Introdução
Ao longo do século XX, e prolongando-se neste século, o Direito à Educação tem sido uma das bases fundamentais da construção do Estado Social nos países que, em velocidades diferentes, lograram construí-lo (Piketty, 2014, p.600). Com avanços e retrocessos, a tentativa de concretização da Educação como direito universal, como processo permanente e multidimensional de valorização pessoal e de construção coletiva, tem sido contraponto à abordagem exclusiva, meritocrática e individualista que, com um enfoque específico em terreno educacional, decorre da escalada do neoliberalismo, com o homo oeconomicus como centro (Sacristán, 2001, p. 56). Apesar do trabalho crítico, que desmente sucessivamente o plano de uma pressuposta igualdade de uma comunidade educativa regida pela hierarquização e por ela hierarquizada (Piketty, 2014, pp. 604-606), a lógica neoliberal persiste em perspetivar a educação como serviço, sujeito a critérios de eficiência e de produtividade decalcados de uma economia de mercado (Pacheco, 2001, pp. 9-18). Decorrente da mesma lógica, os padrões do pragmatismo e do critério da “utilidade” do conhecimento e dos saberes invadem o discurso educativo, proliferam nas suas leis e ensaiam definir o tempo da educação.
O presente artigo visa auscultar os efeitos de um predomínio de um discurso de eficiência que, vindo do exterior, interfere no modo como se perspetiva a educação, no que designamos por imperialismo do útil e seus efeitos no plano educativo (1). Numa segunda parte (2), assumindo a educação como um direito fundamental, retomaremos algumas dimensões críticas suscetíveis de devolver às práticas e aos discursos educacionais o sentido humanizador e socialmente justo que se reclama a uma educação para o presente e futuro.
Tempo, mercado e imperialismo do útil
Ao desenvolver a sua célebre formulação de “modernidade líquida” (Bauman, 2000), conceito a partir do qual descrevia o presente eterno da sociedade de consumo, Zygmunt Bauman assinala a importância capital da categoria “tempo” (pp. 107-149). O momento e o momentâneo, o instante e a breve passagem são descritores temporais para descrever a rápida obsolescência dos objetos traduzida em padrões de consumo (100), as várias modalidades do convívio humano (147) e o próprio mundo do trabalho (169). O manuseamento técnico do tempo reconfigura a modernidade pela medida do instantâneo e o tempo, maleável, corresponde à fluidez de uma vida em que, individual ou coletivamente, nada se fixa. O mundo contemporâneo está em constante transformação, tendo na mudança a única constante (Harari, 2018).
Na base desta dinâmica encontramos descobertas científicas e tecnológicas, mas também conflitos, mudanças sociais, que se relacionam entre si ao sabor das contradições inerentes à crença no progresso ilimitado forjado pela modernidade (Pereira, 2020, p.145) e que hoje herdamos com particular evidência. Esta devoção ao progresso ilimitado, concretizado no predomínio da técnica e de que a tecnocracia é o correlato político, produz na realidade social um efeito mais evidente do que nunca: gerando avanços efetivos no conforto e na qualidade de vida, por outro lado agrava desigualdades sociais, desequilíbrios gritantes e consequências ambientais, que põem em causa o próprio futuro do planeta, com um potencial destruidor a que nenhuma educação responsável pode ficar alheia (Pereira, 2020, p.146). Tempo e progresso, e a subjugação do tempo às lógicas tecnocráticas de evolução, estão hoje mais do que nunca impressas como debates fundamentais nas sociedades atuais. Da esfera do trabalho aos espaços de sociabilidade, da sociedade à educação, prevalece a pressão de uma temporalidade subjugada ao primado do instantâneo, associada ao critério generalizado do “tudo funciona” (Pereira, 2020, p.157).
No seu conjunto, este fenómeno originou alterações na maneira de encarar a própria vida, num mundo globalizado sob a prevalência de um princípio mercantil (Santos, 2002), na forma de promover o desenvolvimento profícuo dos diversos sistemas, e em relação ao papel e lugar do ser humano quanto ao seu desenvolvimento.
