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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.27 Lisboa dez. 2013

https://doi.org/10.7749/citiescommunitiesterritories.dec2013.027.ess01 

ARTIGO ORIGINAL

 

A relocalização dos indivíduos sem-abrigo no espaço público

The relocation of homeless people in the public space

João AldeiaI

[I]FEUC - Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal. e-mail: alvesaldeia@gmail.com.

 

 

RESUMO

Nas últimas décadas, a orientação económica do espaço público acentuou-se e este tornou-se menos hospitaleiro para os indivíduos sem-abrigo, resultando numa diminuição das suas possibilidades de sobrevivência. A tensão tradicional entre hospitalidade e inospitalidade como estratégias para lidar com os pobres visíveis está a ser reconfigurada nas sociedades ocidentais contemporâneas, criando uma forma de hospitalidade baseada na rejeição activa da interacção com a alteridade-desqualificada-porque-pobre. Esta forma de hospitalidade mixofóbica tem o efeito de reduzir o número e os tipos de espaços em que os indivíduos sem-abrigo são bem-vindos. Indesejados nestes espaços públicos, estes sujeitos são relocalizados para serviços destinados a sem-abrigo e para outros locais heterotópicos aos quais as classes médias e elites não têm interesse em ir, indicando uma tendência de diferenciação espacial entre "os nossos lugares" e "os lugares dos outros".

Palavras-chave: espaço público; fenómeno dos sem-abrigo; heterotopia; hospitalidade mixofóbica.

 


ABSTRACT

In the last decades, the economic orientation of public space has been accentuated and it has become less hospitable for homeless people, leading to a decrease of their survival possibilities. The traditional tension between hospitality and inhospitality strategies of dealing with the visible poor is being reconfigured in contemporary Western societies, creating a form of hospitality which is based on the active rejection of interaction with disqualified-because-poor-otherness. This kind of mixophobic hospitality has the effect of reducing of the number and kinds of places where homeless people are welcomed. Unwelcomed in these public spaces, they are relocated to homelessness services and other heterotopic places to which the middle classes and elites have no interest in going to, indicating a tendency of spatial differentiation between "our places" and "their places".

Keywords: Heterotopy; Homelessness; Mixophobic Hospitality; Public Space.

 


 

Um espaço público inospitaleiro para os indivíduos sem-abrigo

Nas últimas décadas, o espaço público tem vindo a tornar-se crescentemente comercializável, retirando a sua utilidade da possibilidade de ser tornado economicamente rentável (Goldberger, 1996; Smith, 1996, 2002; Atkinson, 2003)[2]. Nestes espaços públicos ou semi-públicos economicamente orientados,

"(...) a receita para o sucesso foi construída sobre a conveniência e a segurança. Em tais espaços, o não-consumo é uma forma de desvio. Os direitos conferidos pela cidadania são crescentemente baseados em se ser um consumidor - consumidor de serviços privados e governamentais" (Atkinson, 2003: 1833-1834).

Cada vez mais, as normas que regem estes espaços se subordinam à regra basilar que afirma que o acesso é somente garantido a quem tem possibilidade de comprar bens ou serviços aí disponibilizados e está disposto a entrar nesse circuito de aquisição. O acesso ao espaço é dependente do pagamento pelo direito de entrada e, simetricamente, aumentam as punições para quem não pode ou não deseja cumprir esta norma. Um conjunto de pressões económicas sobre os governos para que estes tornem as cidades business friendly influencia a postura  do sistema político face aos pobres-não-potenciais-consumidores. Estes últimos - considerados desagradáveis para os consumidores potenciais e, possivelmente, desincentivando a sua presença nos locais de consumo - passam a ser indivíduos indesejáveis nestes lugares. A principal pena a que o não-consumidor se sujeita é a expulsão do espaço, com a perda do direito a aí permanecer ou regressar (Bauman, 1998; Atkinson, 2003; Bauman, 2009a, 2009b).

Portanto, falamos de um espaço público "privatizado", destinado ao consumo e do qual se bane tudo o que é percebido como podendo ser impeditivo ao acto de aquisição. Porém, devemos ter em mente que o espaço público foi sempre criado por exclusões do seu interior, obedecendo a uma lógica de pacificação desse espaço pela expulsão do que poderia destoar ou desagradar (Feldman, 2006: 38 et seq.). Partindo desta exclusão fundadora, deveríamos, talvez, começar a designar o espaço público a partir das relações que os sujeitos com ele estabelecem, levando a que, para quem, na praxis, não lhe pode aceder enquanto cidadão, ele se torne espaço público. O que está agora em causa não é a novidade da introdução da exclusão nestes espaços mas antes a forma particular que esta assume: a expulsão do seu seio de tudo o que possa perturbar o consumo. Ou seja, o direito de acesso é transformado numa questão estética destinada a tornar os locais de consumo em lugares onde os potenciais consumidores se sintam seguros material e ontologicamente de modo a que participem na aquisição contínua de bens e serviços. Assim sendo, os indivíduos que destoam do tipo idealizado de sujeito capaz de se inserir nesta lógica funcional consumista tornam-se persona non grata e devem ser proibidos de entrar nestes locais, visto que são um incómodo para os potenciais consumidores. Um incómodo estético, que realça permanentemente que nem todos os indivíduos têm possibilidade de aceder ao estatuto de potencial consumidor; que torna estas zonas-livres-de-pobreza-e-sujidade mais pobres e mais sujas (Feldman, 2006).

