“A etapa primitiva da vida é aquela em que os guerreiros do Rei seguem o impulso. Executam as suas ações sem pensar seriamente nelas. Uma fase em que o Rei guerreiro passa o seu tempo em "guerras" com outros gangs, fumando maconha e tornando-se conhecido como grande e mau.” (Feixa & Andrade, 2020, p. 45, tradução nossa)
Um começo para conhecer César Andrade
O livro aqui objeto de análise, El Rey: Diario de un Latin King, surge de uma promessa feita há 15 anos por Carles Feixa2 a César Gustavo Andrade Arteaga3 - também conhecido como King Manaba -, e cujo teor se cimentou na escrita conjunta de um livro centrado na história de vida de King Manaba. Esta circunstância metamorfoseou-o desde logo, num livro-diálogo, num livro cocriado e que se posiciona entre a ciência e a sociedade. E sobretudo espelha a trajetória de excelência académica, científica e cidadã de Carles Feixa, marcada pela fenomenologia intensa da Escola de Chicago. Se mais não pudéssemos dizer acerca deste livro, diríamos que é, no mínimo, um marco para os estudos urbanos, para a antropologia, para a sociologia e para os estudos culturais que têm nos jovens e suas (sub)culturas o seu cerne (Bennett & Guerra, 2018; Guerra et al., 2020; Feixa & Pais, 2020; Feixa & Oliart, 2012).
Com efeito, esta obra inscreve-se nos estudos sobre (sub)culturas e está ligada à tradição americana revelada nos estudos realizados pelos sociólogos da Escola de Chicago, nas décadas de 20 a 40 do século XX (Muggleton, 2000; Pais, 2020). As primeiras pesquisas sobre as subculturas juvenis relevam aspetos dos comportamentos desviantes da juventude organizada em gangs: “a reputação de Chicago nos anos 20 ligava-se à magnitude das taxas de criminalidade da cidade. (...) A partir do momento em que se tornou evidente que a maioria dos padrões de comportamento criminal se reporta aos dias da juventude, as investigações sobre delinquência juvenil adquiriram uma importância estratégica” (Coulon, 1995, p. 72). Dentro do modelo ecológico, o conceito de subcultura surge como um marcante elemento de aclaração dos comportamentos disruptivos dos jovens, uma vez que as subculturas são perfilhadas como “subsistemas relativamente distintos enquadrados num sistema social e cultural mais vasto” (Feixa, 1999, p. 36). E, claro, que vão muito para além da patologia (Gelder & Thorton, 1997; Brake, 1980; Guerra & Quintela, 2020).
Os lugares das subculturas, dos gangs, são os lugares de segregação social: “Trasher constatou a existência de vários estratos urbanos concêntricos na cidade de Chicago: há um centro urbano, The Loop, onde se concentram o comércio, os escritórios e os bancos. Afastando-se do centro em direção à periferia, encontra-se uma série concêntrica de bairros onde moram as classes médias e, mais longe ainda, os das classes sociais abastadas, de implantação mais antiga. Entre o centro urbano e essas duas zonas, há outra que Trasher chama de intersticial, onde residem os imigrantes europeus, sobretudo polacos e italianos, assim como os chineses e os negros. É nesta zona, que não é intersticial apenas no plano da geografia urbana, mas também no plano social, que se concentra a violência e se encontram os gangs.” (Coulon, 1995, p. 62). Os gangs sobrevêm da afirmação da cidade como um núcleo relativamente grande, denso e permanente de indivíduos socialmente heterogéneos (Wirth, 1997, p. 4). Quanto maior é o número de indivíduos em interação, maior será a diferença entre eles; portanto, as diferenças pessoais, ocupacionais, só para exemplificar algumas, serão mais vincadas nos habitantes urbanos do que nos habitantes rurais. A partir disto, podemos afirmar que estas diferenças levam a uma separação dos indivíduos segundo vários fatores como a cor, o status económico, gostos, entre outros; outro fator de relevância é o enfraquecimento dos laços familiares e de parentesco, facto usual nos meios urbanos, e que rompe completamente com os laços sociais que se verificavam nas zonas rurais, como aldeias ou pequenas cidades, que se baseavam essencialmente no conhecimento pessoal. Outro fator característico, tendo já sido referido tanto por Aristóteles, como por Max Weber, é que a partir de um certo número de habitantes o conhecimento mútuo entre os indivíduos será nulo, o que levará à segmentação de papéis entre os homens, ou seja, apesar de estarmos menos dependentes de certas pessoas, o que facto é que nos tornamos cada vez mais dependentes de um maior número de pessoas para a satisfação das nossas necessidades, quer sejam básicas, como a alimentação, quer sejam mais específicas, como é o caso cultural (Whyte, 2002). Isto significa a passagem de contactos primários para contactos secundários - sendo esta uma característica substancial da teoria de Wirth - que apesar de serem cara a cara, são impessoais, transitórios, o que leva os indivíduos a adotar uma atitude blasé, que é um claro influxo de Georg Simmel: “a essência do caráter blasé é o embotamento perante as diferenças das coisas, não no sentido de que elas não sejam percebidas, como no caso dos estúpidos, mas de um modo tal que o significado e o valor das diferenças das coisas e, assim, das próprias coisas são apreendidos como nulos.” (Simmel, 2009, p. 43).