Produtivismo e educação
Admitindo que a configuração e a disposição de um sistema depende de uma evolução ideológica, que garante condições para a manutenção do status quo (Boltanski & Chiapello, 2007, p.20), pressupondo que este suporte ideológico sobrevive em frequente parasitação dos mecanismos que o limitariam (p.21), não se estranha os efeitos educativos do predomínio desta fugacidade do tempo, que é o tempo do consumo e da crença na evolução e na acumulação infinitas. Considerar, por exemplo, orientações educativas recentes de organismos como a OCDE ou União Europeia é encarar efeitos, variações e prolongamentos desta conjuntura, com a submissão dos discursos e das práticas educativas ao “empreendedorismo” (União Europeia, 2016), à “empregabilidade” (União Europeia, 2018) e à lógica empresarial transposta para os desígnios da educação. Atravessamos, pois, um momento de particular valorização do que serve para alguma coisa, do privilégio da utilidade imediata, levando a que o que não contribui de forma efetiva e visível para um benefício económico-financeiro seja esvaziado de valor e considerado inútil. Isto mesmo é referido por Ordine (2018), quando afirma que o predomínio do lucrativo interfere institucionalmente nos saberes e nas áreas disciplinares, secundarizando ou sacrificando as menos afoitas aos ganhos imediatos e aos desígnios comerciais (pp. 9-10).
Com o primado das práticas e dos saberes validados a partir do que é considerado útil e lucrativo, a educação tem, consequentemente, vindo a sofrer alterações consideráveis. A este propósito, Reis (2013) defende que a função da escola que almejava o aperfeiçoamento e desenvolvimento das pessoas em relação, ou seja, em resultado de um processo de maturação conjunto com outras pessoas, deixou, em grande medida, de ser priorizado, levando a que se sobrevalorize o conhecimento que sirva as necessidades do mercado de trabalho. O mesmo autor reforça que esta mudança leva a que haja uma “entrega acrítica ao sistema”, à “generalização da apatia e no triunfo do relativismo (…), ao individualismo rampante, ao egoísmo, (…) a par do desenvolvimento de mecanismos de uma certa regulação do vazio existencial correlativo” (p.123).
Tem havido uma mudança nos discursos educacionais, agora cada vez mais voltados para modelos gestionários, “que legitimam uma nova ordem racional baseada no mercado, nos setores privado e produtivo, na competitividade económica e na gestão centrada no cliente” (Lima, 1997, p.53).
A educação contábil, expressão usada por Licínio Lima, remete-nos para uma educação normativa, objetivável, passível de ser medida e avaliada, ficando fora da equação o que é subjetivo (Lima, 1997), qualitativo ou relacional. De modo a atingir níveis máximos de produtividade e eficiência tem-se optado pela privatização de grande parte dos sistemas, o que faz com que “o domínio público e os setores sociais e educativos” sejam “objeto de um processo de despolitização, subjugados a uma agenda tecnocrática e gerencialista de tipo hiper-racional” (Lima, 1997, p. 52). Este facto origina decisões políticas tomadas segundo estes critérios, levando a que as pessoas pouco ou nada participem nestas tomadas de decisão, ao serem decisões universais, ou seja, iguais para todos: uma espécie de “McDonaldização da Sociedade”, onde se inclui a educação e a universidade (George Ritzer, 1996, citado em Lima, 1997, p.52). A liberdade académica acaba por ser alterada, na medida em que se dá maior importância ao sistema produtivo do que ao conhecimento (Montané & Serdio, 2010).
Um dos propósitos atribuídos à educação é a necessidade de flexibilidade para se conseguir lidar com as transformações que a todo o momento ocorrem para uma maior adaptabilidade e melhor vida em sociedade (Fernandes, 1990; Montané & Serdio, 2010). Acontece que, nas escolas e universidades, se por um lado se pretende que os/as estudantes sejam pessoas conscientes, que participem de forma ativa em busca de um bem comum, por outro lado ganha força considerável a ideia de que as instituições educativas têm como missão prioritária contribuir para o setor produtivo (Lima, 1997; Montané & Serdio, 2010). É possível perceber que existe aqui uma dualidade difícil de equilibrar, até porque o enfoque no ganho económico continua a ser superior às necessidades das pessoas e da própria sociedade (Giroux, 2011; Lima, 1997).
