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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.au21  Lisboa out. 2021  Epub 20-Out-2021

https://doi.org/10.15847/cct.25466 

RECENSÃO

Jóvenes y creatividad: Entre futuros sombrios y tempos de conquista1

2Universidade do Porto, Instituto de Sociologia, Griffith Center for Social and Cultural Research, Portugal, pguerra@letras.up.pt


O livro “Jóvenes y creatividad” de José Machado Pais é, sem dúvida, um livro-marco. Primeiro, porque é um convite a pensar a juventude - de forma poliédrica - com um olhar diacrónico e sincrónico, entre o passado e o presente, mas sobretudo com os olhos postos no futuro. Segundo, porque este livro repõe a tónica na criatividade juvenil há muito afastada das narrativas das ciências sociais: assim, recupera a criatividade inconformista juvenil e coloca-a ao serviço do enfrentamento da crise e dos seus intensos desafios societais, mostrando a sua vivacidade, nestes tempos sombrios, quer na reinvenção de estratégias de profissionalização ou culturais laborais, quer na apresentação das suas manifestações artístico-culturais como novas formas de cidadania atuante (Hebdige et al., 2020). Terceiro, porque este livro se assume como uma coletânea de diversos estudos e perspetivas de José Machado Pais: um investigador inspirador, profícuo e emblemático - de alcance mundial - acerca da juventude. São, assim, apresentados inúmeros trabalhos sobre as imigrações, a criatividade, a cidadania, a juventude e os movimentos sociais. Na verdade, trata-se de uma análise a um conjunto de textos exemplares da Sociologia que, por sua vez, marcaram e continuarão a marcar a investigação académica (Guerra, 2010; Guerra, 2016a; Guerra & Quintela, 2020) e não só. Organiza-se em cinco capítulos: 1. Esperança em gerações com um futuro sombrio; 2. Em busca de um Ocidente: jovens imigrantes; 3. Cidadania e participação; 4. Comics: a obliquidade em futuros por inventar; 5. De que será feito o amanhã para os jovens de hoje? Como se tudo isto não fosse demasiado relevante, ainda nos oferece um excelente prólogo de Carles Feixa: outro nome incontornável e global acerca dos estudos da juventude e suas encruzilhadas contemporâneas.

Todos os contributos patentes neste livro concorrem para um entendimento da juventude enquanto um grupo/cultura/geração latente-omnipresente das sociedades contemporâneas. Não obstante essa ambiguidade, Machado Pais expõe que, em tempos de crise, os jovens são o motor da revitalização da sociedade, especialmente no que diz respeito ao desvendamento de novos rumos sociais, de questionamento de dilemas e de debuxo de desafios. Na verdade, em entrevista recente, Machado Pais refere que as suas próprias experiências de juventude foram determinantes - sendo determinante o seu contacto com a música (Pàmpols & Pais, 2020) - e, desde então, tem ido atrás dos ventos do tempo, procurando compreender de que modo os jovens lideram a participação social e o campo cultural. Assim, pelo percurso de Machado Pais enquanto juvenólogo ou sociólogo da juventude, podemos ver plasmadas, neste livro, um conjunto de prospetivas, de diagnósticos e de prognósticos em torno dos jovens, da cultura e das sociedades pelos e nos jovens. Estes contributos teóricos e empíricos conduzem a processos reflexivos sobre a escala Ibero-americana, mas também global. E isso é deveras marcante.