Regressemos a King Manaba
O primeiro contacto entre os autores deste livro deu-se 15 anos antes da sua publicação, no primeiro domingo de junho de 2005, por intermédio de um contacto feito pela diretora da organização Casal de Jóvenes e Transformadors de Barcelona. Carles Feixa, nessa época, só conhecia o gang através da imagem fornecida pelos média. Os Latin Kings, aos olhos dos média, eram frequentemente associados à morte trágica de um jovem colombiano chamado Ronny Tapias. O grupo foi condenado pelos média nacionais e alvo de estigma e ações persecutórias. O contacto com o grupo foi possível depois de Carles se ter tornado responsável por uma investigação académica incidente nos jovens de origem latino-americana em Barcelona - a partir do evento envolvendo a morte do colombiano -, tendo como objetivo investigar o que havia de mito e de real no caso e abordando os gangs latino-americanos como um todo.
A investigação de Carles Feixa foi sobretudo, um intenso trabalho de mediação educativa, societal, mediática e policial (Feixa & Pais, 2020). No primeiro encontro, Carles explicou a King Manaba - que se fazia acompanhar de mais dois colegas - os objetivos do estudo a ser desenvolvido, assim como as possibilidades de estabelecer contactos com as autoridades. Ficou combinado para um momento posterior uma conversa. Numa demonstração de abertura e de confiança, Carles Feixa fez-se acompanhar de sua filha. A confiança do grupo em Carles não foi imediata. Os Latin Kings suspeitavam que o investigador poderia estar ligado à polícia ou ser um jornalista. Neste primeiro encontro, Carles confirmou que não se tratavam de criminosos, ao contrário do que era representado pelos média. Eram, outrossim, um grupo de jovens de rua de perfil transnacional - idênticos aos que Feixa havia estudado nos anos 1980. Não obstante, desde esse primeiro momento, apareceram com uma “organização e uma elaboração simbólicas muito mais sofisticadas do que as dos gangs que havia estudado até então” (Feixa & Andrade, 2020, pp. 12-13).
“O ano que se seguiu a esse encontro foi frenético. Terminámos a nossa investigação e fizemos a sua apresentação no Centro de Cultura Contemporánea de Barcelona em novembro de 2005, num congresso no qual, para além dos duzentos académicos e profissionais, participaram uma centena de Latin Kings & Queens, além de membros do suposto gang rival: los Ñetas (o livro resultante do estudo apareceu no ano seguinte e teve um grande impacto, embora ainda não se concentrasse no estudo de gangs, mas sim no processo de migração e de receção de jovens latinos em Barcelona; ver Feixa et al., 2006).” (Feixa & Andrade, 2020, p. 13, tradução nossa).
Logo em seguida, Carles Feixa iniciou um projeto de investigação sobre organizações juvenis de rua. Paralelamente, iniciou-se o processo de legalização dos Latin Kings com o apoio de entidades como a Fedelatina e o Instituto Catalán de Derechos Humanos, culminando, em agosto de 2006, com a formação da Organización Cultural de Reyes y Reinas Latinos4 da Catalunha. Em 2011, a situação dos gangs não tinha mudado e o novo conselheiro interno do governo catalão, Ramon Espadaler, comunicou um período de governação com “punho de ferro”, significando isto uma transformação social e institucional, em que passou a ser idolatrada uma perspetiva que priorizava a intervenção policial. Iniciou-se, assim, um período em que todos os membros de gangs eram representados novamente como delinquentes. Concomitantemente, vivenciava-se uma profunda crise económica e financeira. Tudo isto afetou o projeto iniciado por Carles Feixa. Esta situação só seria invertida com o projeto TRANSGANG5, liderado por Carles e iniciado em janeiro de 20186.