De acordo com Lima (2019, p. 3), este processo resulta de uma agenda política “e cultural de expansão e legitimação da empresa, do mercado e do mundo dos negócios a todas as áreas da atividade humana, incluindo a educação”. Esta é encarada como instância de formação de pessoas qualificadas que promovam e alimentem a competitividade do mercado de trabalho, para a obtenção de lucro (Lima, 2019). Muitos discursos políticos acabam, assim, por desvirtuar o conceito de educação, relegando a importância da relação neste processo e valorizando os processos de aprendizagem individuais que sejam úteis economicamente (idem). Esta mesma lógica acaba por desdobrar o critério da competitividade entre indivíduos no interior do sistema para a concorrência interinstitucional, favorecendo o gerencialismo, definido como a adoção de recursos de gestão empresarial para as instituições educativas.
É crucial pensar-se no que vai sendo deixado para trás ao ser promovida esta centralidade e predomínio, no cerne das políticas educativas, e que consequências são trazidas por este paradigma gerencialista de conceber a educação. Há que refletir acerca do facto de que nem todas as pessoas têm o mesmo ponto de partida, os mesmos recursos e meios para atingir o ideal produtivo que a sociedade defende e até impõe. Há ainda muitas pessoas sem acesso a bens essenciais e dados como adquiridos por muitos, como água canalizada, acesso a cuidados de saúde, emprego que ajude a suprimir necessidades alimentares, outras despesas essenciais à vida e que permitem uma vida digna e segura. Para além destes desequilíbrios, fatores substantivos de injustiça social e educacional, importa garantir a plenitude de uma educação que vale por si mesma, para lá do império do útil e do produtivo.
Prisioneiros do tempo
O crescente predomínio do padrão competitivo do neoliberalismo, para além das mencionadas consequências na conceção e práticas educativas, traz igualmente inúmeros e expressivos impactos nas restantes componentes da vida humana. O caminho faz-se em busca de maior quantidade, ficando a qualidade num plano longínquo, e a rapidez acaba por ser o motor da vida. Os seres humanos ficam ao serviço da economia e não o contrário (Honoré, 2006).
O trabalho, o tempo produtivo do trabalho, é priorizado e o seu excesso passa a ser algo comum e naturalizado. A vida das pessoas ressente-se a vários níveis, fruto das poucas horas de descanso, alimentação descuidada, pouco tempo para dedicar a laços sociais e afetivos, consumo de estimulantes para manter o ritmo e a velocidade. Os níveis de stresse e ansiedade passam a ser uma constante, podendo originar sintomas e problemas físicos, psicológicos e sociais (idem). Esta busca incessante está a influenciar, negativamente, a saúde física e mental das pessoas, assim como as relações com os outros, por não haver tempo realmente livre, à medida do tempo da fruição e do lazer (Araújo & Monteiro, 2020). O aproveitamento da própria vida fica condicionado, porque há muitos acontecimentos, vivências que acabam por passar ao lado, por ser tudo tão fugaz, sempre a correr, levando a que a vida seja vivida de forma superficial (Honoré, 2006). A aceleração da vida sucede pela dificuldade em começar e terminar, dando lugar permanente ao inacabado, ao incompleto, pela busca incessante do novo, o que torna muitos dos momentos iguais entre si, porque não são realmente vividos e desfrutados, criando um tempo descontinuo, sem lugar à demora (Han, 2016).
O ser humano fica prisioneiro do tempo e da produtividade, sendo que mesmo a atividade de pensar está ao serviço do resultado (Arendt, 2001; Ordine, 2018). O capitalismo acaba por funcionar como força opressora e a própria consciência fica imersa nos seus valores e, por isso, condicionada (Freire, 1994).
