1. Mediação ou imediação?
Entre um vestígio e um traçado existe uma relação de indicialidade mais ou menos frágil, que resulta numa intencionalidade distintiva. Nos ambientes e meios que incorporam codificação e distância, como são os meios digitais, a indicialidade parece mais sofisticada ou então ausente (Pereira & Marcos, 2020). A “mediação” ou a “imediação” pode ser um dos debates reatualizados nas condições presentes: são condições mais distantes, seja pelo confinamento pandémico, seja pela digitalização das intermediações.
2. Código do confinamento
Na realidade confinada, as relações são de facto mediadas digitalmente. O corpo torna-se distante e a distância é obrigatória, a par com a imobilidade legislada e sanitária. O protestos corporais ganham outros sentidos por serem hoje mais difíceis ao contrário do que as intervenções no espaço público deixavam expresso através da presença (Lopes, 2016; Rekalde Izagirre, 2013). A relação do autor com a sua obra, tantas vezes metarreferencial, das plasticidades ao cinema (Chinita, 2013).
3. Reformulação obrigatória no contexto neo-urbano
As questões têm de ser reformuladas, sobretudo pela alteração na relação com os referentes. A telemática mediadora serve também como vínculo afetivo e ao mesmo tempo a alternativa para uma proposta de resgate das palavras (Alvelos, Canha, São Simão, 2015), no contexto neo-urbano, que é aqui proposto como conceito operacional para uma arte contemporânea em contexto pandémico.
4. Elementos para uma arte neo-urbana
A experiência artística contemporânea é assim neo-urbana, com significantes confinados. Como se caracteriza este contexto da “arte neo urbana” em contexto pandémico:
Exclusão da intermediação direta, da relação presencial com o público;
Propostas solitárias, com o desaparecimento de grupos e coletivos;
Cancelamento de exposições, com virtualização de conteúdos;
Ausência do corpo performativo, presença do corpo mediado;
Regressão temática em direção ao espaço doméstico e à proximidade íntima do autor;
Tendência para uma auto-referencialidade subjetiva e testemunhal;
Certa despolitização das propostas, no sentido tradicional, em benefício das narrativas quotidianas e da expressão solidária: política da solidariedade.
Suspensão de expressões alternativas durante períodos variáveis, a tatuagem, o grafitti, a performance.
Regresso das metanarrativas editoriais, das plataformas mediadoras: a retoma do livro de artista, por exemplo.
Suspensão da globalização da arte urbana, com a menor circulação de pessoas por via aérea
5. Catorze artigos em contexto quase neo-urbano
O artigo “O sentido constelar na obra de Alberto Greco” de Angela Grando & Rodrigo Hipólito (Vitória, Espírito Santo, Brasil) debruça-se sobre o trabalho interventivo de Alberto Greco (1931 1965), enquadrado, historicamente, no movimento Informalista Argentino. Em 1963, o artista fixou-se numa aldeia espanhola onde interveio junto dos habitantes, mobilizando-os, de todas as idades. Num conjunto de rolos de papel higiénico, o “Gran Rollo Manifiesto del Arte Vivo-Dito” com anotações, rabiscos e desenhos, uma letra de tango, versos, e outras expansões e expressões artísticas.
Bruna Raquel Alves Maia Lobo (Portugal), no artigo “A epistemologia do Turismo pela arte: O Congresso Criadores Sobre Outras Obras,” utiliza como corpus as comunicações presentes num congresso de artistas já com 10 edições para pesquisar o modo como a viagem é apresentada ou se representa no trabalho dos artistas. Pesquisou nos seus espessos livros de atas, cada ano com cerca de 130 comunicações, as palavras “turismo,” “turista,” “viagem” e “viajante” com a expectativa de encontrar expressões que pudessem ser usadas na sua proposta de epistemologia do turismo pela arte. As actas do “Congresso Criadores Sobre outras Obras” ofereceram o manancial para a reflexão e pesquisa empírica, devido a particularidade de ser um congresso destinado a artistas e criadores, onde os autores devem ser artistas ou criadores graduados, que discursam sobre a obra de outro artista ou criador. Bruna Lobo descobre a maior incidência da variável “viagem” com 66%, seguida de “viajante” com 18%, entre outras. Descobre artistas influenciados pelo estudo de viagens, descobre recursos como o diário de viagem, “desde a visão da viagem como um ato pedagógico através da visita ao passado, à viagem moderna incorporada à narrativa do diário para reviver as explorações do passado.” Também as expedições científicas são referidas, acompanhadas pelo artista viajante para desenhar a fauna e a flora ou o artista visual como um viajante no espaço e no tempo, predisposto às adversidades.