Pululam várias versões de como surgem os Latin Kings em Chicago, variando as épocas e as circunstâncias. A versão utilizada pelos autores é a de que os Latin Kings surgiram como um gang de rua no bairro latino em Chicago e se formaram oficialmente na prisão. Posteriormente, ampliaram-se nos anos de 1970 pelos Estados Unidos, mormente na costa leste devido à presença da comunidade imigrante porto-riquenha e caribenha. Refletindo acerca da ligação dos Latin Kings a Chicago, é inevitável estabelecer uma analogia com os trabalhos de Thrasher (2013), pois define os gangs como sendo o fruto de uma organização espontânea: como uma forma de sociabilidade e cujas semelhanças se podem verificar nos Latin Kings, dada a necessidade de integração social e de criação de relações interpessoais num contexto geográfico e social desconhecido, uma vez que se tratava sobretudo de imigrantes. Apesar deste livro nos levar para uma perspetiva mais intimista sobre os processos de integração no gang, sobre as vivências e sobre as histórias de vida, ele também nos desperta a curiosidade para saber mais sobre os gangs e sobre as suas diversas manifestações sociais, ou seja, entender os seus quotidianos e até mesmo as suas produções artísticas (Bennett & Guerra, 2018; Feixa & Guerra, 2017).
Fonte: https://www.elnacional.cat/es/cultura/rey-diario-latin-king-manaba-carles-feixa_472053_102.html
Alguns anos antes, em 1994, um membro equatoriano de Nova Iorque, nomeado King Boy Gean, foi expatriado para o seu país de origem, onde fundou a Nação pelo nome de Sagrada Tribu Atahualpa Ecuador, principiando o processo de transnacionalização. No ano de 2000, outro Latin King do Equador, King Wolverine, emigrou para Espanha, fundando, de forma independente, a Sagrada Tribu América Spain. Em 2006 forma-se a fação catalã - Organización Cultural de Reyes y Reinas Latinos de Cataluña, com apoio do governo catalão. Seguindo a via catalã, em 2007, o governo equatoriano legalizou os Latin Kings como Corporación de Reyes y Reinas Latinos de Equador num processo de mediação que reduziu significativamente a criminalidade (Brotherton & Gude, 2018). Esta visão dos processos e etapas que os Latin Kings enquanto instituição atravessaram, levam-nos para uma abordagem reflexiva e analítica que procura ir além do que é visível ou retratado pelos média acerca dos gangs, demonstrando que também eles são afetados pelos processos de hibridização pós-estruturalistas, uma vez que os gangs também vivem divididos entre o local e o global, entre o hegemónico e o transgressivo, entre os centros e as periferias urbanas (Feixa & Nilan, 2009). Tais questões estão plasmadas neste livro, pois, na contemporaneidade, os Latin Kings estão na maior parte dos países latino-americanos, além dos europeus e asiáticos.