É importante pensar que a realização de outras atividades, para além do trabalho, sem função utilitária, são extremamente importantes para o desenvolvimento do pensamento, da imaginação e para uma boa convivência entre as pessoas, e entre estas e a natureza. A pintura, a música, o cinema, os teatros, entre tantas outras artes, permitem pensar, sonhar, idealizar, sentir, aprender. Também a literatura permite “viajar” e perceber como, ao longo dos tempos, a forma de agir e pensar evoluiu e pode ajudar, igualmente, a combater ideias extremistas e de intolerância (Ordine, 2018). Ter contacto e desfrutar da natureza remete para o belo, o infinito, e para a noção de que o ser humano faz parte de um mundo e de uma realidade que existe e tem vida muito para além de si, no respeito de todas as outras espécies. Valorizar igualmente as áreas do saber como as Ciências Sociais e Humanas, cujo objetivo é desenvolver o pensamento, a sensibilidade e dar importância ao outro e à vivência pacífica no mundo é crucial (idem). Estas e outras atividades também permitem parar, abrandar o ritmo e ter oportunidade para descobrir algo novo, usufruir da calma e do silêncio (Kagge, 2017).
Embora sejam atividades extremamente importantes e saudáveis, ficar sem estímulos ou dedicar tempo e energia a ações que não tragam benefício concreto e imediato pode ser extremamente assustador, e os comportamentos das pessoas, condicionados pelo ritmo imposto, denotam isso mesmo. Mais do que agir, reagem, e por vezes de forma agressiva pela impaciência e frustração ao sentir que o tempo não chega, não estica, e que leva a uma dificuldade em valorizar o que se tem, pois o pensamento está sempre centrado no que se pode vir a ter mais (Honoré, 2006). A procura constante de novos objetivos, atividades, que captem a atenção para o exterior, permite desviar a atenção de nós mesmos e, consequentemente, de amadurecer, de evoluir, de ser mais (Kagge, 2017).
De acordo com Han (2016, p. 70) “a vida é qualquer coisa mais do que vegetar, qualquer coisa mais do que estar simplesmente desperto”. Neste sentido, só com a existência e realização destas atividades se podem almejar cidadãos responsáveis, capazes de colocar “de parte os seus egoísmos para abraçar o bem comum, para exprimir solidariedade, para defender a tolerância, para reivindicar a liberdade, para proteger a natureza, para apoiar a justiça” (Ordine, 2018, p. 92). Só assim será possível pensar numa forma de conceber um mundo melhor, mais humano, solidário e justo, e aprender a caminhar em conjunto e não individualmente, de modo que seja possível reduzir, e idealmente erradicar, as inúmeras desigualdades existentes (Ordine, 2018). Quando a importância dada à economia suplanta a importância dada às pessoas e à preocupação com a sua proteção, a humanidade começa a perder-se. Para Freire (1994), esta desumanização não acontece somente com as pessoas que não têm acesso a todos os seus direitos fundamentais, como a própria dignidade, mas acontece igualmente, com um impacto diferente, a quem promove e perpetua estas desigualdades, pela alienação reinante e pelas faltas de oportunidade de leitura de si mesmos/as.
A contracorrente: Para uma Educação multidimensional
Muitos são os setores, imprescindíveis à vida humana, que estão a sofrer sistemáticos cortes, como a educação, o setor social, cultural, a saúde e o próprio setor laboral. Largos setores da população precarizada vivem em sérias dificuldades, por não existirem respostas adequadas às suas necessidades elementares (Garcia, 2004; Ordine, 2018). Estas carências também se verificam, como já referido, na falta de investimento nos laços sociais e afetivos, levando a uma desagregação das redes de suporte social que, segundo Garcia (2004), acontece quando estas redes não são percecionadas como importantes, nem há uma partilha de valores e laços. As pessoas acabam por viver numa solidão acompanhada e por ficar desamparadas, sem sentimento de pertença e com dificuldades na construção da sua própria individualidade. Também a solidariedade é “concebida de forma institucionalizada”, ou seja, predomina o assistencialismo e não um trabalho no sentido de ajudar a que as pessoas tenham um papel ativo na resolução das suas necessidades, de modo que se sintam capazes e sejam responsáveis pelo seu próprio desenvolvimento (Garcia, 2004, p. 266).