O primeiro texto que inaugura o livro aqui em análise intitula-se “Esperança em gerações com um futuro sombrio” e foi publicado pela primeira vez em 2012. A ideia de tropos, neste primeiro capítulo, remete para uma liminaridade, ou seja, para um campo de possibilidades, de ambiguidades e de anomias que caracterizam a existência dos jovens num contexto global, daí que surjam alterações quanto à normatização que é feita - especialmente por parte de estudos europeus - quanto às formas de se representarem e analisarem as diferentes fases de vida dos indivíduos. Encontramo-nos, outrossim, perante processos de entropia que, por sua vez, podem dar origem a movimentos sociais que se cimentam em sentimentos de indignação profundos resultantes da incapacidade dos sistemas darem resposta às necessidades dos jovens. Esta incapacidade de resposta, partindo dos contributos de Machado Pais, encontra-se de certo modo relacionada com os movimentos sociais (juvenis) que explodiram no pós-2008, por todas as partes do mundo, podendo os mesmos ser identificados e classificados como transnacionais, dado que os sentimentos dos jovens correspondem a um desfasamento entre as expectativas e os resultados, especialmente no campo do emprego e da desvalorização em torno dos títulos académicos. Estes movimentos sociais, tal como destaca Pais, consentiram o encontro de novas propostas de comunitarismo que, paralelamente, equacionam uma nova ordem social (Guerra et al., 2020). Tal ordem social interliga-se com o exercício de práticas sustentáveis, com o consumo de produtos naturais e com a necessidade de cuidar da terra e de viver em comunidade. Trata-se de uma espécie de hiper-referencialidade que é manifesta num descontentamento social e que projeta críticas ancoradas em valores e em ideais sociais. Para o caso português, alguns dos movimentos sociais ficaram pautados pelo acampamento de jovens junto de praças públicas nas principais cidades do país. Nesse sentido, a ocupação simbólica do espaço público acentuou a distância entre os jovens e o poder institucional. Em Lisboa - um dos exemplos dados - existiam círculos de pessoas de mãos dadas que rodeavam a Praça do Rossio. Estas expressões afetivas, como nos refere Pais, incentivaram simbologias e significados simbólicos que eram partilhados. Então, este livro vem-nos demonstrar que as dimensões afetivas das manifestações pacíficas vêm contrariar as teorias funcionalistas que caracterizavam os movimentos sociais precedentes, pois eram encarados como sendo principiados por grupos marginais e delinquentes produzidos dentro de um contexto de anomia (Smelser, 1963) na boa tradição funcionalista (Guerra & Quintela, 2016b).

Aqui, Machado Pais argumenta que os jovens utilizam a sociabilidade como uma escapatória face às contrariedades da vida. Contrariamente, os idosos tendem a isolar-se e, com isso, a perda do sentimento de pertença é um dos fatores mais associados à solidão e ao desencantamento pela vida, sendo um passo para a morte simbólica (Pais, 2020, p. 40) no tocante à população idosa. Com esta ideia de sentimento de pertença que Machado Pais nos oferece, avançamos para o segundo capítulo/parte do livro. No capítulo dois, o autor oferece-nos um relato, escrito na primeira pessoa, sobre um encontro que teve com um indivíduo imigrante no aeroporto, num dia em que viajou para a Roménia e denomina-se “Em busca de um Ocidente: jovens imigrantes”. Este capítulo assume-se como um diário da sua estadia na Roménia, em que nos vai deliciando com pequenos apontamentos sobre o seu quotidiano num país onde se vai encontrando com dualidades complexas especialmente no que diz respeito aos modos de vida dos jovens que habitam nas zonas mais rurais. Neste capítulo, é-nos ofertada uma visão ampla sobre a Roménia, apresentando-a como um vasto campo de assimetrias estruturais. Tal entendimento advém - e cimenta-se - no facto de um número elevado da população ainda viver numa sociedade pré-moderna, em que cerca de 50% da população sobrevive da agricultura. Mais ainda, devido aos processos de urbanização que se sucederam entre as décadas de 1970 e 1980, muitos dos cidadãos romenos reivindicavam as formas tradicionais de vivência da vida campestre, enfatizando os movimentos migratórios. Dentro de tal panorama, os jovens que subsistiam nos meios rurais procuravam dar um estilo à sua aparência, seguindo as modas urbanas em que as discotecas eram o epicentro da diversão e das culturas urbanas globalizadas. Deste modo, Machado Pais também nos informa sobre a proliferação de valores hedonistas entre os jovens rurais, mas também sobre as dificuldades crescentes face à entrada no mercado de trabalho, à precarização do trabalho e do emprego, ao carácter obsoleto das qualificações escolares e profissionais. Numa palavra: uma narrativa empolgante.