O artigo “Isabel Valverde: habitar os Lugares Sentidos da performance digital,” de Clara Gomes (Portugal) aborda as abordagens críticas às hiperrealidades e aos avatares. É o projecto de Isabel Valverde, “Lugares Sentidos /”Senses Places” (2010-2020), com Todd Chochrane (neozelandês, engenheiro e investigador na área da informática) uma ciberformance participativa explorando a consciência corporal e a convergência-divergência entre virtual e real. Nesta intervenção os performers e o público distribuem-se pelo planeta e pelo mundo virtual. Isabel propõe o conceito da “(r)evolução do corpo somático” e a oposição ao domínio tecnológico através de uma somatização da tecnologia.
Eduardo Vieira da Cunha (Brasil), no artigo “Fernanda Gassen em foto--eventos: banquetes e convescotes entre a literatura e a pintura,” apresenta a série fotográfica meta-referencial de Fernanda Gassen (n.1982, São João do Polêsine, Rio Grande do Sul, Brasil), especificamente desenvolvida para o seu doutoramento em Artes Visuais. Gassen coligiu pinturas de piqueniques e banquetes da história da arte, de Manet, Monet, e passando pela literatura (Baudelaire em O Pintor de Vida Moderna) bem como a fotografia contemporânea de Jeff Wall. É apresentada a sua metodologia de três etapas: a mise-en-scène, a mise-en-place e a mise-en-cadre, com a proposta de explorar as relações de convívio que implicam o ócio e a alimentação entre as novas ambiências modernas do jardim onde também se interroga a vaidade.
O artigo “A Cidade dos Piratas: Reflexo de Uma Sociedade,” de Eliane Muniz Gordeeff (Brasil), aborda a longa-metragem em animação, “A Cidade dos Piratas” (2018), do brasileiro Otto Guerra (n. 1956, Porto Alegre, Brasil). A Cidade dos Piratas foi vencedora dos prémios de Melhor Roteiro e de Direção, no Festival de Cinema de Vitória (2018), recebeu Menção Honrosa no 46º Festival de Cinema de Gramado, e de Melhor Filme no Múmia 2018. Internacionalmente, foi reconhecido como o Melhor Filme no Anima Latina (Argentina), no Cinanima 2019 (Portugal), e no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano 2019 (Cuba), além de receber Menção Honrosa do Júri de Estudantes do Ojo Loco Festival de Cinéma Ibérique & Latino Américan (França). O filme intercala imagens animadas e reais, de entrevistas com Laerte Coutinho, a cartoonista brasileira conhecida pelas tiras revista “Chiclete com Banana” em que descreve a sua decisão em assumir a sua personalidade feminina.
Isabel Ribeiro de Albuquerque (Portugal), no artigo “Entre a Razão e o Sentimento: Ana Albuquerque, uma joalheira contemporânea do Renascimento,” apresenta a obra de Ana Albuquerque (n. 1964, Portugal) formada no curso de Escultura na Escola de Belas Artes de Lisboa (1994), e nos cursos das escolas de joalharia do AR.CO e Contacto Directo. É apresentado o projeto “meetjewelry,” de 2003, projeto a partir do qual a artista passa a assinar meet. Explorando a fronteira público e privado, a interior e exterior, Ana interpreta o decote em três dimensões, em peças que dialogam com o suporte vestido / nu.
O artigo “La pintura revelada: intertextualidad y distorsión en la obra de Pedro Morales Elipe,” de Javier Garcerá Ruiz & Juan Manuel Cabrera Cruz (Espanha), debruça-se sobre as pinturas da série “vida quieta,” de Pedro Morales Elipe (n. 1966, Espanha). Como nos “parergon” Morales retoma as potências da alegoria e da natureza-morta, para as recuperar em novas formulações. A distorção e a ambiguidade suportam estas pinturas anichadas na intertextualidade e na remissão alegórica e também assim, textual, nas imagens.
Joedy Bamonte (Brasil), no artigo “Desejo motivo: imagens do incorpóreo na obra de Carolina Paz,” aborda a série “Desejo Motivo”, respostas pictóricas a 44 cartas, narrativas pessoais propostas por Carolina Paz (n. 1976, São Paulo, Brasil). Composta por 44 telas, a série desenvolvida respondeu a uma chamada pública divulgada na fachada do ateliê da artista e na internet. Das cartas recebidas, via correio ou em mãos, as obras concretizaram-se segundo o seu imaginário.
O artigo “Anamorphoses: projeções cíclicas, deformações geradoras, plasticidade sonora em Anamorphoses V e VII de Isabel Soveral,” de José Luís Postiga (Portugal), debruça-se sobre as composições musicais de Isabel Soveral (n. (1961, Porto). Formada no Conservatório Nacional de Lisboa, onde estudou com Jorge Peixinho e Joly Braga Santos, realizou em 1993 a peça “Anamorphoses I,” para clarinete e eletrónica, realizada em 1993, primeira de uma série, sendo a mais recente “Anamorphoses IX,” para violoncelo e orquestra, de 2017. Soveral explora a dialética entre o original e seus reflexos. Explora-se a oposição à linearidade, através de difrações e anamorfoses, deformações que são pesquisadas na dinâmica da textura orquestral.