As buscas por “Latin Kings” na Internet originam milhares de resultados, sendo que a maioria notícias os vinculam ao crime organizado. Uma realidade que contrasta com as investigações académicas sobre ela produzidas, que possuem nos exemplos de Conquergood (1994) e Brotherton & Barrios (2003) outras formas de perceber esse fenómeno, bem como as suas formas de comunicação verbal e não verbal. O presente livro almeja preencher esse vazio enviesado. Nele, a trajetória dos Latin Kings surge focada na vida de César Andrade, que nasceu duas vezes: a primeira em Manabí, no interior do Equador, em 1976; e a segunda em Santo Domingo, também no Equador, em 1996 e com 20 anos de idade. Foi nessa altura coroado como Latin King, recebendo o nome de King Manaba. Decidiu emigrar para expandir a Nação, chegando a Madrid em 2003 e a Barcelona em 2005. O processo de legalização da organização foi vivido intensamente, atrelado a dificuldades pessoais, como o divórcio de sua antiga parceira, a divisão do grupo em várias fações, e a vivência do desemprego e da prisão. Deixemos com Carles Feixa - no Prólogo - a descrição desta vida:
“No caso da história do King Manaba, trata-se de ler a sociedade contemporânea (…) por meio da biografia de um jovem integrante de um gang, iniciado como Rei Primitivo numa cidade costeira do Equador, que emigrou para Madrid e Barcelona, onde alcançou a categoria de inca, e que depois de passar pela prisão como um Rei Conservador, renasceu mais tarde como um Novo Rei (tornando-se algo republicano nos últimos anos, devido à convivência com outro «gang», o dos investigadores do projeto TRANSGANG). Por outro lado, a história do King Manaba pode ser lida como a síntese vertical de uma história social: a do êxodo latino-americano para a Europa (crise no Equador e no dólar, emigração para Espanha, chegada em tempos de vacas gordas, crise na Espanha, retorno voluntário versus permanência, clandestinidade versus regularização, etc.). Por outro lado, também pode ser lida como a síntese horizontal de uma estrutura social: aquela que origina, mantém e persegue os gangs como grupos juvenis de rua (origem no gueto norte-americano, refundando na América Latina como efeito da política de deportação, transnacionalização para a Europa, segregação social da imigração, «tolerância zero» versus políticas «inclusivas», influência das representações dos média, discursos xenófobos, expansão do estado penal neoliberal, etc.). Mas longe de ser um fantoche preso entre as duas coordenadas (horizontal e vertical), o King Manaba surge como um ator consciente e reflexivo, capaz de enfrentar seu destino e assumir o controle de sua vida. (…) Embora a narrativa autobiográfica possa ser lida como uma “obra aberta” sujeita a diferentes leituras, de modo que o leitor se torna um (co) autor e a interpretação é polissémica e polifónica (…), a nossa chave principal de leitura inspira-se na «imaginação dialógica» proposta por Mikhail Bakhtin (1981), mais especificamente no conceito de cronotopo, que em outro lugar procuramos aplicar ao estudo das culturas juvenis (Feixa, Leccardi & Nilan, 2016). (…) Bakhtin mostrou que a compreensão do espaço e do tempo num romance (o mesmo pode ser aplicado à autobiografia) depende da capacidade hétero-glóssica (ou seja, da capacidade de ecoar outras vozes, de interpretá-la não apenas dependendo do texto, mas também no contexto). Essa capacidade surge de um duplo diálogo: do «dialogismo interno» fruto da interação do sujeito com sua própria memória; e do «dialogismo externo» resultante da interação com o meio social representado pelo público (ou pelo investigador que pergunta, transcreve e interpreta o que é falado).” (Feixa & Andrade, 2020, pp. 32-33, tradução nossa).
Atos para se ser um Rei
O livro inicia-se com o “Prólogo: King Manaba visto por Carles Feixa” e termina com o “Epílogo: King Manaba visto por César Andrade”, sendo ainda complementado por um glossário e uma cronologia. O miolo do livro organiza-se em três partes, onde se distribuem 12 conversas e três folhas (de imagens, das cartas da prisão e de recortes de imprensa). A proposta metodológica foi inspirada na ideia de imaginação dialógica de Bakhtin (1981), não sendo “um monólogo do entrevistado nem uma reelaboração literária do entrevistador, mas o diálogo entre ambos, em que a autoria e os possíveis benefícios ou prejuízos que derivem dela também são compartilhados” (Feixa & Andrade, 2020, p. 26). Deste modo, o livro é dividido em três partes, que expressam as cores e estados que perpassam a coroação de um indivíduo como sendo um Latin King, e além disso o livro também segue um imperativo cronológico das entrevistas - emergindo, assim, passagens biográficas repetidas em determinadas entrevistas, fotografias, cartas e recortes de jornais (Feixa, 1998, 2006, 2018; Feixa et al., 2011).