Os indivíduos sem-abrigo são as principais vítimas das restrições crescentes no acesso ao espaço (Zeneidi-Henry, 2002; Terrolle, 2004; Doherty et al., 2006; Feldman, 2006; Meert et al., 2006; Meert e Stuyck, 2008). São-no, em grande medida, pois estas restrições de acesso aos espaços são, geralmente, condicionais - proibição de realização de determinadas actividades ou de permanência a determinadas horas - e não absolutas - proibição permanente de entrada em certos espaços (Doherty et al., 2006)[3]. Quem não tem acesso a um espaço privado usa o espaço público para realizar essencialmente cinco tipos de actividades: i) dormir; ii) comer; iii) realização da sua higiene pessoal; iv) desempenho da mendicidade ou de outras estratégias de obtenção de rendimento; v) socialização (Meert et al., 2006: 13-20). Ora, são precisamente estas actividades que são restritas em espaços públicos e semi-públicos inteiramente orientados para a rentabilidade económica. Sujeitos que não têm um espaço privado onde se possam dirigir para descansar, comer, realizar a sua higiene pessoal, são pessoas que têm de fazer do espaço público espaço privado. Ou seja, indivíduos que têm de encontrar formas de se apropriar da rua e espaços afins para realizar as actividades que - segundo o nosso modelo societal - devem ser executadas em casa. Contudo, não só é esse mesmo modelo societal que lhes nega o acesso a uma residência como ainda é ele que os procura impedir de ficarem na rua. O fenómeno dos sem-abrigo é, em grande medida, um problema de falta de direito a um espaço. Impedidos de aceder ao espaço privado, activamente dissuadidos de permanecer em espaços públicos; para onde podem estes sujeitos ir? Esta inospitalidade dos espaços públicos face aos indivíduos sem-abrigo leva a

"(...) uma redução das opções de pernoita para as pessoas que são sem-abrigo em espaço público. Devido a tendências como a monitorização, a vigilância de espaços públicos e a crescente privatização de espaços públicos, as possibilidades de encontrar um local para dormir em lugares como estações ferroviárias ou de metro diminuíram notoriamente. Também outras tendências em bairros tais como o enclausuramento [gating], a vigilância, o fechamento das entradas de edifícios residenciais ou a adaptação ou mesmo abolição completa do mobiliário urbano restringem as opções de pernoita dos sem-abrigo" (Meert et al., 2006: 34).

Se uma casa, tal como dizia Robert Frost (1914), é o local onde, quando temos que lá ir, ninguém nos pode negar o direito de entrada, então, ser "sem-abrigo" é realmente não ter um lugar ao qual possamos chamar casa[4].

 

Entre inospitalidade e hospitalidade mixofóbica

O imaginário colectivo retrata os indivíduos sem-abrigo de forma ambígua: exalta compaixão, indigna-se perante a situação, culpabiliza quem vive na rua, exige repressão da mendicidade. Tradicionalmente, a acção estatal oficial sobre os sujeitos sem-abrigo é profundamente sazonal:

"(...) os sem-abrigo alimentam assim o debate público, por vezes, até à caricatura: no Inverno, na urgência, trata-se de os acolher e de os abrigar; no Verão, por decreto municipal, procura-se em certas cidades impedi-los de manifestar a sua desqualificação social de maneira demasiado violenta e demasiado visível" (Damon, 1997: 121)[5].

A acção pública dirigida aos indivíduos sem-abrigo oscila entre inospitalidade e hospitalidade, entendendo esta última como "o acolhimento da alteridade" (Damon, 1997: 122). Esta flutuação leva à (aparentemente paradoxal) reivindicação pública de: i) medidas repressivas (policiais, etc.) que retirem os sujeitos sem-abrigo do espaço público; ii) medidas hospitaleiras, como a criação de centros de acolhimento. De forma sumária, estas reivindicações simultâneas criam uma distinção basilar entre os pobres-sem-abrigo que merecem ajuda pública e aqueles que não a merecem,[6] uma divisão essencialmente feita a partir do grau de incómodo que um sujeito pobre constitui. Do lado dos indivíduos sem-abrigo, o problema é que eles incomodam bastante os transeuntes domiciliados: perturbam-nos estética, moral, interaccional e fisicamente. Sendo representados no imaginário colectivo como amorais, preguiçosos, porcos e potencialmente perigosos (para os não-sem-abrigo), a oscilação entre hospitalidade e inospitalidade claramente pende para o lado da rejeição da alteridade-pobre-e-sem-casa (Blau, 1992; Snow e Anderson, 1993; Damon, 1997; Terrolle, 2004; Feldman, 2006; Damon, 2008; Meert e Stuyck, 2008).

Se esta recodificação dos termos da interacção com quem vive na rua é orientada pelo Estado - que procura, através da polícia e de outros actores, expulsar estes indivíduos dos locais em que circulam os "cidadãos decentes" que têm casa -, não devemos, contudo, atribuir-lhe um desejo maquiavélico de ser inospitaleiro e punitivo: se a relocalização de quem vive na rua para outros espaços - economicamente desinteressantes, pelo menos, no momento presente - parte de uma vontade política, esta responde também às exigências de uma parte (crescente e significativa no seu número mas também no seu poder económico e político) dos cidadãos (Damon, 1997; Terrolle, 2004; Damon, 2008; Meert e Stuyck, 2008). Através de um processo em espiral, as representações narrativas acerca do fenómeno dos sem-abrigo são construídas tanto de forma top-down como bottom-up: os cidadãos reivindicam acções estatais orientadas por representações estruturais que incorporam; o Estado responde a exigências da base política que são dirigidas por narrativas que ele próprio contribui para criar. Não há um locus identificável de onde estes argumentos provêm, mas estes afectam todas as partes envolvidas, todas elas participando activamente na sua produção representacional.

Mais interessante do que perdermo-nos em considerações sobre qual a origem das macronarrativas que orientam a acção pública sobre o fenómeno dos sem-abrigo é termos consciência da componente de irracionalidade geral que elas criam. Numa lógica weberiana (Weber, 2002), se as medidas locais repressivas face aos indivíduos sem-abrigo podem ser percebidas como instrumentalmente racionais (dado que respondem a desejos de indivíduos e grupos que procuram aumentar o seu bem-estar), elas geram no seu conjunto uma enorme irracionalidade ao não resolverem nunca o que é considerado um problema - o fenómeno dos sem-abrigo. Todas estas acções meramente tornam os indivíduos que vivem na rua em sujeitos-pinball, eternamente expelidos de uns locais para outros, de umas cidades para outras, de uns serviços assistencialistas para outros (Damon, 1997, 2008). O incómodo que se considera que a sua existência e presença visíveis causam não é resolvido pelas acções locais repressivas de expulsão e relocalização mas antes estas criam condições para a perpetuação do fenómeno dos sem-abrigo e, consequentemente, do mal-estar que este causa aos cidadãos domiciliados e às entidades politicas.