Todas estas dificuldades ínsitas aos quotidianos dos jovens romenos vão condensar-se na apresentação do caso de Mihaela, uma jovem romena emigrante em Portugal, cujo objetivo foi o de escapar às condicionantes estruturais do seu país. Uma análise, como a que José Machado Pais exibe, fundamentada na história de vida de uma jovem emigrante, alteia um conjunto de problemáticas relevantes que autorizam um entendimento profundo sobre as vivências relacionadas com a condição de emigrante em Portugal, especialmente no que se refere aos preceitos culturais. Partindo desta premissa, Machado Pais dá a conhecer a problemática da criação de perfis hipsográficos - propostos por Schultz (1962) - no sentido da perceção de conexões entre pontos que interliguem atitudes. Tais perfis são, portanto, essenciais para compreendermos as formas e os modos como os emigrantes vinculam os seus atos e elementos com os mesmos significados do país de acolhimento (Pais, 2020). Vejamos que os conhecimentos que são mobilizados dentro dos quotidianos podem não ser homogéneos, pois “em primeiro lugar, é um conhecimento incoerente na medida em que os interesses que determinam o significado do que se investiga não integram nenhum sistema coerente.” (Pais, 2020, p. 71). E mais ainda,

“As dificuldades de adaptação têm várias determinantes. Em primeiro lugar, qualquer sistema de orientação pressupõe que todos os que o utilizam contemplem o mundo à sua volta a partir de um centro que é ele mesmo. Como exemplifica Schütz, para utilizar com eficácia um mapa, devem desenhar-se primeiramente duas coordenadas: a situação em relação ao terreno e a situação em relação ao mapa. Transpondo a metáfora para o mundo social, isso significa que apenas os membros do endogrupo - os que têm um status definido na sua hierarquia e um conhecimento desse status - podem usar a sua matriz cultural como um sistema de orientação natural e confiável.” (Pais, 2020, p. 82).

No seguimento desta citação, Pais (2020) ainda nos refere que os padrões culturais e os mapas de significados do mundo social constituem um núcleo de sistemas coincidentes de interpretação e de expressão para os membros do endogrupo. Contudo para os emigrantes não existe uma unidade aparente, sendo indispensável que os padrões culturais tenham de ser traduzidos em função dos grupos de origem, caso os sentidos sejam equivalentes e, só depois da recolha de informações de função interpretativa dos novos padrões culturais, é que o emigrante pode começar por se adaptar. Existem, assim, duas fases de adaptação aos padrões culturais do país recetor: a primeira passa pela compreensão do padrão e a segunda assenta no domínio desse mesmo padrão. Partindo destes contributos face às diferenças dos padrões culturais, é-nos dado o exemplo da população brasileira, reenviando para outras dimensões pertinentes, especialmente no que se refere ao conceito de cidadania. Pais (2020) destaca que o arrebata a facilidade com que os brasileiros tratam outros por “cara”, no sentido em que lhes é reconhecida de forma implícita uma individualidade, mas com uma subjetividade inerente. A esta palavra está associado um estatuto de legitimidade, como por exemplo a expressão “cara legal”. Assim, falar de cidadania implica falar de “caras” que são sustentados por identidades individuais e por identidades grupais. Todavia, aquilo que é interessante é que a cidadania se referiu, tradicionalmente, a uma pessoa universalizada e impessoal. Logo, o autor propõe que o conceito de cidadania contemple e reconheça as diferenças, especialmente as dos que formam uma parte da ordem “normal”. Nesse caso, um tipo de cidadania que defende a autonomia do indivíduo implica um reconhecimento dos processos de afirmação identitária, de uma vontade própria e de um poder de decisão.

