa em dia. No dia seguinte ele continuou o seu programa e eu dirigi-me a Belém onde celebrei o Natal.
Nos últimos anos o Prof. Mattoso esteve internado durante algum tempo no Centro Neurológico Sénior, sito numa das colinas circundantes de Torres Vedras. De vez em quando, passava para o outro lado da encosta e visitava o convento franciscano de Varatojo, edificado pelo rei D. Afonso V nos anos setenta do século XV. Demorava-se a contemplar a beleza austera do seu claustro gótico de traça mendicante. Numa ida ocasional a Varatojo aí o encontrei um dia, sentado junto à velha sala capitular do convento. Trocámos um sentido abraço, recordando os tempos de Lovaina. Foi a nossa despedida.
António Montes Moreira, OFM
Bispo emérito de Bragança-Miranda
Testemunho: a dimensão contemplativa da vida e da história
De um historiador notável como o Prof. José Mattoso, não vou tecer observações de teor cientifico, pois já o fiz no que respeita a história religiosa, na sua presença, em homenagem da Universidade (30-31 de janeiro de 2006).
Aqui quero registar alguns momentos vividos pessoalmente. A amizade alimentou-se em Roma, na vizinhança dos quartos do Colégio Português, quando ensinava na Universidade de Roma (1986). A sensação era de viver ao lado de um monge na sua austeridade. Eu tinha entregue a tese para avaliação e estava mais livre. Assim pude acompanhá-lo ao Arquivo Vaticano, visitar alguns monumentos da cidade e sobretudo uma inesquecível visita a Subiaco. Quando chegamos à gruta, onde segundo a tradição S. Bento teria escrito a regra, ajoelhou-se apoiado nos tornozelos e ali esteve perto de uma hora em silêncio. Ao descer a colina colheu duas flores silvestres da beira do caminho e guardou-as. Confessou-me: “são para as minhas filhas”.
Com benevolência, assistiu à defesa da minha tese de doutoramento, em abril de 1986.
Devo-lhe a indicação do meu nome ao Círculo de Leitores, em 1997, para dirigir a História Religiosa de Portugal, pois era então Presidente do Centro de Estudos de História Religiosa.
Retomamos contacto, em virtude do eremitério que impulsionei em São Pedro das Águias - Granjinha, sonhado com o poeta Daniel Faria. Quis entrar para a Associação Casa Daniel, foi lá, colaborou na construção e manifestou que se a saúde lhe tivesse permitido gostaria de lá terminar os dias. Deu-me a honra de participar num retiro em Avessadas e de participar no meu aniversário em Milheirós de Poiares, quando residia em Sever do Vouga. Na celebração da eucaristia em casa, em ambiente dos membros da Associação Casa Daniel, no momento da comunhão o prof. Mattoso fez-me sinal com os olhos se podia comungar e respondi com sinal afirmativo. Vi-o muito feliz e grato.
A dimensão contemplativa da vida e da história era profunda e assinala um percurso capaz de, nas tribulações da vida, manter no horizonte a força do Transcendente.
A liberdade em relação à instituição Igreja concedeu-lhe plena distância crítica, crítica de um observador de fenómenos tão distantes no tempo, muitas vezes com parcas fontes.
O conjunto vasto da sua produção historiográfica é uma herança que alguns discípulos acolhem e desenvolvem. Mas o conhecimento interior da instituição que estudou torna a sua descendência difícil. Não basta dominar as fontes, conhecer a bibliografia, ter veia analítica e rigor descritivo, há uma base teológico-histórica essencial, há um modo de questionar os documentos, um abarcar largo de relações e tensões que são neste caso um essencial ponto de partida. O que resulta de autêntico é a simultaneidade de dois conhecimentos que não se prejudicaram, antes potenciaram uma integração da dinâmica religiosa na leitura global dos acontecimentos, sem preconceitos, mas com a interioridade livre para a análise profunda e humilde das ações e inércias das pessoas e instituições.
A sensibilidade para com as dinâmicas do religioso, no olhar global da história medieval, é um legado a prosseguir, com as inovações metodológicas de cada hora e uma visão atenta aos problemas que importa hoje iluminar.
Carlos A. Moreira Azevedo
José Mattoso - Um testemunho pessoal
Pediram-me um testemunho pessoal sobre o Professor Doutor José Mattoso. Sendo arqueólogo, embora medievalista, o honroso convite não deixou de me surpreender. Porque certamente haverá muitos outros que privaram mais directamente com José Mattoso e que estariam melhor posicionados, e documentados, do que eu para fazer uma tal evocação. E que teriam coisas mais interessantes para revelar… Mas não podia deixar de corresponder ao convite - quanto mais não fosse por consideração para com uma figura maior da Historiografia portuguesa e um dos autores que maior influência exerceu sobre mim.