Não só na perpetuação do problema é observável uma irracionalidade geral. A repressão e expulsão dos espaços não é só realizada pelas forças policiais[7] mas pela própria forma como as cidades são desenhadas. A arquitectura e o urbanismo contribuem para a inospitalidade do espaço público face aos indivíduos sem-abrigo. Retirar casas de banho públicas das ruas, eliminar bancos públicos ou torná-los desconfortáveis para que ninguém neles se sente durante muito tempo ou neles procure dormir (Atkinson, 2003; Terrolle, 2004; Meert et al., 2006; Gowan, 2010) são algumas das medidas implementadas para que os indivíduos sem-abrigo se retirem dos espaços em que circulam e interagem os cidadãos domiciliados.

O 'mobiliário' de rua crescentemente permite apenas um uso codificado através do design. Tinta à prova de escalada (climb-proof paint) e luzes à prova de vândalos são desenvolvimentos lógicos e úteis, enquanto que outras mudanças no estilo das cadeiras e dos bancos activamente impedem o descanso. Um exemplo disto pode ser visto nas paragens de autocarros que foram feitas de vidro para permitir vigilância mas com bancos que inclinam para permanecerem secos e que desencorajam tudo excepto o mais breve dos usos. Outras alterações podem ser vistas nos bancos de jardim 'à prova de vagabundos' ('bum-proof' park benches) (Davis, 1990) que se tornaram segmentados por apoios para os braços para que as pessoas não se possam deitar neles por forma a impedir que as pessoas (i.e., os sem-abrigo) durmam neles - assim 'excluindo pelo design' ('designing-out') os já socialmente excluídos (Atkinson, 2003: 1834).

Esta inospitalidade arquitectónica e urbanística tem reflexos sobre todos os habitantes da cidade e não só sobre os sujeitos que estas alterações visam controlar ou excluir: as cidades tornam-se menos hospitaleiras para todos (Damon, 1997, 2008). Portanto, também aqui uma série de medidas que podem ser consideradas instrumentalmente racionais na sua individualidade acabam por gerar uma enorme irracionalidade geral que se consubstancia em efeitos indesejados e indesejáveis no que diz respeito ao bem-estar de todos os sujeitos que circulam nos espaços em que elas são implementadas.

é importante termos em conta que mesmo as manifestações e medidas hospitaleiras (e.g., a criação de centros de acolhimento adicionais) destinadas exclusivamente à população sem-abrigo, podendo ser importantes para os indivíduos-alvo, reforçam a construção dos "sem-abrigo" como uma categoria à parte do resto da sociedade (Terrolle, 1995; Zeneidi-Henry, 2002; Terrolle, 2004; Feldman, 2006; Damon, 2008; Gaboriau, 2009), funcionando como medidas de controlo de uma população que é vista como incontrolável. Se os sujeitos sem-abrigo a quem estas medidas hospitaleiras e assistencialistas se dirigem são representados como "excluídos", estas medidas reforçam e perpetuam esta sua "exclusão": ao serem percebidos como estando fora do resto da sociedade (domiciliada), a criação de locais específicos para eles a ela regressarem obedece a um modus operandi que dita que é na "exclusão" que estes sujeitos têm de realizar a sua "reintegração". Segundo esta lógica, o espaço público deixa de ser um local onde a presença de indivíduos sem-abrigo, pelo menos, de indivíduos visivelmente identificados como "sem-abrigo", seja aceitável, perdendo estes sujeitos de facto o direito a este espaço. Independentemente de se visar a repressão ou a assistência, as estratégias para lidar com quem vive na rua retiram estes indivíduos da esfera do direito à cidade e transformam o espaço público em espaço público. Mesmo quando se visa assistir os sujeitos sem-abrigo na sua "reintegração", ou meramente perpetuar a sua existência biológica através da distribuição de comida ou roupa, citando um profissional assistencialista, "o importante é tirar [estas] pessoas do espaço público" de modo a protegê-las do olhar dos transeuntes, olhar esse que tornaria inegável a sua desqualificação enquanto "pobres assistidos".

Reconhecendo-se a heterogeneidade das situações reais de vida, estratégias de sobrevivência e trajectórias biográficas da população sem-abrigo, só enquanto construção social, moral e administrativa - apenas enquanto categoria - um tal conjunto de indivíduos pode ser agrupado. Tal como Becker (1973: 9-10) observou a respeito dos "desviantes" por ele estudados, o que as pessoas rotuladas como "sem-abrigo" têm em comum é o próprio rótulo e não quaisquer características de personalidade ou culturais partilhadas. Ora, um dos efeitos da assistência hospitaleira é precisamente a confirmação dos "sem-abrigo enquanto grupo" (empiricamente inexistente). De modo circular, a forma de actuação da assistência responde a uma população política, administrativa e academicamente produzida como homogénea e serve para criar essa mesma representação (Zeneidi-Henry, 2002; Feldman, 2006; Damon, 2008; Gaboriau, 2009). Numa sociedade de consumo, o não-consumidor potencial é representado de modo negativo nas narrativas dominantes (Bauman, 1998; Sennett, 1998; Bauman, 2009a, 2009b). é este o caso dos indivíduos sem-abrigo. Os serviços assistencialistas contribuem para essa negatividade representacional negando a estes sujeitos qualquer identidade enquanto "consumidor das classes médias" e substituindo-a por uma identidade enquanto "assistidos", legitimando a sua exclusão dos espaços públicos destinados ao consumo (Feldman, 2006: 42).