Paralelamente, cada vez mais o corpo se tornou, também, num cenário de anástrofes crescentes por parte dos jovens, no sentido em que estes se tatuam, drogam ou depilam, entre outras. Tais comportamentos são uma forma de expressividade e de sensibilidade (Negrin, 1999; Guerra et al., 2016). Estamos, então, perante um conjunto de identidades que se ritualizam socialmente e, nesse sentido, as tatuagens e os piercings, entre outros elementos, são marcas identitárias individuais e grupais (Ferreira, 2011; Guerra & Figueredo, 2020). Atentemos no facto de que “individualizam os corpos marcados, mas também demarcam e, portanto, carregam uma diversidade de afiliações de grupo (…), formas diversas de fazer o corpo falar, multiplicar sua capacidade de linguagem” (Pais, 2020, p. 93). Dentro de um cenário forte de reivindicação do direito ao uso livre do corpo, a cidadania questiona, de forma crescente, os domínios do self, do corpo, da sexualidade, refletindo uma individualização cultural. Aqui, topamos com a menção ao artigo “Jovens e cidadania” (Pais, 2005). Como expõe Giddens (1997), as temáticas relacionadas com a política da vida (Pais, 2020, p. 94), proporcionam uma agenda central para o indivíduo que é institucionalmente reprimido. É dentro deste panorama que assistimos, paulatinamente, a uma privatização dos dilemas das vivências quotidianas, dilemas esses que implicam a afirmação de identidades individuais em diversos planos do self. Deste modo, diversos movimentos sociais contemporâneos são manifestações de rebeldia face às normas institucionais da repressão que é exercida sobre a individualidade (Muggleton, 2000).

Quando pensamos no conceito de cidadania em relação aos jovens, este deve ter em si mesmo plasmado o discurso da vinculação e da integração, dando origem a um reconhecimento da diversidade (Sandoval, 2003), tornando-se imprescindível perspetivar os sentimentos de pertença das subjetividades que se invertem e subvertem nas relações de sociabilidade. Logo, tal como os demonstra Plummer (in Pais, 2020, p. 94), um entendimento cultural e social da cidadania da intimidade, contempla um universo de sentimentos e de fantasias que nos auxilia no entendimento da natureza das inversões emocionais dos jovens, quando se encontram inseridos num jogo de identidades. Mais ainda, Pais (2020) desvela que os indivíduos marginalizados são produtores de resistência, de criatividade e de formas reativas de cidadania cultural que se sublevam contra formas arcaicas de cidadania imposta. “Também vimos que alguns jovens - como skaters, graffiters, rappers, etc. - fazem do urbano um modo de vida dominado por sociabilidades minimalistas e expressivas. A expressão é uma forma de libertação: uma pressão que se exterioriza” (Pais, 2020, p. 107). Além disso, a rua também é reivindicada como um espaço de criatividade e de emancipação, no sentido em que as ritualidades juvenis assomam como uma espécie de celebração da diferença e da autonomia. Deste modo, as culturas juvenis não são apenas culturas de resistência, mas também formas de reivindicação de uma existência (Faria et al., 2018).

Fonte: https://www.amazon.com/J%C3%B3venes-creatividad-sombr%C3%ADos-conquista-Biblioteca/dp/8416737894

Partindo da ideia das culturas juvenis (Pais, 1993) enquanto culturas de resistência, a título exemplificativo, surge no capítulo “Cidadania e participação”, a investigação etnográfica que Machado Pais realizou em 2003 nos Açores. O autor comprovou que os jovens estudantes procuravam áreas de estudo que não existiam na ilha. Este caso mostra que as propostas de políticas de intervenção podem ser equívocas se não se basearem em estudos rigorosos sobre a realidade, daí que nesse sentido Pais (2020) contemple, nas suas abordagens, o conceito de grounded politics, isto é, políticas de intervenção que tenham sempre como referência os contextos vivenciais. Também vimos que as culturas juvenis reclamam uma cidadania diferente da que lhes é oferecida, daí que a sua performatividade pode ser lida como um sinal de inquietude por parte dos jovens com respeito a sistemas mais fechados. Nas culturas performativas, frequentemente incompreendidas, temos a fluidez de uma energia injustamente depreciada. Muitas das performances associadas às culturas juvenis são também manifestações de uma arte aberta. Se o conceito de cidadania pressupõe uma participação efetiva de filiação a uma comunidade, também de forma intrínseca perspetivamos a existência de um reconhecimento comunitário dessa mesma pertença.

“Isso significa que os «direitos», para serem reconhecidos, devem ser internalizados socialmente como viáveis na sua condição de possibilidade. Somos cidadãos na medida em que somos capazes de levar em conta a atitude do outro, num reconhecimento que pressupõe intersubjetividade, trajetória.” (Pais, 2020, p. 113).