Conheci pessoalmente José Mattoso há trinta e oito anos. Consigo dizer rigorosamente o dia: foi a 6 de junho de 1985. Aproveitando uma deslocação sua ao Porto, foi organizado um pequeno encontro, em casa de Luís Carlos Amaral, que reuniu os professores de Idade Média da FLUP e o Professor Doutor José Mattoso. De um lado, um grupo de jovens assistentes - uns a preparar o doutoramento; outros, como eu, ainda longe disso. Do outro lado, um Historiador já consagrado e respeitado. O Professor Doutor José Mattoso teve a amabilidade de oferecer a todos uma separata do seu mais recente artigo, “A Crise de 1245”, editado em 1984 na Revista de História das Ideias, com dedicatória personalizada e datada. É por isso que, malgrado a minha péssima memória, consigo dizer com rigor o dia em que conheci pessoalmente José Mattoso… Conservo essa separata com especial carinho. O modo afável e sereno que evidenciou nessa noite, escutando-nos com atenção, marcou-me desde logo. A partir de então os contactos com José Mattoso mantiveram-se regulares. A cada trabalho que eu lhe enviava havia sempre um cartão ou uma carta de agradecimento, uma palavra de incentivo, uma separata de retribuição…
Infelizmente nunca fui aluno de José Mattoso. Nunca tive o privilégio de o ter tido como meu professor. Porém, ao longo da minha vida, José Mattoso foi sempre meu professor, meu Mestre (com M maiúsculo, tratamento que reservo para poucas pessoas). Amigos tenho muitos, felizmente. Amigos com A maiúsculo serão menos, como é natural. Cabem nos dedos de uma mão. Mestres - isto é, pessoas que formataram a minha personalidade, como investigador, como docente e como pessoa, deixando marca perene - tenho poucos. Poderia apresentar três nomes apenas. Um deles, à cabeça, José Mattoso. Haverá, porventura, quem estranhe que um arqueólogo diga que o Historiador José Mattoso foi figura determinante na sua formação e na sua investigação. Mas para quem acredite - como eu - que uma das mais-valias da Arqueologia Medieval é a possibilidade de aliar o conhecimento que resulta do registo arqueológico ao conhecimento que advém das fontes documentais escritas e das fontes iconográficas, certamente que compreenderá o papel determinante que José Mattoso exerceu sobre mim.
A obra de José Mattoso representou um momento de viragem na Historiografia portuguesa, não apenas pela renovação que os seus estudos trouxeram, mas também pelos novos campos que eles ajudaram a abrir. Nenhuma obra é fecunda se não estimular novas abordagens. E a de José Mattoso foi particularmente generosa nesta última dimensão. Não irei aqui fazer um balanço dos seus grandes contributos - ainda será cedo para o fazer. Estou certo que, a seu tempo, haverá ocasião para se estabelecer esse balanço crítico, que apenas algum distanciamento temporal permitirá discernir com justiça.
Ao longo da minha vida houve momentos em que me aproximei mais do Professor Doutor José Mattoso. Gostaria de evocar aqui alguns. Um primeiro momento foi quando ele me convidou para redigir, juntamente com João Gouveia Monteiro e Luís Miguel Duarte, o primeiro volume da Nova História Militar de Portugal, consagrado à Idade Média (Lisboa: Círculo de Leitores, 2003). O convite não deixou de me assustar, pela enorme responsabilidade que acarretava. E porque o que viesse a escrever iria estar sob o escrutínio do nosso maior Historiador. Coube-me, a mim, redigir a síntese sobre a primeira parte, da Reconquista até o final do reinado de D. Dinis (1325). Na altura, José Mattoso já residia em Mértola, na Horta da Malhadinha, para onde se tinha deslocado depois de se retirar das lides universitárias. José Mattoso recebeu o meu original e devolveu-mo cuidadosamente anotado, a lápis, com a sua letra pequenina, comentando-o passo a passo. Conservo ainda esse manuscrito, com a versão original e os seus comentários. Foram muito poucas as alterações de conteúdo histórico que ele anotou. Mas foram bastantes as correções de português que sugeriu. Nunca impôs nada. Sugeriu sempre, deixando a última decisão para mim. Sempre no seu estilo cordato, educado, delicado, quase tímido. Transmitiu-me a sua forma depurada de escrita - quase que diria cisterciense, porque reduzida ao essencial - e isso ajudou a melhorar muito o meu texto.
Mais tarde, o meu percurso voltou a cruzar-se com José Mattoso, quando fui convidado para escrever o capítulo sobre “Memórias” na História da Vida Privada em Portugal, também no volume respeitante à Idade Média, coordenado por Bernardo Vasconcelos e Sousa (Lisboa: Círculo de Leitores, 2010). E isso deu azo a uma nova troca de impressões.