Assim sendo, podemos considerar que mesmo as formas de hospitalidade dirigidas aos indivíduos sem-abrigo assumem uma forma particular. Bauman (2003: 71 et seq., 2006: 139 et seq.) identifica duas formas ideal-típicas de interagir com a alteridade na actualidade: a mixofilia - o desejo de aproximação ao outro - e a mixofobia - a rejeição da diferença assente na tentativa continuada e esforçada de a evitar. O que a lógica operativa da assistência nos permite observar é que a hospitalidade face a quem vive na rua é, em rigor, uma hospitalidade mixofóbica. Os centros de pernoita de indivíduos sem-abrigo e outros serviços assistencialistas criados são específicos para a população sem-abrigo e ninguém que não seja "sem-abrigo" ou que não trabalhe nesses serviços terá qualquer razão concebível para desejar dirigir-se a estes espaços. Ou seja, correspondem a uma forma de "acolhimento da alteridade" (Damon, 1997: 122) que realiza esse acolhimento num lugar deslocado do resto da sociedade. Trata-se de uma hospitalidade mixofóbica pois mesmo as reivindicações de assistência e a indignação pontual veiculada a respeito da existência de indivíduos a viver na rua são sempre orientadas por uma lógica designada no contexto anglo-saxónico como NIMBY - not in my back yard: criem-se espaços para acolher os indivíduos sem-abrigo, mas que sejam criados fora daqui; desejo que lhes seja fornecida ajuda, mas não quero ter de os ver enquanto estão a ser ajudados (Snow e Anderson, 1993: 95 et seq.; Gowan, 2002: 531; Zeneidi-Henry, 2002: 103; Meert et al., 2006: 28-29; Damon, 2008: 83).[8] Apercebermo-nos de que mesmo as exigências de ajuda e assistência aos indivíduos sem-abrigo funcionam desta forma parece dar razão a Orwell quando este escreveu que "lamentamos as classes inferiores como temos pena de um gato tinhoso, mas lutaremos implacavelmente contra qualquer melhoria das suas condições de existência" (2003: 154).

O fenómeno dos sem-abrigo é, portanto, definido não como um problema de pobreza mas como uma questão de visibilidade: o que incomoda não é a existência de sujeitos sem recursos para deixarem de viver na rua, mas o facto de termos de os ver.[9] Como afirma Blau,

"(...) talvez o atributo mais significante do fenómeno dos sem-abrigo seja a sua visibilidade. A pobreza visível despedaça os ritmos normais da vida pública. Ela debilita as regras que governam o uso do espaço público. Apesar do conjunto escrito de regras ser bem conhecido - não estacionar o seu carro impedindo a saída de outro automóvel, não sujar o passeio -, outro conjunto de regras igualmente poderoso nunca aparece escrito. Estas regras assumem, por exemplo, que um estranho em público não se aproxima demais de outro, e que as demonstrações públicas de pobreza são, de algum modo, impróprias. Como apenas as pessoas mais desesperadas exibem a sua pobreza, o mais breve vislumbre do seu desespero faz com que os outros se sintam pouco à vontade. As testemunhas do fenómeno dos sem-abrigo ficam, então, na mesma posição em que os espectadores não intencionais de uma desavença doméstica. Elas sabem que estas coisas ocorrem, mas acreditam firmemente que elas devem ser mantidas privadas se tal for de todo possível" (1992: 4).

Que os indivíduos sem-abrigo continuem sem ter recursos para sair da rua deixa de ser problemático a partir do instante em que não temos de interagir com eles. Como afirma Mateus, em Portugal, hoje como ao longo do século XX, da 1ª República ao pós-25 de Abril de 1974, passando pelo Estado Novo, é possível observar

"(...) políticas e medidas aparentemente de contornos sociais mas decorrentes do moderno marketing territorial, gerindo a visibilidade da pobreza mas não a solucionando. O perigo é que a diminuição da visibilidade da população sem-abrigo constrói uma ilusão social e reforça a falta de empenho da sociedade na resolução do problema" (Mateus, 2007: 16)[10].

 

Um circuito heterotópico criado pela hospitalidade mixofóbica

Assistência hospitaleira, repressão inospitaleira ou hospitalidade mixofóbica: todas as formas de lidar com o fenómeno dos sem-abrigo têm como efeito - e, plausivelmente, têm como intenção - a relocalização de quem vive na rua em heterotopias. Como Foucault (1984) defendeu, todas as sociedades têm um conjunto de espaços marginais, exteriores ainda que em relação com os espaços interiores, que sustentam todo o conjunto. Estes espaços de algum modo deslocados do espaço normativo das sociedades são "lugares reais, lugares efectivos, lugares que estão desenhados na própria instituição da sociedade, e que são tipos de contra-lugares" que se consubstanciam em "lugares que estão fora de todos os lugares, ainda que, porém, sejam efectivamente localizáveis" (Foucault, 1984: s.p.). As heterotopias são, assim, lugares simultaneamente concretizados e que se encontram numa relação de exterioridade fundamental face aos lugares onde é válida a normatividade dominante de uma sociedade. Elas são contra-lugares, espaços em que todas e nenhumas lógicas sociais relacionais se efectivam, des-significando-se de um modo que retira estes espaços do mundo de significados válido em todos os outros lugares. Porém, estando nesta relação de exterioridade, as heterotopias são os espaços fundadores de todos os outros espaços (normativos) dado que a sua relação de surgimento, a possibilidade da sua efectivação praxiológica no real, assume a forma de uma co-emergência fundadora. A existência de heterotopias é conditio sine qua non da possibilidade de existência de espaços normativos; mais ainda, as heterotopias existem como conditio per quam de toda a localização espacial da normatividade.

Se todas as sociedades conhecem os seus espaços heterotópicos, estes são, contudo, espaços com formas variadas: não há uma forma universal de heterotopia. Foucault (1984) avança, porém, dois grandes tipos ideais heterotópicos. Por um lado, historicamente anteriores, existem heterotopias de crise, espaços privilegiados, sagrados, interditos, reservados aos sujeitos que se encontram (segundo as definições culturalmente vigentes) em crise. Considerando que estas heterotopias de crise são residuais na modernidade ocidental, Foucault (1984) defende que elas são progressiva, ainda que não inteiramente, substituídas pelo segundo tipo ideal heterotópico: as heterotopias de desvio (cf. também Johnson, 2006). Estas são "aquelas onde colocamos os indivíduos cujo comportamento é desviante face à média ou à norma exigida" (Foucault, 1984: s.p.).