Quem não tem os recursos ou capacidades para acompanhar o ritmo alucinante com que o mundo avança acaba por ser descartado, porque supostamente não contribui nem manifesta capacidade para ser produtivo (Garcia, 2004). Precarizadas, estas pessoas deixam de existir, para passar somente a sobreviver; não pertencem a nenhuma comunidade e tornam-se invisíveis (Arendt, 2018). Reforça Hannah Arendt que “a privação fundamental dos direitos humanos se manifesta, primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação eficaz” (Arendt, 2018, p. 393). Estas pessoas não chegam a ter direitos, porque não lhes é dado espaço e mostrado interesse para as ouvir, para as deixar participar, para as acolher, acabando por ser afetadas na sua dignidade e relevo. A indiferença de que são alvo leva a que sejam despojadas do mais elementar que as torna humanas, acabando por ser reduzidas à condição de mero ser vivo (Arendt, 2018). A bem de um crescimento económico, anulam-se os limites do reconhecimento da dignidade humana, naturalizando desigualdades e injustiça social.
Enquanto direito fundamental e enquanto motor de desenvolvimento real, porque plenamente humano, cabe à Educação proporcionar contranarrativas a este estado de coisas, concretizando a sua definição plural e alimentando a sua missão transformadora.
A escola contra o mercado
Será um lugar-comum sublinhar que a educação, dentro e fora das instituições, obriga a problematizar o confronto com a diversidade e com a mudança. Esta diversidade, interindividual, e intergrupal, mas também intraindividual (Sacristán, 2008, p.74), leva a assumir a complexidade do fenómeno educativo ante a evidência de que nenhuma mudança ou evolução é acolhida, de forma previsível e homogénea, pelo conjunto das pessoas ou, sequer, pelas mesmas pessoas em alturas distintas.
Não é realista, como confirmará Biesta, pensar que as transformações que sucedem no mundo se manifestam em todo o lugar, por igual, e para todas as pessoas. Este autor afirma que assumir-se essa pretensa homogeneidade representa “uma mentira que serve a alguns, o que pode ser um importante motivo de sua constante repetição” (Biesta, 2018, p.26). Nesta ótica da competitividade há sempre uma medição e uma comparação entre pessoas, sendo que, para uns serem melhores, outros terão de ser menos bons e, nesta lógica, é necessária a manutenção deste movimento, criador de exclusões e desigualdades. Tal é promovido nos “ataques às populações atualmente consideradas excedentárias e dispensáveis à luz do impiedoso fundamentalismo de mercado”, sendo afastadas da vista pública (Giroux, 2011, p. 7). Lima (2019, p. 6) afirma que tanto professores como outros agentes educativos podem ser perpetuadores deste movimento, na medida em que “se revelam atores estratégicos em busca de diferenciação institucional e de vantagens competitivas” .
O mercado de trabalho tem sofrido inúmeras alterações que se prendem com níveis elevados do desemprego e crescimento e produção sem limites, muito além das necessidades das pessoas (Garcia, 2004), mas há questões que estiveram sempre presentes, e que se vão tornando prementes, sendo necessário trabalhá-las. Para isso, porém, precisamos de um “quadro de referências mais amplo e diferente para a educação no qual se incluam questões de democracia, ecologia e cuidado” (Biesta, 2018, p.26). A ilusão do crescimento ilimitado também afeta o planeta que mostra sinais de que, a este ritmo, os recursos irão ser cada vez mais escassos, o que irá promover cada vez mais desigualdades. Estaremos sujeitos a eventos naturais extremos e adversos que podem colocar a vida de muitas pessoas em risco, além dos desastres ambientais e humanos que perfazem a vasta questão da justiça climática. Mesmo com estes alertas, a procura incessante por mais lucro, mais poder, não abranda.
No plano da educação, é possível perceber que acaba por haver um certo desligamento e diminuição da envolvência no processo de aprendizagem, que se transpõe para a própria vivência, para se consumar uma orientação interesseira que terá, obviamente, consequências na vida das pessoas. Esta problemática exige reflexão acerca do impacto que estas formas de pensar têm nas populações que não conseguem, ou não têm ao seu dispor, os recursos para se adequarem aos moldes considerados ideais e válidos. Num mundo que corre em busca de mais e maior lucro, muitas são as pessoas que se veem numa situação de maior fragilidade e invisibilidade, por se encontrarem a caminhar num ritmo diferente e em busca de satisfazer outras necessidades. A falta de proteção torna-se uma constante, na medida em que a justiça e a igualdade são suplantadas pela desigualdade e pelo poder privado (Giroux, 2011). Daí que tenhamos de acompanhar Biesta quanto ao seu questionamento do equilíbrio dos domínios de finalidade educacional, nomeadamente a qualificação, a socialização e a subjetivação (Biesta, 2015, 2018). É preciso questionar até que ponto existe ou não o desejável espaço para todas estas funções da educação e as consequências da hegemonia de uma gestão empresarial da mesma.