Em 2009 organizei, com o Museu Alberto Sampaio, em Guimarães, o colóquio “No tempo de D. Afonso Henriques”, para assinalar IX centenário do nascimento do nosso primeiro monarca (1109-2009). Por vicissitudes várias, o colóquio apenas decorreu a 22 e 23 de junho de 2010, portanto no limite de um ano marcado por várias comemorações… O volume, também ele com percurso atribulado, seria apenas editado em 2017 (No Tempo de D. Afonso Henriques. Reflexões sobre o primeiro século português. Porto: CITCEM, 2017). José Mattoso considerava que estava já demasiado cansado e afastado da investigação, mas acedeu a fazer a conferência inaugural: uma notável síntese sobre as relações externas do reino, ao longo do século XII (“Entre Oriente e Ocidente. Contactos de Portugal com o mundo nas origens da Nacionalidade”). E participou, atento e interventivo, nos dois dias dos trabalhos.Fig 1.
Mais recentemente, voltei a encontrar José Mattoso várias vezes. No congresso Do Império ao Reino. Viseu e o território entre os séculos IV a XII, organizado por Catarina Tente (Viseu, 12 a 14 de abril de 2016) Fig 2, onde tive o privilégio de jantar a sós com ele, no Hotel Grão Vasco, na noite de 12 de abril, numa refeição absolutamente memorável. Guardo a grata recordação de o ver na visita à «Cava de Viriato», subindo a muralha de terra do octógono, com o apoio da sua bengala, mas de forma lesta, tendo sido o primeiro a chegar ao cimo da estrutura térrea… Nesse mesmo ano encontramo-nos de novo em Mértola, onde decorreu o Encontro com a História, uma reunião científica organizada pelo Campo Arqueológico de Mértola em homenagem a José Mattoso, Juan Zozaya, Jorge de Alarcão, Cláudio Torres, António Borges Coelho e José Luís de Matos (Mértola, 17 e 18 de junho de 2016 - cujas actas foram publicadas na revista Arqueologia Medieval, vol. 14, 2018) Fig 3. Foi ocasião para mais dois dias de convívio, de trocas de impressões, de gratas memórias… Por fim, em 2017, encontrei-o de novo no colóquio «Da conquista de Lisboa à Conquista de Alcácer do Sal - 1147-1217. Definição e dinâmicas de um território de fronteira», organizado por Isabel Cristina Ferreira Fernandes e Maria João Branco (Lisboa/Palmela: Colibri, 2019). O Professor José Mattoso esteve presente em todas as sessões, participou activamente nas discussões e escreveu as palavras de “Introdução” ao volume. E julgo ter sido este o meu derradeiro encontro pessoal com o Professor José Mattoso.
José Mattoso era, como todos sabemos, um homem generoso. Sendo um homem tão profundamente religioso, nem poderia ser de outra forma. Provou-o em muitas ocasiões da sua vida. As últimas e mais públicas demonstrações dessa generosidade foram a doação da sua Biblioteca pessoal ao Campo Arqueológico de Mértola, e a sua deslocação para Timor Lorosae, para ajudar a construir os Arquivos da nova nação independente, com risco da sua própria vida. O seu último gesto de generosidade, talvez menos público, foi em inícios de 2023, quando eu e Luís Carlos Amaral o convidamos para ser Presidente Honorário da Comissão que está a programar as comemorações dos 900 Anos da Batalha de S. Mamede (1128-2028), que estão a ser organizadas pela Câmara Municipal de Guimarães. Ressalvando que, pelo seu frágil estado de saúde, não poderia dar contributo activo, acedeu, ainda assim, a ser o seu Presidente Honorário. Para nós, que estamos a gizar esse amplo programa de comemorações, não podia haver maior retribuição do que ter como Presidente Honorário quem tanto contribuiu para a renovação da História medieval de Portugal, o autor de A Primeira Tarde Portuguesa (o estudo que reposicionou a Batalha de S. Mamede na história portuguesa) e o autor da mais influente e determinante biografia do nosso primeiro rei. No dia 8 de julho de 2023 a Cultura Portuguesa ficou bem mais pobre. E eu perdi um Mestre.
Mário Jorge Barroca
José Mattoso: aprender de su magisterio y de su humanidade
Nunca pensé que a la admiración intelectual que sentía en mi juventud universitaria hacia el profesor José Mattoso se uniría, muchos años después, un sentimiento de sincero afecto personal. Admiración y afecto son, sin duda, el mejor resumen de mi experiencia con respecto a un hombre sabio que hizo de la humildad la expresión más característica de su personalidad.