Como Johnson (2006: 84) defende, a própria interpretação do conceito de heterotopia como espaço isolado é errónea. Sendo espaços "fora de todos os lugares" (Foucault, 1984: s.p.), loci exteriores face aos espaços da normatividade dominante, as heterotopias encontram-se precisamente face a estes lugares. A noção de heterotopia remete não para um estado de exterioridade essencialista mas, bem pelo contrário, para uma concepção radical do espaço como relação agonística entre lugares. Partindo de uma postura holística, agregadora, as heterotopias têm sempre uma relação de exclusão includente, no sentido agambeniano (Agamben, 1998, 2010), com os restantes espaços de uma sociedade. Tal como Simmel defendia sobre a relação dos indivíduos pobres com o resto da sociedade, também nesta relação entre heterotopia e restantes espaços, "neste caso, estar fora não é, em resumo, mais do que uma forma particular de estar no interior" (2008: 89). Por um lado, o local produzido como anormativo e o local normativo co-constituem-se continuamente. Por outro lado, não anulando a ideia anterior mas conferindo uma forma específica aos fluxos relacionais que circulam entre os dois tipos de espaços, a excepção heterotópica apresenta-se como o espaço ontologicamente anterior em cuja existência (activamente produzida) se ancora toda a possibilidade de constituição do espaço normativo, da própria normatividade dominante. Do mesmo modo, as heterotopias relacionam-se também entre si. Elas só existem enquanto agregação de espaços. Nunca há uma heterotopia no singular. Nas palavras de Johnson,

"(...) não há uma forma pura de heterotopia, mas diferentes combinações, cada uma reverberando com cada uma das outras. Neste sentido, elas não funcionam plenamente excepto em relação umas às outras. Mas as suas relações chocam e criam unidades espácio-temporais perturbadoras adicionais" (Johnson, 2006: 84).

A rua, tal como os indivíduos sem-abrigo a experienciam, é uma agregação reticular dinâmica e agonística de heterotopias (e não toda ela uma enorme heterotopia). Cada um dos espaços da rua tem propriedades de heterotopia de desvio, quer falemos dos espaços oficiais de pernoita (centros de acolhimento), dos locais onde se podem fazer refeições, daqueles onde é possível realizar a higiene pessoal ou da rua no seu sentido mais literal. é este isomorfismo que agrega a rua num espaço social e geográfico holístico, numa forma social ou figuração própria. Os indivíduos sem-abrigo são menos sujeitos em crise do que sujeitos percebidos como (criados como) desviantes face à norma e à normatividade dominante. Compreendidos por cidadãos comuns, por políticos, agentes policias, académicos e profissionais da assistência como indivíduos fundamentalmente (quando não mesmo ontologicamente) diferentes dos cidadãos domiciliados (pelo menos, da sua norma idealizada, se não estatística), que não se comportam (por recusarem ou serem incapazes de o fazer) de acordo com a normatividade dominante, a sua presença nos espaços interaccionais e físicos em que circulam os indivíduos domiciliados perturba as vidas destes últimos. Necessitados de um sentimento de segurança física e ontológica, os cidadãos domiciliados sentem que este é colocado em causa pela observação da pobreza extrema visível dos sujeitos sem-abrigo, podendo mesmo sentir-se fisicamente ameaçados - mesmo que não tenham razão empírica para tal e isto constitua apenas uma materialização da sua insegurança ontológica. Assim sendo, o fenómeno dos sem-abrigo é intervencionado (é alvo de diversas intervenções descoordenadas mas holisticamente articuladas) de um modo que assenta no esforço de expulsão dos indivíduos que vivem na rua para fora dos locais onde circulam os cidadãos das classes médias e elites. Neste exercício, é menos relevante o local para onde os indivíduos vão do que aqueles de onde eles saem, ganhando importância os primeiros de um modo derivativo. Contudo, a possibilidade de deslocalização surge apenas devido à existência apriorística de "lugares fora de todos os lugares, ainda que efectivamente localizáveis" (Foucault, 1984: s.p.), sendo daqui que o circuito heterotópico que constitui a rua retira a sua importância analítica e praxiológica.

Ao expulsar quem vive na rua dos locais em que os "cidadãos decentes domiciliados" residem, trabalham, socializam e participam no circuito de transacções comerciais, os lugares a que os indivíduos sem-abrigo têm acesso tornam-se realmente "fora de todos os lugares". é o caso das periferias pobres, onde a presença de sem-abrigo não é tão dramática para a imagem que a sociedade domiciliada procura criar das cidades em que alguns sujeitos são forçados a viver na rua. Mas é também o caso dos serviços assistencialistas onde, como foi referido, ninguém se dirige se não viver na rua ou trabalhar neles. Podemos, assim, ver que há uma complementaridade entre a forma de actuar das instituições da assistência e de repressão que, em conjunto, relocalizam os indivíduos sem-abrigo em heterotopias (Snow e Anderson, 1993; Zeneidi-Henry, 2002; Terrolle, 2004; Feldman, 2006; Bonnet, 2009). Mesmo a acção policial de expulsão dos espaços é - pelo menos, por vezes - justificada pela possibilidade de reencaminhar os sujeitos sem-abrigo para fora da rua, precisamente para os locais pré-definidos onde se encontram os serviços assistencialistas (Zeneidi-Henry, 2002; Terrolle, 2004; Bonnet, 2009). Ao existirem estes espaços próprios para esta população, a crueldade da negação do direito ao espaço público (leia-se: a sua conversão em espaço público) a quem já não tem direito a um espaço privado é diminuída na representação que o imaginário colectivo cria sobre o fenómeno dos sem-abrigo. Num modelo societal em que a assistência profissional fosse inexistente, a expulsão dos indivíduos sem-abrigo da rua só poderia ser encarada como agressiva; seria implausível negar que estes sujeitos estariam a ser expelidos do único local onde poderiam estar. A criação de espaços destinados a esta população descansa as consciências individuais e colectiva de cidadãos que desejam deixar de se cruzar quotidianamente com esses "pobres, mal cheirosos, agressivos, preguiçosos, doidos, drogados e bêbados" que tanto incomodam os "cidadãos decentes" que nenhuma responsabilidade reconhecem na situação de vida na rua de tantos indivíduos. Através desta lógica operacional de relocalização dos indivíduos sem-abrigo para as instituições assistencialistas e de delimitação dos movimentos destes sujeitos ao trânsito entre estes serviços, o problema da visibilidade do fenómeno dos sem-abrigo é solucionado. Segundo Daniel Terrolle,