Fonte: https://www.facebook.com/LATIN-KINGS- Fonte: https://www.elnacional.cat/es/cultura/transgang-bandas-juveniles
A primeira parte da obra apresenta-nos o “Rey primitivo (1996-2005)”. Nesta, César descreve a sua vida no Equador. Embora tenha nascido em Portoviejo, Manabí, a sua família estabeleceu-se em Santo Domingo, localidade na qual viveu durante a adolescência e onde entrou em contacto com os Latin Kings. Logo desde a sua coroação, King Manaba foi sempre ocupando cargos de responsabilidade na Nação, até ser forçado a emigrar para Madrid devido à perseguição policial e à ajuda e encorajamento da sua mãe e irmã. Foi, no entanto, forçado transitoriamente a deixar no Equador a sua companheira, King Melody, a sua enteada e o seu filho. Não obstante alguma tensão com outros Latin Kings, nomeadamente da rival e independente STAS (Sagrada Tribu América Spain, fundada por King Wolverine em Madrid no ano 2000), King Manaba consegue alargar a sua Nação a cidades como Saragoça, Valladolid e Barcelona, atingindo o desejado reconhecimento como líder da sua tribo em Espanha. Conjuntamente, a sua mensagem espalhava-se por mais cidades do Sul de Espanha. Uma vez concluída a primeira fase da missão de King Manaba, chegava a altura de passar a uma fase de consolidação da Nação King e de César ascender ao patamar de Rei conservador.
A segunda parte do livro tem por título “Rey conservador (2005-2009)”. Expõe uma fase de desenvolvimento, associada à cor castanha, em que King Manaba se foca - quase exclusivamente na disseminação da Nação, num frenesim de atividades que inclui instituir contactos, mediar interações com as autoridades civis, religiosas e policiais e estimular projetos artísticos. Não obstante, a opinião pública e política acerca da existência e atividade da Nação vai-se degenerando ao longo dos anos, tornando a relação de King Manaba com Carles Feixa num dos poucos trunfos restantes da Nação face à hostilidade generalizada. É similarmente durante este período que o Supremo Tribunal espanhol emite uma deliberação que marca a STAS como ilegal pelo crime de associação ilícita. Esta decisão anunciava o purgatório (2009-2014) vivido por César e que começou com a sua detenção em 2009, quando se deslocava às Ilhas Canárias para tomar parte num negócio ilegal. Seguem-se anos de procedimentos legais, entre julgamentos, prisão e liberdade condicional, que se afiguram como um purgatório em vida. Já em liberdade, ainda que condicional, King Manaba decide mudar o rumo da sua vida e da Nação ao assumir um papel de menor protagonismo, nunca esquecendo, no entanto, o seu estatuto como parte da Nação.
Na terceira parte emerge um “Novo Rey (2014-2020)” em que King Manaba é absolvido de todas as acusações, no início de 2020, e contactado para passar a fazer parte do Projeto TRANSGANG (Feixa et al., 2019).
Os espaços e tempos da vida do King Manaba podem ser sintetizados em sete cronotopos centrais: a Nação, a nação, a fronteira, a esquina, o dourado, o negro e o castanho. Em primeiro lugar, a Nação (em maiúsculas), é o espaço-tempo da Todopoderosa Nación de Reyes y Reinas Latinos - com os seus mitos de origem, os seus ritos de passagem, os três estados (Rei Primitivo, Rei Conservador, Novo Rei), as suas quatro fases (Observação, Cinco vivos, Provação e Coroação), os s cinco pontos (Amor, Honra, Obediência, Sacrifício, Retidão), a organização formal em capítulos, setores e tribos, a organização informal em fações, clãs e gerações, o seu calendário anual de encontros locais e universais, e seu culminar em 360 (o círculo hermenêutico e social da comunidade imaginada, que alguns interpretam como o círculo da dor onde os neófitos devem suportar os golpes dos iniciados). Em segundo lugar, a nação (em minúsculas) é o espaço-tempo transnacional que conecta a identidade de origem (Equador) e a identidade de destino, por sua vez binacional (Espanha-Catalunha), o que se expressa no conceito de “Nação das nações”, uma constante nesta história. Em terceiro lugar, a fronteira refere-se às barreiras físicas, legais e simbólicas que separam os continentes, os países, os bairros e gangs rivais, bem como as instâncias (políticas, policiais, mediáticas) que edificam muros e fundamentam a exclusão. Em quarto lugar, a esquina refere-se às conexões e às alianças que permitem cruzar ou atenuar essas fronteiras, bem como aos locais de abrigo (parques, casas juvenis, paróquias, discotecas, etc.) onde se tecem laços fraternais e de afeição. Em quinto lugar, o dourado refere-se tanto à primeira fase da vida do protagonista (a do Rei primitivo) quanto aos momentos luminosos e os criativos vividos dentro e fora da Nação. Em sexto lugar, o negro alude tanto à segunda fase da vida do protagonista (a do Rei conservador) quanto aos momentos sombrios e depressivos na prisão e/ou em espaços de isolamento e de fracasso. Por fim, em sétimo lugar, o castanho refere-se tanto à terceira fase da biografia do protagonista (a do Novo Rei), como às experiências de hibridização e de mediação cultural nas quais tem participado - desde o seu compromisso com o processo de constituição de associação à sua interação com os investigadores do projeto TRANSGANG, passando pela sua tarefa de “pacificador” entre diferentes fações do grupo e entre grupos rivais. A força castanha é a poção mágica que lhe permite renascer como um Rei republicano, de acordo com a clássica metáfora da Fénix renascida. (Feixa & Andrade, 2020, pp. 33-34, tradução nossa).