Lógicamente yo no conocía esta faceta de su forma de ser cuando, siendo muy joven, tomé contacto con su obra. Eran los días del final de la Dictadura franquista y cuando apuntaban ya las primeras manifestaciones de la Transición democrática en España. En aquel momento, en el que no parecía concebirse hacer una historia alternativa a la más convencional que la basada en el mundo de las relaciones económicas, el profesor Mattoso nos enseñaba a los jóvenes universitarios españoles interesados en la historia social y política a reflexionar sobre ella desde una óptica global, renovadora y extraordinariamente atractiva. Mattoso nos mostraba un mundo de interrelaciones en que cabían todas las manifestaciones de la experiencia humana, incluida las artísticas, para explicar una realidad política debidamente contextualizada en el escenario social. Su interés, especialmente centrado en el monaquismo y las relaciones nobiliarias, nos hacía ver que el análisis histórico no era susceptible de divisiones artificiales en que cada registro tiene una supuesta y particular lógica interna. Pero para superar las estrecheces del reduccionismo interpretativo era necesaria una cabeza especialmente preparada y dotada de una inteligencia sobresaliente. Y desde luego el profesor Mattoso la tenía.
Pasado el tiempo, conservo con especial cariño una dedicatoria suya cuando tuvo la amabilidad de obsequiarme en 2009 con su libro Naquele Tempo. Ensaios de História Medieval, una espléndida obra en la que sus reflexiones se ocupaban de sentimientos, de creencias, de relaciones sociales, de concepciones políticas y de conciencias de identidad. Era, sin duda, un potente muestrario de su extraordinaria capacidad de análisis y de su talento para estimular la reflexión ajena. Por eso, el que aquel mismo año me obsequiara con una generosa recensión en la revista Medievalista acerca de un libro que acababa de publicar, fue para mi un regalo extraordinario.
Para entonces hacía ya algún tiempo que había entrado en contacto personal con el profesor Mattoso. Fue gracias a los Encontros sobre órdenes militares que en Palmela ha venido organizando la profesora Isabel Cristina Fernandes desde la década de los 90. En una de sus ediciones, ya en los primeros años del siglo, la profesora Fernandes y el profesor Luís Filipe Oliveira tuvieron la amabilidad de presentármelo. Apenas lo hicieron, y sin que pudiera ni imaginarlo, el profesor Mattoso empezó a interesarse por algunos de mis trabajos. Lo hacía con ese tono tan particular, una voz baja y grave, que traducía serenidad y, sobre todo, una gran autoridad que nunca imponía y de la que tenía por costumbre no hacer gala.
A partir de entonces mantuvimos el contacto no de manera frecuente pero sí ininterrumpida a través del correo. Sus orientaciones y sugerencias, siempre me han sido de una extraordinaria utilidad, y la manera de formularlas, desde el mayor de los respetos hacia el trabajo ajeno, las hacían aún más estimulantes. En este sentido me viene a la mente una de las veces que tuve la suerte de compartir con el profesor Mattoso una sesión científica, y que desgraciadamente iba también a ser la última. Fue en Palmela, pero en esta ocasión con motivo de unas jornadas que tuve la oportunidad de coordinar junto con la profesora Isabel Cristina Fernandes en diciembre de 2014. Mi intervención era sobre ideología de la guerra santa y el reino de León, y todavía recuerdo que a esas alturas la presencia de profesor Mattoso, siempre atento a las aportaciones de los demás, me imponía un extraordinario respeto. El afecto que ya desde hacía años le tenía no era impedimento para experimentar una cierta inquietud ante la presencia de uno de los mayores medievalistas contemporáneos. Cuando al final de la charla hizo ademán de querer preguntar, esa inquietud se hizo más intensa. Pensaba que, sin duda, no había estado a la altura. Pero sus amables palabras me tranquilizaron.
Esa humildad con la que expresaba sus opiniones y ese reconocimiento siempre dispuesto a valorar positivamente cualquier aportación ajena por insignificante que pudiera ser, le engrandecían aún más. No fue la única vez que experimenté esta grata sensación que sabía que compartía con todos los colegas portugueses o extranjeros que tuvieron la suerte de tratar con él. El trato con el profesor Mattoso, convertía la admiración, que inevitablemente despertaba, en afecto y entrañable reconocimiento. Fue al final de aquellas sesiones cuando me despedí del profesor Mattoso sin saber que sería la última vez que coincidiría con él físicamente. Ahora más que nunca soy consciente del privilegio de haberlo conocido y haber tenido la oportunidad de aprender de su magisterio y de su humanidad.
Carlos de Ayala Martínez
A memória de um Mestre: conversas com José Mattoso
Partiu, em 2023, um dos maiores medievalistas de sempre. Não serei a pessoa mais qualificada para analisar e valorizar o imenso legado de José Mattoso e o seu contributo para a renovação da História de Portugal, em múltiplas áreas temáticas, e outros o farão, seguramente, melhor do que eu. Da mesma forma, não tendo sido seu aluno, não me poderei pronunciar sobre essa outra faceta, de Professor, que o envolve.
Tive, porém, o gosto de o conhecer pessoalmente e tenho, como qualquer outro medievalista, o privilégio de ler a sua obra, refletindo sobre o que escreveu, e de a entender na sua infatigável demanda de compreensão do nosso passado medieval. E é nessa condição que partilho aqui o meu testemunho.