"(...) assim parece resolver-se o paradoxo inicial em que [os indivíduos sem-abrigo] estão cativos: permanecer sem-abrigo e na rua sem poder apropriar-se dela. Em breve, existirá apenas o trânsito visível entre o local de acolhimento de dia ou o espaço social de inserção ocupacional, o lugar de restauração e o local do abrigo de urgência. Desta forma, enredados nesta rotação quotidiana, eles não oferecerão mais a visibilidade testemunha do seu estado" (Terrolle, 2004: 155).

 

Apontamento sobre a actividade (para permanecer) na heterotopia

Assentando a lógica de intervenção prevalecente na relocalização dos indivíduos sem-abrigo, apresenta-se como insuficiente retirá-los dos espaços públicos em que circulam os cidadãos das classes médias e elites (que, para quem vive na rua, como foi dito, são espaços públicos). De modo complementar, é igualmente necessário garantir que, uma vez fora destes espaços, os indivíduos sem-abrigo não possam aí regressar, pelo menos, não enquanto permanecerem sem-abrigo. Esta dificultação do regresso ao espaço público - em rigor, esta dificultação institucional e estrutural da reconversão praxiológica do espaço público em espaço público - é um dos principais efeitos do modus operandi das instituições assistencialistas, baseado na permanente e obrigatória actividade dos indivíduos sem-abrigo que se encontram em heterotopias institucionais.

Como Arendt (2001) defendeu, a modernidade ocidental caracteriza-se por um processo simétrico de desqualificação da vita contemplativa e de sobre-qualificação da vida activa, "ou seja, a vida humana na medida em que se empenha activamente em fazer algo" (Arendt, 2001: 38). Esta sobrevalorização da actividade[11] ancora-se primeiramente na própria definição de "actividade", tendo como efeito a desvalorização de todas as acções humanas que se tornam, neste modelo societal, passíveis de serem definidas como "inactividade".

Dado que o que os indivíduos sem-abrigo fazem na praxis é representacionalmente desqualificado como inactividade, por um processo de reificação que opera pela sobreposição daquilo que os sujeitos fazem com aquilo que eles são, quem vive na rua é narrativamente produzido como inactivo, logo, como imóvel e imutável. Ora, numa lógica canguilhemiana (Canguilhem, 2007), o anormal, tanto quanto o normal, é uma norma, ainda que seja uma norma de tipo inferior uma vez que é incapaz de se modificar a si mesma, de se tornar noutra norma, se o ambiente assim o exigir. A norma da vida é o seu dinamismo, a sua capacidade constante e dinâmica de mudar de norma. O que desqualifica o anormal, o patológico, é a sua incapacidade normativa. Deste modo, a vida na rua é obrigatoriamente definida como negativa dado que é percebida como não-normativa. Se a actividade voluntária dos sujeitos sem-abrigo é definida como inactividade, então, o sujeito que vive na rua é automaticamente caracterizado como anormal, como tendo uma existência patológica dado que nela está ausente qualquer capacidade normativa. Surgindo como negação simétrica da vida domiciliada, possuidora de uma actividade legitimada como tal, a vida na rua só pode surgir desqualificada. Os indivíduos sem-abrigo, ao não serem percebidos como capazes de desenvolver por si mesmos uma actividade (ao não serem percebidos como capazes por si mesmos de serem activos), deixam de ser considerados como seres dotados de capacidade de acção positiva e de reflexividade, o que não pode deixar de criar uma imagem de total incapacidade de um sujeito produzido narrativamente como imóvel.

Deste modo, a forma de intervenção sobre as vidas dos indivíduos sem-abrigo baseia-se numa permanente desqualificação das actividades não definíveis como actividade que são desempenhadas por estes sujeitos. Exogenamente, é outrem que não quem vive na rua que tem poder para legitimar o uso que os indivíduos sem-abrigo fazem do seu próprio tempo. As actividades não definíveis como actividade são, deste modo, reconfiguradas narrativamente, tornando-se no suporte praxiológico para a realização de uma continuidade de ocupações de "tempos livres" para os sujeitos sem-abrigo que, não trabalhando no mercado de trabalho oficial nem estando a participar em outras acções geridas por uma qualquer instituição assistencialista (e.g., cursos de formação)[12], são percebidos como necessitados de supervisão (quando não coerção) para a realização de qualquer actividade[13].

Realizando-se estas actividades de ocupação para quem é (definido como) inactivo dentro de heterotopias institucionais, torna-se de facto mais difícil aos indivíduos sem-abrigo poderem ocupar o seu tempo como bem desejarem - forma de ocupação essa que teria como uma das suas dimensões fundamentais o uso do espaço público. Esta injunção à actividade tem uma das suas expressões paradigmáticas no que experienciam os sujeitos sem-abrigo que residem temporariamente em centros de acolhimento. Não tendo uma actividade que o próprio sector assistencialista classifique como actividade ou actividade útil (e.g., trabalho no mercado laboral oficial ou participação num curso de formação), estes sujeitos confrontam-se com uma proliferação de actividades obrigatórias, institucionalmente organizadas e geridas, que visa ocupar todo o seu tempo (e..g., peças de teatro, oficinas de arte, trabalho agrícola). Acrescendo a estas actividades os rígidos horários de entrada e saída nestes locais, que se consubstanciam numa proibição destes sujeitos entrarem e saírem de modo voluntário dos espaços em que pernoitam (um direito fundamental dos indivíduos domiciliados), este tipo de heterotopia revela de facto uma dimensão carcerária que, não sendo idêntica à que se verifica nos espaços ideal-típicos do encarceramento (a prisão e o hospital, cf. Foucault, 2010, 2012), não deixa, por esse motivo, de ter certas propriedades isomórficas com estes espaços.