Também a tolerância e a aceitação do que é diferente e que não se enquadra nos cânones considerados ideais está em crise, na medida em que, ao predominar o individualismo, o viver junto passa a ser tarefa bastante difícil para muitos. De acordo com Biesta (2018, p.26), a democracia, ecologia e cuidado poderão ser “os reais “fundamentos” para a educação contemporânea e para a educação do futuro.” A economia e o pensamento económico, enquanto áreas disciplinares atentas à gestão e organização do coletivo, terão necessariamente de solidificar formas de viver em conjunto sustentáveis, cuidadosas e democráticas (Biesta, 2018).
Atendendo à influência que a sociedade tem na escola é necessário que esta última possa ser reduto livre de todas as imposições e constrangimentos das sociedades de mercado, direcionando-se prioritariamente para as possibilidades de crescimento efetivo e responsável das pessoas (idem). A escola deve ajudar a que os/as estudantes consigam posicionar-se no mundo, saber o que têm à sua disposição e fazer, em consciência, as suas escolhas, sendo esta existência “no mundo, mas não no centro do mundo, de modo que reste espaço para os outros existirem também” (Biesta, 2018, p.28).
O excesso da Educação face à aprendizagem
Uma das contranarrativas propostas, nesta análise, passa por sublinhar o modo como um conceito multidimensional de educação excede os desígnios da aprendizagem, sendo necessário retirar consequências deste excesso.
De acordo com Fernandes (1990), a educação pretende ajudar a pessoa a pensar, a desenvolver o espírito crítico, a sensibilidade, a posicionar-se perante o mundo e os outros, de modo a que consiga atingir o ser potencial e desfrutar da sua própria vida e da vida em sociedade. A educação implica sempre relação, e é nessa dinâmica que a mesma acontece (Amado, 2011; Biesta, 2015), até porque, segundo Reis (2014, p. 159), “nascemos humanos, mas não humanizados, sociáveis, mas não socializados, com a possibilidade de ser felizes e livres, mas não com a posse da felicidade e da liberdade”.
Biesta (2015) verifica ter havido uma viragem no discurso educacional, passando-se de uma linguagem da educação, que implica e pressupõe a sua multidimensionalidade, para uma linguagem da aprendizagem, que coloca o enfoque essencialmente no que a pessoa faz e produz, numa lógica de resultados, e não no que a pessoa é ou poderá ser. A pessoa passa a ser agente passivo no processo educativo, ao serem-lhe transmitidos, por um ensinante, conhecimentos com função utilitária, não havendo espaço e tempo dedicados à promoção de reflexões que as preparem para a melhor vivência e aproveitamento da vida possível.
Acaba assim por haver uma relação verticalizada de aprendizagem, ao invés de uma educação feita em relação, de uma educação abrangente, permanente e contínua, orientada para o todo da pessoa humana. Daí que a linguagem educativa não se possa perder, para dar lugar tão somente à linguagem da aprendizagem. É importante que a pessoa não seja cingida a mero recetor de informação, sujeita a um mecanismo transmissivo que se executa como um intercâmbio direto e mimetizável de conteúdos. Fernandes (1990, p. 15) defende precisamente que uma educação de dentro para fora que “(…) constrói, personaliza, liberta e harmoniza”, enquanto o contrário acaba por condicionar pois, “(…) impondo normas, modelos definidos, acabados e perfeitos (…), recalca o individuo”. Isto implica que a eficácia em educação não deva ser medida pelos conteúdos, na forma como são expostos e na capacidade da sua replicação, independentemente das características de quem os recebe, fazendo com que a educação seja encarada e sentida como dever, e não como direito (Biesta, 2015). O objetivo primordial da educação é a pessoa e, nessa medida, há que ter em conta as especificidades de cada estudante, e o momento em que o processo educativo decorre, tendo em conta que o que é eficaz para um/a, pode não ser para outros/as (Biesta, 2015; Reis, 2014).