Os temas a que tenho vindo a dedicar a minha investigação conduziram-me, naturalmente, e há muito tempo, a alguns dos seus primeiros trabalhos, como L’abbaye de Pendorada: des origines à 1160 (1962) e Le monachisme ibérique et Cluny: les monastères du diocèse de Porto de l’an mille à 1200 (1968), bem como a outros, posteriores, em que abordou, especificamente, o monaquismo cisterciense, como Leituras cistercienses do século XV (1972), Cluny, Crúzios e Cistercienses na formação de Portugal (1982), A nobreza medieval portuguesa e as correntes monásticas dos séculos XI e XII (1982), O culto dos mortos em Cister no tempo de S. Bernardo (1991) e, ainda, O ideal de pobreza e as ordens monásticas em Portugal durante os séculos XI-XIII e Senhorias monásticas do norte de Portugal nos séculos XI a XIII (ambos de 1973). Através deles desenvolvi o gosto pela história religiosa (na vertente monástica) e, em particular, pela ligação entre os mosteiros e a aristocracia. Aí encontrei em embrião algumas das mais importantes ideias e conclusões da historiografia monástica medieval das últimas décadas, repetidas e confirmadas em sucessivos trabalhos de outros Autores, como a relação entre o desenvolvimento do monaquismo feminino português nos séculos XII e XIII e a correspondente conjuntura demográfica e social, marcada pelo aumento da taxa de feminilidade e a consequente dificuldade de encontrar casamentos favoráveis para algumas filhas de cada família, ideia que José Mattoso aprofundou em A nobreza medieval portuguesa e as correntes monásticas dos séculos XI e XII (1982), e que depois acabaria por ser demonstrada, com pormenor (ou seja, com o recurso a valores absolutos e a percentagens), por José Augusto de Sottomayor Pizarro, em Linhagens Medievais Portuguesas. Genealogias e Estratégias (1279-1325) (1997). Estamos, pois, perante um saber que fez escola.
Todos reconhecem José Mattoso como o historiador que, entre muitas outras coisas, preconizou a relação estreita, quase simbiótica, entre os mosteiros e a nobreza medieval, isto é, que estabeleceu uma ligação íntima entre a evolução social e as repercussões que essa evolução teve sobre os mosteiros. Assim, o elevado número de fundações numa determinada época, a proteção concedida a uns ou a outros mosteiros, a prodigalidade das doações, o encaminhamento das filhas e dos filhos para a vida monástica, alimentando as comunidades conventuais, ou, pelo contrário, a interferência permanente dos senhores laicos na gestão do património monástico, o desrespeito pelos direitos, os abusos e as vexações a que alguns padroeiros sujeitavam os mosteiros e os seus monges correspondem a ciclos que encontram a sua justificação na conjuntura económica e social de cada época. No dizer de José Mattoso, em Problemas sobre a estrutura da família na Idade Média (1982), “a história monástica não se podia compreender sem averiguar a trajetória social e política das famílias protetoras, cada uma de per si e no seu conjunto”.
É, de facto, esta visão dos mosteiros como espaços abertos ao exterior, que facilmente se deixam penetrar, e por vezes manipular, pelos interesses da sociedade em que se inserem, e em particular pelos interesses das famílias com que se relacionam, que a documentação medieval nos revela e que tanto me tem interessado ao longo dos últimos 25 anos. A obra de José Mattoso, não só sobre o monaquismo, mas como um todo, para melhor perceber a sociedade medieval e as suas nuances, onde o monaquismo estabelece as suas raízes, era, assim, para mim, como para qualquer outro medievalista, essencial. E por trás da obra existia, naturalmente, o Homem, que, como leitor e admirador, desejava conhecer.
É possível que já tivesse trocado algumas palavras com o Professor, por ocasião de algumas das suas conferências a que assisti, um pouco por todo o país, mas foi em Lisboa, no dia 31 de janeiro de 2006, que tive oportunidade de lhe falar mais demoradamente. Participava eu, então, no II Seminário organizado em sua homenagem e dedicado ao tema da Historiografia Religiosa Medieval (intitulado Rumos da historiografia religiosa de José Mattoso: “Inacabada composição” ou tecelagem do Sentido?), que decorreu na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sob a organização do Instituto de Estudos Medievais. No final da sessão sobre “Formas de vida religiosa: do ‘monaquismo ibérico’ aos mendicantes”, ofertei-lhe um livro que escrevera (e que correspondia à edição da minha dissertação de mestrado). O Professor José Mattoso leu-o atentamente, procurou o meu contacto e escreveu-me, então, dando a sua opinião sobre o que eu fizera e, sobretudo, incentivando-me a, em investigações futuras, aproveitar e valorizar informações menos prováveis de aparecer na documentação monástica, caso as encontrasse. Guardo, ainda hoje, não só a mensagem, mas, sobretudo, os ensinamentos que ela contém, e a orientação que se dispôs a dar sobre a forma de olhar para o passado através de uma perspetiva mais vasta, articulando os vários campos da ação humana, e sobre a escrita da História.