 

 

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Notas

[2] Todas as citações em língua original que não o português foram por mim traduzidas.

[3] Obviamente, espaços há em que a proibição de entrada é absoluta para os indivíduos sem-abrigo devido à estética que apresentam, que denuncia a sua impossibilidade de serem consumidores potenciais. Mas mesmo quando a proibição é "somente" condicional, ela torna-se absoluta para quem vive na rua: uma lógica de restrição de comportamentos traduz-se numa proibição de existência em certos espaços. Se os indivíduos sem-abrigo se dirigem a determinados locais para realizarem actividades que o resto da população executa na privacidade das suas residências - como, por exemplo, lavar-se - e se são estas as actividades que são proibidas nesses espaços, então, o que passa a ser impedido não é o comportamento de per se mas o próprio indivíduo que potencialmente o realizaria. O mesmo vale para a proibição de actividades como a mendicidade. Ao serem proibidas a sujeitos que não têm outra forma de obter rendimento, o que é impedido é a própria vida do indivíduo. A criminalização dos comportamentos "agressivos" - da "mendicidade agressiva", por exemplo - traduz-se numa criminalização quase que ontológica de um estatuto social. Vemos, portanto, que a mensagem veiculada se destina a eliminar comportamentos mas tem antes o efeito de eliminar as possibilidade de existência de quem é forçado a viver na rua. Uma proibição de jure de um comportamento, no caso do fenómeno dos sem-abrigo, consubstancia-se numa proibição de facto do direito a procurar melhores condições de vida.

[4] "Home is the place where, when you have to go there,/they have to take you in" (Frost, 1914). Esta definição de casa é usada por Gowan (2010: 231).

[5] Menezes (2008: 74-75) confirma esta oscilação sazonal entre "hospitalidade" e "inospitalidade" em Portugal.

[6] Distinção presente ao longo da história das sociedades ocidentais, que assume diferentes formas em diferentes períodos, mas que é redutível à dicotomia "bons pobres (merecedores)"/"maus pobres imerecedores)". Sobre este tema ao longo do tempo, cf. Castel (1996, 2009) e Katz (1989, 1995: 19-98). Para a história desta dicotomia em Portugal, cf. Pinto (1999) e Relvas (2002). No caso concreto do fenómeno dos sem-abrigo, cf. Damon (2008: 28-30) e Vexliard (1997: 61-124). Esta última obra fornece ainda uma contextualização sociohistórica da dicotomia repressão/hospitalidade no tratamento da pobreza sem domicílio.

[7] Apesar da expulsão mais ou menos violenta dos sem-abrigo dos locais em que se encontram pela polícia (ou seguranças privados de entidades comerciais) ser frequente (Meert et al., 2006: 24-28). Não só as formas declaradas de violência física ou verbal devem ser tidas em conta, mas também ocorrências mais subtis: "as pessoas sem-abrigo são sujeitas a um tipo de violência institucionalizada pela polícia: gestos que são aparentemente inócuos mas que tocam os limites das legalidade (por exemplo, pedir repetidamente os documentos de identificação a pessoas que são sem-abrigo como um tipo de pressão para as fazer ir embora dos locais)" (Meert et al., 2006: 26). Mateus (2007: 16-17) afirma que a intervenção policial com o objectivo de relocalizar os indivíduos sem-abrigo é frequente em Lisboa. Ao longo do meu próprio trabalho de campo sobre o fenómeno, realizado noutra cidade do país, foram frequentes os relatos de indivíduos sem-abrigo sobre expulsões e/ou proibições de entrada em locais tais como centros comerciais (por uso das casas de banho para a realização da higiene pessoal), estações ferroviárias (por uso das áreas de descanso para passageiros para se sentar ou dormir) e mesmo da rua no seu sentido literal (por nela dormir ou por esmolar com ou sem recurso à realização de uma qualquer actividade performativa, e.g., malabarismo).

[8] Segundo Gowan, "'NIMBY' é um acrónimo para 'Not in My Back Yard', um termo chapéu para a resistência comunitária à localização de abrigo para sem-abrigo, hospícios para doentes com HIV, lixeiras tóxicas ou quaisquer instituições que as organizações de residentes ou de comerciantes considerem ameaçar os valores de propriedade, a segurança do bairro ou o tom geral da 'comunidade', como quer que esta seja definida" (2002: 531).

[9] Sobre a pobreza em geral como questão de visibilidade, cf. Wacquant (2009).

[10] Segundo Menezes, em Portugal, "não existem actualmente medidas registadas de controlo social dirigidas aos sem-abrigo. Porém, o conhecimento de práticas discriminatórias existe numa base informal: durante a presidência portuguesa da União Europeia em 2000 houve acções de desmobilização dos sem-abrigo das zonas históricas centrais para outros locais menos visíveis; as alterações arquitectónicas, que incluem o fechamento de entradas de prédios em formato de arcada, são também verificáveis; o encerramento de casas abandonadas terminando-se com os squats, sem que sejam necessariamente propostas alternativas de acolhimento e apoio" (2008: 74-75).