Para além da formação do sujeito, a educação tem também extrema importância na formação da própria sociedade (Amado, 2011). De acordo com Biesta (2015), a educação tem um propósito multidimensional, remetendo para a existência de três domínios de finalidade educacional, sendo eles, como referimos, a qualificação, a socialização e a subjetivação. A qualificação remete para a aquisição de conhecimentos e habilidades, que são transmitidos com o propósito de que a pessoa fique qualificada, essencialmente do ponto de vista técnico (Biesta, 2015, 2018). Já a socialização centra-se na apropriação das normas sociais, culturais e políticas que norteiam a sociedade e que ajudam a criar a identidade da pessoa, levando a que esta consiga integrar-se socialmente (Biesta, 2015). A subjetivação, por sua vez, remete para a necessária maturidade, importante tanto na escola, como também fora dela, no sentido de haver a capacidade para refletir acerca dos modelos de atuação que são transmitidos/mostrados, de forma a decidir, em consciência e responsabilidade, o que cada pessoa deseja para si, como sujeito ativo do seu próprio desenvolvimento (Biesta, 2015, 2018; Fernandes, 1990).
Amputar qualquer destes domínios implica um conceito de educação desequilibrado, incompleto e empobrecido, pelo que importa concretizá-los plena e intencionalmente.
Direito à informação contra a competitividade
De acordo com Harari (2018), houve uma grande mudança no acesso à informação quando se compara o atual século XXI e séculos anteriores. Em séculos passados, havia pouca partilha de informação, quando não era filtrada e alvo de censura por parte dos regimes totalitários. Em 2021, o acesso à informação é imediato e proveniente de diferentes meios, seja a televisão, internet, rádio, jornais, mas principalmente as redes sociais, onde o descontrole informativo se constitui como um desafio considerável para a educação como leitura crítica do mundo. Na sociedade de informação e da conexão cibernética, a informação é instantânea e pouco filtrada.
Esta mudança veio alterar a forma como as pessoas encaram o mundo e, igualmente, o perfil do/a estudante, que é sobejamente diferente pela infindável quantidade de estímulos a que está sujeito/a. Nesta medida, acaba por não ser proveitoso para o processo de qualificação o enfoque das escolas na transmissão maciça de informação até porque, e como afirma Harari (2018), mais do que dar ainda mais informação, há que trabalhá-la de modo a que seja possível a destrinça entre informação real, fundamentada e importante, de informação não importante, incompleta ou até mesmo incorreta. Só quando a informação é trabalhada, alvo de análise e reflexão, é que pode ser compreendida e posteriormente formar conhecimento robusto e crítico. Daí que seja fundamental que se ajudem os/as estudantes a terem a flexibilidade mental e os recursos emocionais que lhes permitam lidar e conseguir acompanhar as infinitas e constantes mudanças que ocorrem, sem se desequilibrarem quando confrontados com algo desconhecido (Fernandes, 1990; Harari, 2018). Esta análise remete-nos para a dimensão da subjetivação, na medida em que um enfoque excessivo na qualificação acaba por condicionar os/as estudantes como pessoas, ficando a sua individualidade relegada, ao serem objetos da ação de outros (Biesta, 2015).
É também interessante pensar sobre o tipo de informação que é transmitida e considerada relevante em detrimento de outra, processo que já demonstrou poder influenciar o modo como as pessoas analisam, leem e se posicionam no mundo (idem). Este facto relaciona-se com os conteúdos que são aprovados pelos sistemas educativos, e que são considerados os mais adequados do ponto de vista social, cultural, socioeconómico. Como explicita Jares (2007, p. 20), o tipo de convivência predominante é “resultado de práticas socioeconómicas, políticas, culturais e educativas decididas por seres humanos”. Isto reitera o pressuposto de que a educação nunca é neutra. No mínimo, a educação acaba por representar e replicar os modelos resultantes de um processo de globalização que promove, entre outros, o individualismo e a injustiça (Biesta, 2018; Jares, 2007). Este facto pode levar a que os processos de socialização em contexto educativo sejam condicionados relativamente ao espaço dado para o exercício da liberdade e participação.