A história de vida de Manaba patenteia uma hipótese de dar voz às culturas dominadas e invisibilizadas. A prisão, como exemplo, foi um lugar em que a reflexão sobre o próprio passado e sua identidade surgem “espontaneamente e se comunicam em direção ao exterior através de diferentes formas de escrita (carta, memória, graffiti, tatuagem)” (Feixa & Andrade, 2020, p. 35). Os Latin Kings enquanto subcultura atuam como um reflexo de uma estrutura social desigual em termos de recursos, porém, também se assumem como “uma grande força progressiva, como experiência de apoio mútuo e resistência, como canal para expressar a voz dos oprimidos” (Feixa & Andrade, 2020, p. 36). E isto claramente lembra-nos Hebdige (Guerra et al., 2020; Hebdige et al., 2020):
“Os indivíduos apenas realizam as suas relações e os seus processos sociais através das formas em que estes lhes são representados. Essas formas (…) estão envoltas num «senso comum» que simultaneamente as valida e as mistifica. São precisamente esses «objetos culturais percebidos-aceites-sofridos» que a semiótica pretende «interrogar» e decifrar. Todos os aspetos da cultura possuem um valor semiótico, e os fenómenos que surgem como factos estabelecidos podem funcionar como sinais: elementos em sistemas de comunicação governados por regras e códigos de semântica que não são diretamente apreendidos pela experiência” (Hebdige, 2018, p. 31).
Este livro existe para desconstruir e denunciar o desconhecimento que circunda acerca do movimento da Nação King. Para King Manaba, a dimensão comunitária e de pertença face à Nação é um aspeto chave da existência contínua do movimento. O relato apresentado neste livro sobre a Nação King, através da experiência na primeira pessoa de King Manaba, contraria uma interpretação simplista das sub- ou contraculturas. Com efeito, a densidade das relações sociais inter e intra-grupo, bem como o contexto social mais alargado em que este movimento se integra combina com um cariz ideológico de defesa de um determinado conjunto de valores, uma forte marca religiosa e um cariz cultural, direcionados para e, em muitos casos, produzidos por jovens. O apelo desta natureza multidimensional é ilustrado pelo alcance transnacional da mensagem da Nação. No fundo, o propósito da Nação King está no obsequiar um espaço de identidade e de liberdade de ser, de viver e de imaginar (Feixa & Figueras, 2018; Guerra et al., 2020; Guerra, 2018; Guerra, 2020; Guerra, 2021).
Um fim que é um (re)nascer
Detenhamo-nos no “Epílogo: King Manaba visto por César Andrade”. Resulta de uma reflexão de César Andrade, ao ler e corrigir a sua biografia. É um “esforço de introspeção e autoanálise, mas também de um olhar ao entorno social. Serve para fazer um balanço de sua vida e da vida de sua Nação” (Feixa & Andrade, 2020, p. 435). Ao dialogar sobre o seu próprio percurso, César observa como King Manaba está no processo das três etapas de um Rei, e percebe o seu amadurecimento nesse desenvolvimento, porque “já não quer problemas nas ruas, já não quer problemas de tipo algum, está focado apenas nos seus familiares e amigos próximos, no seu trabalho, seus estudos” (Feixa & Andrade 2020, p. 437). Assume que todo o Rei ou Rainha Latino deve ajudar os jovens, preparando-os e educando-os, aliando os valores da Nação aos familiares, devendo ser um Rei ou Rainha para o bem de sua comunidade. O processo de recordar foi comovente para César, pois a partir do ato de reler as versões do livro ia rememorando os vários momentos vividos em todo esse tempo. Atesta que no decorrer de todo o percurso nunca deixou de ser um Latin King:
“A rua faz-te sentir inteligente também, as experiências que tu vives na rua e aqui também, em Barcelona, bem como a rota que fiz por quase toda a Espanha visitando os diferentes grupos de irmãos e amigos que eu tenho, são coisas que no final te fazem amadurecer e te fazem ser um pouco mais cauteloso e um pouco mais inteligente nesta vida” (Feixa & Andrade, 2020, p. 439, tradução nossa).