Marcos Rizolli & Leslye Arguello (Brasil), no artigo “Cores de pele: o projeto Humanae de Angélica Dass,” apresenta o impactante projeto fotográfico de Angélica Dass (n. 1979, Rio de Janeiro, Brasil). Esta fotógrafa formada em Artes na UFRJ e em Fotografia em Espanha, tendo trabalhado em revistas como Glamour, GQ e Marie Claire. Depois de diferentes projetos, como “#yosoysomos” (sobre mulheres imigrantes), “280 chibatadas” (racismo), “Desenredo” (uma menina negra desembaraçando o seu cabelo), “Vecinas” (mulheres do Mali em Espanha), entre outros, lança o projeto “Humanae” sobre as cores dapele. O fundo dos retratos é passado à cor PANTONE do nariz. À chamada respondem voluntários sem distinção ficando as imagens disponíveis na internet para um mosaico humano. O artigo “O objeto incômodo,” de Mauricius Martins Farina & Marta Luiza Strambi (Brasil), debruça-se sobre a obra de duas artistas: Erika Verzutti (n. 1971, São Paulo, Brasil) e Lorena D’Arc (n. Minas Gerais, Brasil) que exploram objetos incómodos nas suas diferentes propostas.
Paula Almozara (Brasil), no artigo “Imagem impressa entre o transitório e o perene: reflexões a partir da produção gráfica de Graciela Machado,” debruça-se sobre gravura contemporânea. Graciela Machado é licenciada pela Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) com mestrado em Gravura pela Slade School of Fine Art e doutoramento em Desenho pela Facultad de Bellas Artes Universidad del Pais Vasco, e é coordenadora do “PURE PRINT” encontro internacional de gravura (PURE PRINT 2013, PURE PRINT 2014, PURE PRINT 2015, PURE PRINT 2017) sendo a última edição na Universidade Complutense, em Madrid. Esta plataforma de investigação internacional investiga o campo expandido da gravura como na instalação “Folhas da Espera,” apresentada na em 2019 na Sala Comum da Reitoria da Universidade do Porto em diálogo com a obra de Agustina Bessa-Luís. Exploram-se porosidades e fissuras, texturas de granitagem da superfície da matriz, através da autografia.
O artigo “El arte efímero, social y didáctico de Anna Ruiz,” de Ricard Ramon & Amparo Alonso-Sanz (Espanha), apresenta as esculturas instaladas de Anna Ruiz Sospedra, numa perspetiva A/R/Tográfica (Springgay, Irwin, Leggo, & Gouzouasis, 2008). A peça “De pesos i conflictes” apresenta cinco pessoas com mochilas em forma de casas. Existe um compromisso interventivo e social que explora a diversidade sexual, a imigração, entre outras questões, sem abandonar uma retórica alegre e aparentemente superficial, lúdica. Diz Ricard Huerta (2018:74):
Al acercarnos a la visión del cuerpo que transmiten las obras de Anna Ruiz Sospedra, el alumnado de Magisterio puede repensar la imagen del binomio masculino y femenino, eliminando así prejuicios raciales, sociales o religiosos, urdiendo nuevas posibilidades de representación de los cuerpos
Teresa Isabel Matos Pereira (Portugal), no artigo “Ativismo, transitoriedade e feminismo na obra de Karen Dolorez” apresenta a exploração crítica das artes de agulha tradicionais como o crochet assumindo um sentido político no contexto da estética feminista, ampliada à escala do espaço urbano e também da internet. A peça “Ceci n’est pas un artisanat” integra uma composição de street art em crochet. O desconcerto permanece em obras como “Mil Lábios,” de 2017, ou “Girls Gathering,” de 2018, que ao representarem, respetivamente, a vagina e um conjunto de seios, evocam um corpo feminino, erótico, como é presente nas obras “Queen of Hearts,” de 2017 ou “Ventre Livre,” de 2016, ou “#precisamos falar sobre aborto” de 2018, ou ainda o projeto “#asfloresdapele,” de 2016 explorando questões tais como o feminino, o ativismo e o poder contemporâneo.
6. Ecrãs para uma nova vizinhança
As propostas são de transição e de testemunho: hoje os corpos distanciaram-se, as presenças são mediadas pelos cuidados e pelos aparelhos, e os ecrãs tornaram-se as janelas para uma nova vizinhança. A realidade artística não será já expansiva, mas sim mais introspetiva. Os discursos são mais curtos, há mais tempo, mas o tempo é mais empenhado, dividido e limitado (Escuder Viruete, 2015). As propostas são fragmentárias e de menor espessura relacional. O artista torna-se menos visível, mais escondido, como o público a quem se dirige.
O medium volta a ser a mensagem.