Como é possível perceber, os aludidos domínios de finalidade educacional são todos importantes, sendo que o ideal será a ponderação do entrecruzamento dos três (Biesta, 2015). O equilíbrio entre estes é o ideal para que o processo educativo seja ele próprio equilibrado e não se esqueça ou desvalorize nenhuma dimensão da pessoa enquanto sujeito aprendente, mas igualmente a sua individualidade enquanto ser humano (idem).
A escola não pode, assim, ser gerida como se de uma empresa se tratasse e estar prioritariamente direcionada para as necessidades pontuais do mercado de trabalho, tendo de dar igualmente importância ao desenvolvimento da pessoa, para uma atenta e conscienciosa vida democrática em sociedade (Biesta, 2015, 2018).
Considerações finais
O ser humano é capaz de conquistas e desenvolvimentos incríveis em domínios da ciência e técnica, transportes, indústria, comunicações, entre tantos outros. A sua capacidade, inteligência e audácia levam à construção de instrumentos e a descobertas que se tornam imortais pela sua importância para a existência e sobrevivência humanas (Arendt, 2001). O ritmo que empreende nas suas conquistas, com a sede de descobrir e explorar, assumindo o capitalismo como motor da própria existência, faz com que invista num desenvolvimento externo e superficial, esquecendo os preceitos de um desenvolvimento pleno, democrático, ético e humano. O ser humano não vive sozinho e no centro do mundo e “nada nos autoriza a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas as têm” (idem, p. 23).
A vida não pode ser controlada em função de um ganho económico à margem do valor das pessoas, privando-as do acesso a direitos, que passam a ser ditados pela capacidade financeira. Enquanto uns se preocupam em ter cada vez mais, outros, que correspondem à maioria, esforçam-se para ter o suficiente para satisfazer as necessidades mais elementares, e nem sempre o conseguem. São fortes disparidades que acabam por ser normalizadas e perpetuadas por quem tem mais poder, de forma consciente. De acordo com Freire (1994), a continuidade da injustiça acaba por ser necessária ao sistema vigente, porque permite aos opressores a oportunidade de demonstrar um altruísmo que, na realidade, não é genuíno, porque ambiciona a manutenção das relações desiguais de poder. Se o apoio dado às pessoas oprimidas fosse no sentido de as ajudar a serem capazes de tornar a sua voz audível e assim conseguirem empoderar-se, estariam destituídas as estruturas opressivas de poder.
A vida continua a uma grande velocidade e a matéria-prima principal, que são as pessoas, começa a sentir grande desgaste, o que se traduz em problemas de saúde, problemas afetivos, entre outros. Para crescer de forma ilimitada, o ser humano acaba por se destruir a si próprio e ao planeta que o acolhe.
A escola não pode ser veículo para perpetuar estas relações desiguais de poder, pois corre-se o risco de se formar futuros opressores ou de perpetuar a subjugação dos oprimidos, numa continuidade alimentada por desigualdades internalizadas e tidas como mero fatalismo (Freire, 1994). A escola tem de promover a igualdade de oportunidades educativas e ajudar a desenvolver nos/nas estudantes um crescimento e desenvolvimento interno, de modo a que, para além de saberes produtivistas, orientados para o jugo do tempo imediato, se aprenda igualmente a ser pessoa, a ser humano em conjunto com o outro. De acordo com Fernandes (1990, pp.21-22), “ser no mundo significa existir e este existir não significa apenas viver; (…) o saber parecer ou saber fazer têm de ser subordinados ao saber ser”.
Hoje, é imprescindível que sejam valorizados outros objetivos, para lá do desenvolvimento económico, que permitam deixar de viver de forma superficial e sentir plenamente o mundo e a responsabilidade pela coabitação responsável.
A passagem do tempo da produção ao tempo da educação implica a coragem da mudança de ritmo que, interpelando o todo do processo educativo, permite que nos confrontemos com a responsabilidade cívica de uma educação que, hoje mais do que nunca, traz em si o peso da própria subsistência planetária.