[11] Historicamente, sempre mais válida para os indivíduos pobres do que para quaisquer outros. Apesar de actividade ter, na modernidade ocidental, uma valor inerente, de valer de per se, a sua valorização tem uma ligação fundamental a outra dicotomia moderna central: a relação autonomia/dependência. A actividade vale por si mesma mas vale também na medida em que permite aos sujeitos tornarem-se autónomos. Esta ligação narrativa que faz a actividade valer em função da autonomia que ela garante permanece mesmo que esta autonomia exista apenas no campo das representações e a situação objectiva dos sujeitos seja uma de dependência - o caso do operário fordista que trabalha para obter um salário que lhe permite sobreviver durante o mês, suportando o enorme diferencial de autoridade face aos seus superiores hierárquicos, é aqui paradigmático. Para quem é pobre, ser inactivo implica viver na dependência de outrem (pessoa ou instituição). Mas a dependência de outrem traduz-se, no caso da pobreza, numa vida de dificuldades materiais, de negação de direitos, de enormes diferenciais de poder. No caso das elites, a relação entre as dicotomias deixa de ter o mesmo valor - ainda que tal seja obscurecido pelas narrativas dominantes que enaltecem quer a actividade quer a autonomia. Aqui, o caso paradigmático será o do filho de uma família rica, dependente de uma geração anterior ou herdeiro, que, no primeiro caso, não é nem activo nem autónomo, e, no segundo, é inactivo e a sua autonomia é garantida à nascença. Mas a desqualificação social e a estigmatização não afecta sobremaneira este tipo de sujeito devido ao lugar estrutural que ocupa. Aliás, mesmo que a sua situação possa de algum modo ser negativamente representada, isso apenas afecta residualmente o bem-estar que a sua posição estrutural lhe garante - ao contrário do que ocorre com uma vida passada na pobreza. Sobre a relação autonomia/dependência, cf. Sennett (1993).

[12] A actividade realizada no circuito heterotópico apresenta-se como algo que vale de per se, dispensando outras considerações e mesmo dispensando um valor de produtividade material. A ligação entre as dicotomias actividade/inactividade e autonomia/dependência (vide infra, nota de rodapé 10) não tem uma tradução praxiológica quando a actividade é realizada por indivíduos sem-abrigo em heterotopias. Estes não se tornam autónomos graças a essa actividade; aliás, ela ocorre, por definição sistémica, dentro do contexto da sua dependência. Na medida em que todo o tempo dos indivíduos sem-abrigo passa a ser ocupado pela realização destas actividade institucionais da assistência, o simples tempo para estes sujeitos procurarem um emprego por sua conta revela-se extremamente reduzido, apontando para uma disfunção da própria assistência que dificulta o regresso ao mercado laboral. Importa não acentuar em demasia este último ponto, dado que a injunção assistencialista à actividade dos indivíduos sem-abrigo tem aspectos bastante mais fundamentais. Nomeadamente, onde esta forma de actividade revela ter valor por si mesma, sem se traduzir numa melhoria do bem-estar material dos sujeitos a ela forçados, é no facto de ela não garantir - de ela, estruturalmente, não poder garantir - emprego aos sujeitos. Em rigor, ela pode, na melhor das hipóteses, aumentar a empregabilidade dos indivíduos. Mas a empregabilidade é sempre precisamente isso: individual. Dado que, tal como Castel (2009) defendeu, vivemos hoje em sociedades caracterizadas por uma escassez de lugares estruturais, não só mas também uma escassez de lugares no mercado de trabalho, uma forma de intervenção assente na injunção à actividade que, eventualmente, pode aumentar a empregabilidade, não se revela capaz de solucionar o fenómeno dos sem-abrigo. Não tem este potencial pois, não visando qualquer alteração estrutural mas somente a adaptação dos sujeitos a uma estrutura naturalizada, o número de empregos não se altera pela acção assistencialista. Esta constatação é imediata se pensarmos que, com taxas de desemprego de dois dígitos, continuamos, enquanto sociedade, a insistir que a solução para cada indivíduo pobre (no caso, sem-abrigo, mas a observação tem maior amplitude) deixar de ser pobre é regressar ao mercado laboral. Ora, dado o contexto de escassez de lugares estruturais, cada entrada de sucesso, individualmente medida, de um sujeito pobre no mercado de trabalho cria e reproduz as condições necessárias para que outro sujeito, numa situação semelhante, fique desempregado. Num planeta globalizado, sem mudança estrutural fundamental, o mais que podemos almejar é deslocar os problemas para outro indivíduo, para outra família, para outra parte do país ou do mundo.

[13] Dado o que foi dito, é possível verificar um problema político fundamental nesta organização estrutural do modo de intervenção no fenómeno dos sem-abrigo. Se a suposta inactividade dos indivíduos sem-abrigo se traduz na sua imutabilidade e imobilidade, é possível observar que, sistemicamente, o conjunto de instituições que lida com quem vive na rua procura, ainda que de modo não intencional, tornar esta imutabilidade e esta imobilidade em profecias auto-realizáveis. Tal processo assume a forma de um double bind (Bateson et al., 1987), uma situação em torno de questões fundamentais para as possibilidades de vida dos indivíduos em que estes são confrontados com (pelo menos) duas mensagens contraditórias, sendo obrigados, para sobreviver, a obedecer a ambas, levando, por esse motivo, a que seja impossível realizarem uma escolha certa e, assim, remetendo-os para uma situação de imobilidade. Quem vive na rua recebe, por um lado, um injunção a mudar, a tornar-se activo (ainda que segundo os critérios e a orientação de outrem). Esta actividade é veiculada como o único modo destes sujeitos poderem "reintegrar-se". Mas, por outro lado e de forma concomitante, quem vive na rua recebe também uma outra mensagem mais englobante, mais geral e abstracta, que lhe diz que é ontologicamente imutável, um ser patológico, logo, incapaz de mudar, dado que é fundamentalmente diferente dos cidadãos domiciliados possuidores de uma actividade legitimada que garante a sua autonomia. Deste modo, gera-se uma situação de resposta impossível da qual é muitíssimo difícil sair e que remete vários indivíduos sem-abrigo para a imobilidade - não ontológica mas institucional, interaccional e estruturalmente produzida. Por este processo de double bind são criadas as condições de surgimento de um estranho sujeito imutável que deve, contudo, mudar; um sujeito que não pode deixar de ser inactivo mas que tem de ter actividade.

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