A lembrança do passado envolveu tanto as suas lembranças de infância na terra natal com a sua família, como as suas experiências na Catalunha na fase da formação legal da Nação, que define como sendo uma experiência bonita. Sobre o que gostaria de olvidar, o episódio remete para a sua experiência na prisão:
“Porque não é esse exemplo que eu gostaria de dar ao meu filho, muito menos aos jovens, nem aos membros da minha organização, embora quando tiver a oportunidade e um dia eu vou sentar-me e conversar com o meu filho e contar-lhe tudo, eu não tenho que esconder nada dele, ele deveria saber que quando tu cometes erros, aprendes com eles, mas que ele está a tempo de não cometer tais erros e que é uma experiência da minha vida.” (Feixa & Andrade, 2020, p. 441, tradução nossa).
A sua prisão não se deveu ao facto de ser um membro dos Latin Kings. Contudo, foi incluído num ficheiro que o levou a ser encarcerado numa ala com presos mais perigosos, não podendo ir ao pátio, realizar atividades com os presos normais, passando quase todo o tempo na cela.
“Em muitos casos, senti-me oprimido apenas pelo simples facto de fazer parte de uma organização de rua, mas com isso não quero dizer que todos os presos fossem tratados assim; a maioria foi tratada como normal, eu fui tratado de forma diferente por ser ou ter sido líder de um grupo juvenil criminoso” (Feixa & Andrade, 2020, p. 443, tradução nossa).
É ainda realçado por César que almeja um futuro mais otimista para os jovens, principalmente, permitindo que se preparem, estudem e “sejam alguém”. Gostaria de passar mais tempo com o filho e de recuperar o tempo com ele, além de ajudar os “irmãozinhos”7, como faz há muitos anos. Também tem estudado sobre som, já que é uma de suas paixões, juntando isso a outros projetos:
“Um dos meus objetivos e propósitos é montar o meu estúdio caseiro de gravação de música para dar oportunidade a muitos jovens que por vezes não têm o apoio necessário e, embora sejam talentosos, não têm recursos financeiros para o poderem gerir suas demos ou suas produções musicais” (Feixa & Andrade, 2020, p. 447, tradução nossa).
César sempre teve um desejo de manifestar as suas vivências das ruas e os seus sentimentos. Por essa vontade ser tão forte e marcante, aceitou participar no projeto TRANSGANG, pois assim entenderia melhor o trabalho de um investigador e desenvolver-se-ia enquanto indivíduo, quase que voltando à primeira fase de um Rei, em que a busca pelo conhecimento é notória.
“Há algum tempo, quando o Carles me pediu para fazer parte da equipa e fazer parte do projeto TRANSGANG, não hesitei por um segundo. Em primeiro lugar, porque sei que isso me ajudaria a compreender o trabalho que implica ser investigador, e também porque tinha a certeza de que aprenderia muito do ponto de vista pessoal. Eu não tinha ideia no começo, mas tinha certeza que iria aprender, e muitas vezes o Carles, que é o PI (investigador responsável) do projeto, disse-se que eu tinha de comparecer às reuniões, mas no começo (…) achei que estava a perder o meu tempo aqui, porque não sabia do que eles estavam a falar [risos] mas aos poucos fui me integrando” (Feixa & Andrade, 2020, p. 447, tradução nossa).