Trocámos, então, mais alguns e-mails a propósito do contexto de produção ou da autoria do Livro Velho de Linhagens. Não me pretendendo, obviamente, demorar no conteúdo, nem tão-pouco nos pormenores destes e-mails, a sua releitura evidencia uma dimensão de José Mattoso, já conhecida, é certo, mas que me parece ser importante de destacar. Para além da inesgotável obra que nos deixou, ou da sua atividade docente, com que inspirou gerações de novos investigadores, medievalistas, que se dedicaram às múltiplas temáticas da sua predileção, das referidas mensagens transborda a imagem de alguém que, nas suas próprias palavras, gostava de “conversar [...] acerca de problemas de investigação”, de discutir hipóteses interpretativas a partir, muitas vezes, das parcas fontes que chegaram até nós. E fazia-o, de facto, com uma humildade que nos deixa perplexos, face à sua grandeza, enquanto historiador, que não se opunha à sua disponibilidade para escutar os outros e para com eles conversar. Um registo (de humildade) que encontramos também na sua obra; por exemplo, na introdução à biografia de D. Afonso Henriques, da sua autoria, em que, num género de escrita próximo de uma conversa com o leitor, reconhece as dificuldades do ofício de historiador, particularmente para épocas tão recuadas da história (e que igualmente se aplicam a áreas temáticas pouco visitadas do passado humano, a que se dedicou, como a cultura ou os Poderes invisíveis), e explica, de uma forma bastante simples, o processo de construção da história, a partir da enorme escassez de fontes disponíveis, mostrando ainda a necessidade de sobre elas se exercer previamente uma crítica minuciosa e atenta (ou a verificação das condições de produção desses documentos). É, aliás, um aspecto a que já se tinha dedicado na obra A escrita da História e que viria a ser retomado, em modo de ensaio, em A História Contemplativa.
Esta é, pois, a imagem que retenho de José Mattoso. A de um verdadeiro Mestre. Porque, como já alguém disse, os nossos Mestres não são apenas aqueles com quem tivemos aulas, ou que orientaram os nossos trabalhos académicos, mas todos aqueles com quem, verdadeiramente, aprendemos o nosso ofício. A imagem de alguém que mostra uma abertura a todos, sem lógicas de escolas, interessado no contacto com interlocutores que, como ele, procuravam “descobrir um sentido para o caminhar da Humanidade através do Tempo” (A História Contemplativa).
Ao evocá-lo aqui faço-o, sobretudo, por isso, com um sentido de gratidão.
Luís Miguel Rêpas
A revolução de José Mattoso
É possível renovar o conhecimento histórico, mesmo quando o tema é um dos mais estudados e as fontes são todas bem conhecidas? O professor José Mattoso provou que sim. Antes dele, a formação do reino de Portugal no século XII tinha ocupado Frei António Brandão e Alexandre Herculano, para mencionar apenas dois dos grandes historiadores que trataram do assunto. Se havia tema histórico sobre o qual poderia parecer improvável dizer coisas novas, era esse. Mas em livros como Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros, Identificação de um País ou D. Afonso Henriques, José Mattoso mostrou como, colocando novas questões e usando técnicas diferentes, a história podia ser contada de outra maneira. Desse ponto de vista, o seu trabalho será sempre uma inspiração para qualquer historiador, seja qual for a sua especialização.
Poucos, como o professor Mattoso, souberam combinar tão bem a erudição de tipo germânico, assente na paleografia e na filologia, e a “Nova História” francesa dos anos 1960 e 1970. Mas José Mattoso não foi apenas um dos maiores estudiosos da Idade Média. Foi também um dos mais decisivos participantes no debate sobre Portugal e a identidade nacional, e o seu papel aí não foi menos revolucionário.
O debate sobre a identidade nacional foi muito vivo na segunda metade do século XX, quando a industrialização, a emigração e a integração europeia mudaram a sociedade portuguesa, e a ditadura salazarista e o ultramar chegaram ao fim. De repente, os velhos postais turísticos deixaram de condizer com o que se via na rua. Nunca pareceu tão urgente compreender o que nos distinguia e dava sentido como país.
Quase não houve então escritor, professor universitário ou colunista de jornal que não tivesse entrado nesse debate. Na passagem da década de 1970 para a de 1980, foi moda “pensar Portugal”. Mas “pensar Portugal”, para demasiados contribuintes da conversa, consistia em definir uma entidade homogénea, para depois lhe vestir a casaca ideológica mais ajustada. Foi a este debate que o professor Mattoso mudou os termos de referência. Contra a ideia de nação como uma essência eterna e uniforme, sustentada por “uma ideologia centralizadora” com reflexos como a “intolerância inquisitorial e o totalitarismo pombalino”, José Mattoso propôs “um puzzle de várias peças”.
Em 1985, José Mattoso começouIdentificação de um País, o seu grande ensaio sobre o Portugal medieval, pelas eleições do Portugal democrático: “A população portuguesa que olha com curiosidade os mapas publicados pelos jornais depois de cada acto eleitoral já se habituou a verificar, sem surpresa, a repartição dos votantes em dois grandes blocos, cujas fronteiras coincidem, grosso modo, com a divisória estabelecida pelas montanhas que prolongam o Sistema Central”. Não quero de modo nenhum exagerar, porque não é preciso, mas esta frase, ao mesmo tempo longa e singela, representa intelectualmente uma revolução tão grande como o 25 de Abril de 1974 foi politicamente.
José Mattoso introduzia assim, na historiografia e no debate sobre o país, a chave que Orlando Ribeiro desenvolvera emPortugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. O livro de Orlando Ribeiro era de 1945, e tivera várias reedições depois. Mas teve de esperar pelas eleições democráticas de 1975 para ser entendido, e por José Mattoso para que finalmente constituísse o ponto de partida para a compreensão do país. Foi aliás José Mattoso, segundo creio, quem reuniu e articulou pela primeira vez a reflexão geográfica de Orlando Ribeiro com os estudos de prática religiosa, estruturas de parentesco, linguística, tecnologia agrária ou opções políticas que vinham ao encontro da perspectiva de Orlando Ribeiro.
José Mattoso dedicou as primeiras páginas deIdentificação de um Paísa descrever os contrastes geográficos, antropológicos, linguísticos, religiosos e sociais que distinguiam o norte e o sul em Portugal, e que explicavam porque, quando puderam votar livremente, os portugueses apareceram como “dois grandes blocos” inscritos no território: um norte que votava à direita, e um sul que votada à esquerda. A partir daqui, foi possível concluir duas coisas. Primeiro, que era um erro identificar Portugal com uma homogeneidade: o país era composto de elementos diversos, articulados entre si por “vectores de integração” - um poder político unificado ou a circulação de pessoas. Segundo, que o pluralismo político, negado por tantos regimes e projectos partidários, decorria de uma pluralidade cultural e social intrínseca à sociedade portuguesa. Por isso, a democracia pluralista era a maneira mais adequada de os portugueses coexistirem em liberdade, respeitando os direitos uns dos outros. Em Portugal, qualquer projecto político que rejeitasse o pluralismo só poderia realizar-se através da ditadura.
Com José Mattoso, podemos compreender como a democracia pluralista, longe de ser uma simples importação estrangeira, faz parte da história de Portugal. Desse ponto de vista, a sua obra teve um efeito até certo ponto análogo ao da obra de Alexandre Herculano, que no século XIX também associou o constitucionalismo liberal ao passado português. O professor Mattoso fez uma história que de algum modo correspondeu à percepção e à valorização da complexidade social e cultural numa democracia pluralista, como a que se instituiu em Portugal no quadro da integração europeia entre os anos 1970 e 1980. A esse respeito, José Mattoso foi o historiador da democracia no século XX, tal como Herculano foi o historiador do liberalismo no século XIX.
Quando um dia se fizer uma história completa da consolidação da democracia em Portugal, a obra do professor Mattoso fará certamente parte dessa história, tal como faz parte da história da imensa renovação historiográfica em Portugal no fim do século XX e princípio do século XXI. Resta dizer que José Mattoso foi um dos protagonistas mais livres e generosos dessa renovação. Basta pensar na variedade de autores que, sem se prender com “escolas” ou capelinhas, convidou para as histórias colectivas que dirigiu, nomeadamente a História de Portugal, de 1994, ou a História da Vida Privada em Portugal, de 2006. Também aí foi exemplar.
Rui Ramos
“Olham por dentro”: uma antropologia contemplativa
É para mim difícil identificar o momento em que comecei, com assiduidade, a frequentar os textos de José Mattoso. Não tendo o ofício da historiografia, a visitação assídua da obra de José Mattoso justificou-se quase sempre pela minha necessidade de enraizar no devir histórico as questões socioantropológicas que trabalhei no âmbito da sociedade portuguesa contemporânea e as aproximações comparadas à morfologia do comportamento religioso. A amizade aprofundou-se já na última etapa da sua vida, a partir do convívio em contextos de vida que nos uniram por afinidade.
Talvez esta minha atenção à operação historiográfica tenha sido incrementada pelo impulso da leitura de Michel de Certeau, que cedo ficou tatuado na minha trajetória intelectual. As perguntas que Certeau deixou num célebre texto, L'opération historique (1974) - integrado no livro L'Écriture de l'histoire (1975) -, sempre me pareceram essenciais para qualquer disciplina no âmbito das ciências sociais e humanas: O que é que o historiador está a fazer quando “faz história”? Sobre que é que ele trabalha? O que é que ele produz? As perguntas continuam a fazer sentido se se substituir o historiador pelo antropólogo e a História pela Antropologia.