“E não é que eu tenha aprendido tudo, mas estou envolvido no projeto e agora sei do que se trata. Além disso, tudo isto tem a ver com grupos e movimentos juvenis transnacionais. Havia muitas coisas que eu não sabia, mas aos poucos fui aprendendo e conhecendo um pouco mais sobre os investigadores. Os meus colegas também me ajudaram e continuam a ajudar-me em todas as dúvidas ou coisas que não conheço: Carles, Jose, Edu, María José - que não está connosco agora, mas esteve sempre; María, Ana, Nele, Adam, Lara - esta embora não faça parte da equipa, ela me ajudou em muitas coisas sobre o projeto. Todos eles me fizeram sentir parte da equipa. Sinto-me empenhado em ajudar, em fazer contactos com irmãos mais novos de Nova Iorque, de Chicago, de outros países, porque graças à Nação conheço muitas pessoas que fazem parte do meu grupo e tenho muitas relações pessoais. Eu já me sentia parte dessa equipa muito antes de chegar aqui, porque o Carles já me tinha falado deste projeto e, portanto, já me sentia parte desta equipa, e para mim trabalhar com o Carles é uma honra”. (Feixa & Andrade, 2020, p. 448, tradução nossa).
Um cronos8 com paragens
Data | Local | Latin Kings | King Manaba | Idade |
---|---|---|---|---|
1962-1963 | Chicago | Fundação da Organização Latin Kings | ||
1970s | Chicago | Manifesto e constituição da ALKN (Almighty Latin King Nation) | ||
27-02-1976 | Portoviejo - Manabí, Ecuador | Nascimento de César Andrade Arteaga | ||
1986 | Nova York | Implantação da ALKM em Nova York por King Blood na prisão Collins Correctional | ||
1993 | Nova York | King Blood reconhece Queen Zulma como líder das Latin Queens. Adição da letra Q à sigla, passando a ALKQN | ||
1994-07-06 | Guayaquil, Equador | Fundação STAE Equador - King Boy Gean | ||
1995-04-21 | Nova York | King Tone é nomeado inca da ALKQN | ||
1996-04-21 | Santo Domingo, Equador | Batismo como King Manaba na Nação | 20 | |
1997-04-20 | Guayaquil. Equador | Separação da fação de King Boy Gean (Nova York) | ||
1998-08-28 | Quito, Equador | King Majesty (da fação de King Lucky) sobe ao poder na STAE | ||
1998 | Nova York | Operação Corona (NY Police Department) Detenção de King Tone | ||
2000-02-14 | Madrid | Fundação da STAS por King Wolverine | ||
2003-02-13 | Madrid | Emigra para Madrid | 27 | |
2003-05-03 | Madrid | Operação Check Mate (detenção de King Wolverine) | ||
2003-10-28 | Barcelona | Homicídio de Ronny Tapias (Ñetas vs. Latin Kings) | ||
2005 | Barcelona | Emigra para Barcelona | 29 | |
2005-06 | Barcelona | Julgamento do caso Ronny Tapias | ||
2005-06 | Barcelona | Ação policial em Casal de Joves de Transformadors | Primeiro contacto entre King Manaba e Carles Feixa | |
2005-11-20 | Barcelona | Universal no Casal de Joves de Transformadors | Organização do Universal e convite a investigadores e a Ayto. | |
2005-11-22/24 | Barcelona | Jornadas Jovens Latinos em Barcelona, CCCB- Ayto | Participação | |
2006-02-21 | Galapagar, Madrid | Operação Pañuelo contra a STAS | ||
2006-06 | Barcelona | Constitução da Organización Cultural de Reyes y Reinas Latinos de Cataluña | Participação | |
2006-2008 | Barcelona | Projeto Fedelatina | Participação | |
2007 | Barcelona | Constituição da Associação Sociocultural, Musical e Desportiva Ñetas | ||
2007-05 | Madrid | Primeiro veredicto contra a STAS por associação ilícita | ||
2007-8-22 | Equador | Constituição da Corporação de Reyes e Reinas Latinos do Equador | Contactos /conflitos com líderes do Equador | |
2007-2008 | Barcelona | Projeto Unidos por el Flow | Participação | |
2008-06-11 | Barcelona | Audiência na Comissão de Juventude do Parlamento da Catalunha | Participação | |
2008-2009 | Barcelona | Projeto Fotografia MACBA | Participação |
Fonte: Feixa & Andrade, 2020, pp. 469-472; Molina, 2020, pp. 280-282.