A partir das minhas próprias preguntas, provavelmente li coisas diversas daquelas que o historiador encontra na biblioteca de José Mattoso. Sempre me interessou o que nos seus estudos podia descobrir como núcleo antropológico de indagação. Em particular, a compreensão das correlações entre estrutura e acontecimento, entre instituição (norma) e desejo (experiência). Esse tipo de leitura foi alimentado por aprendizagens diversas, favorecidas pela assídua frequência de autores como Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne, que reivindicaram a necessidade de uma antropologia histórica para chegar à redescoberta da singularidade do ser humano grego. Recordo que em 1958, no seu livro Mythe et pensée chez les Grecs, Vernant explorou uma leitura dos mitos gregos confrontando-se com antropólogos como Lévi-Strauss. Do mesmo modo, a antropologia de Lévi-Strauss influenciou vincadamente o trabalho de Vernant e Detienne sobre as práticas culinárias gregas em La cuisine du sacrifice en pays grec (1979).
Num movimento comparável, mas inverso, recordo como foi para mim importante conhecer o lugar social das “relíquias” e a ritualidade própria das cerimónias do adventus, nas sociedades da antiguidade tardia, para melhor compreender objetos e terrenos de estudo contemporâneos, como o fenómeno da “Virgem Peregrina” ou as viagens de João Paulo II, o “Papa peregrino”. Ou como foi decisivo compreender historicamente a mística jacobeia para estudar hoje as interceções entre a peregrinação e as práticas lúdico-desportivas do trilho. Ou ainda, como foi marcante revisitar o conceito de contrafactura - presente nos processos de composição musical no século XVI - para estudar o problema da delimitação do sagrado nos labirintos da criação musical contemporânea, quando se “reutiliza” o vasto stock simbólico da memória religiosa europeia. Recordo ainda como foi crucial para mim ler o que José Mattoso escreveu sobre o silêncio monástico ou o “dom das lágrimas”, com o intuito de compreender o lugar do corpo expressivo na configuração do comportamento religioso. O mesmo se diga do impacto da sua revisão das origens do sistema paroquial ibérico, para poder trabalhar o problema das práticas contemporâneas de territorialização do religioso.
Julgo que esta é uma outra forma de praticar uma Antropologia multisite. A necessária interação de escalas (global, local, central, periférica, regional, nacional, transnacional) exige, na minha opinião, uma extensão do conceito multisite ao plano do devir histórico. Neste contexto, mesmo sabendo que esta ideia levanta muitas discussões na comunidade da História, sinto alguma proximidade do que Nicole Loraux ou François Dosse escreveram sobre o uso metódico do anacronismo.
Num ensaio que recolheu textos dispersos, entre 1996 e 2013, José Mattoso retomou a sua visão de uma “história contemplativa”. Na sua perspetiva, a escrita da História não pode reduzir-se à crítica analítica, precisa da escala própria da visão contemplativa. Em última análise, para o José Mattoso, é esta perspetiva que favorece a compreensão da história-vivida. Nesse sentido, arriscaria afirmar que a Antropologia das múltiplas escalas se pode abrir ao mesmo desafio, tornando-se uma Antropologia contemplativa.
Talvez a melhor transcrição deste desafio se encontre no poema que José Tolentino Mendonça dedicou a José Mattoso, em Estação central (2012). Meditando sobre o tempo e os lugares dos sábios, capazes de olhar dentro dos acontecimentos, trabalhados pela vulnerabilidade e pelo silêncio. Em 2013, no meu ofício regular de compositor, tive a oportunidade de trabalhar musicalmente sobre este texto. O trabalho composicional sobre este poema é a melhor homenagem que posso prestar ao sábio e representa aquilo que de mais contemplativo tem a Antropologia que persigo.
Os justos7
Começam o dia louvando o imperfeito:
O tempo que se inclina para o lado partido
as escassas laranjas que se tornam
amarelas no meio da palha
as talhas sem vinho
Olham por dentro a brancura da manhã
e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício
louvam o vulnerável e o inacabado
Quando Deus voltar
não terá de arrombar todas as portas
para José Mattoso
Homenagem a José Mattoso
Olham por dentro
A partir do poema “os justos”, de José Tolentino Mendonça, dedicado a José Mattoso, in Estação central, Lisboa: Assírio&Alvim, 2012, 13. Fig 4
Alfredo Teixeira
Memórias familiares
Não há nada neste mundo que possa preencher todos os nossos desejos, todas as oportunidades que a vida nos oferece. a vida oferece tantas…só podemos responder a uma parte muito pequena dessas. Isto é o que me ensina uma Reflexão sobre o Ser, uma reflexão sobre Deus, Sobre a “espantosa realidade das coisas”. Fig 5
Entrevista de Anabela Mota Ribeiro a José Mattoso
Jornal Público. Outubro de 2010
Estão sentados à soleira dos espaços trabalhados devagar pelo silêncio