Chegamos à quarta parte do livro, referente à obliquidade dos futuros: “Comics: a obliquidade em futuros por inventar”. Alguns estudos sugerem que os jovens se movem relativamente bem dentro dos campos de possibilidades, especialmente no que concerne à profissionalização da criatividade e à criativização da profissão, sendo estes os denominados trendsetters. Os jovens que criam as suas tendências desenvolvem uma atitude estratégica face à aprendizagem, no sentido em que combinam uma parte do capital cultural adquirido pela via formal com a aquisição de conhecimentos pela via informal (redes sociais, por exemplo). As suas aprendizagens, de natureza cumulativa, beneficiam da interpenetração de diferentes esferas da vida: escola, trabalho e ofício. Estes são jovens que, em geral, possuem um capital cultural bom ou razoável e, quando empreendem num negócio, estes possuem uma boa retaguarda familiar. Quanto ao caso português, ainda encontramos jovens que, apesar da sua situação de marginalidade, mostraram que conseguiam profissionalizar a sua criatividade, como é o caso dos disc jockeys, por exemplo.

“O contato com jovens que criam banda desenhada levou-me à decisão de tomá-los como objeto de estudo, pois, em conversas informais, percebi que, embora alimentassem o sonho de se profissionalizarem em ilustradores, viam nisso uma possibilidade de controlo remoto das suas vidas” (Pais, 2020, p. 121).

Na medida em que se verifica a atuação de processos de obliquidade, torna-se possível explorar pontes inovadoras entre vocação e profissão e, quanto aos criadores de comics, Pais (2020) verifica que muitos deles veem a profissionalização da sua atividade como uma forma de desvirtualizar a sua vocação. Para a realização do estudo, o autor baseou-se na aplicação de entrevistas exaustivas a nove criadores de comics, com idades compreendidas entre os 21 e os 37 anos. Além disso, também analisou blogues e páginas de Internet que contavam com a participação destes jovens. Na parte final do estudo, foi pedido aos jovens que criassem um desenho da sua vida, uma espécie de autobiografia dentro de uma espécie de género alternativo. Essencialmente, pretendia-se que os indivíduos fossem objeto da sua própria atuação. No fundo, era desejável saber até que ponto é que estes comics podem ser vistos como uma reprodução dos próprios jovens. Quando Pais (2020) tomou a decisão de estudar os jovens ilustradores de comics, o autor pensou que o mais adequado era inserir-se no universo destes jovens, sendo que o autor considerava que essa era a melhor forma para compreender as suas histórias e os seus vocabulários.

A ideia de que a personagem imaginada é uma construção presenteia o ensejo de se interrogar como cada um se transforma num “outro” cuja existência depende de si mesmo. Através dos jovens que produzem uma história em que os criadores criam a narrativa de sujeitos duplos: enquanto narradores e enquanto objetos de narração. Assim, “nos desenhos que se pressupõem autobiográficos, o autor dialoga consigo mesmo, com um «eu» que se transforma em si mesmo” (Pais, 2020, p. 124). Na sua história de vida, um dos jovens analisados - Ricardo Venâncio - mostra-se no seu comic como um sujeito inserido dentro de uma ilha de criatividade. O gosto pelos comics nem sempre se deve às relações familiares. Nas sociedades tradicionais, os talentos artísticos e artesanais apenas dependiam das capacidades individuais, mas também de heranças culturais. Neste sentido, as habilidades transmitiam-se de geração em geração e, desse modo, os jovens despontavam como herdeiros dos seus antepassados e semelhantes. A associação com a droga que era expressa em alguns dos comics era explicada pela dependência, mas também como uma representação do estigma quanto ao consumo. A paixão pelos comics era de tal magnitude que muitos dos jovens relutavam a deixá-los, mesmo que seguissem outro rumo profissional. Vejamos que “a criatividade na criação de comics tem suas especificidades e evidencia, é claro, dificuldades em se afirmar como arte, uma vez que a sua legitimidade é muitas vezes questionada pela cultura letrada” (Pais, 2020, p. 128). Desta feita, a arte dos comics arrosta o desafio de superação de fronteiras, especialmente quanto à divisão entre a alta e a baixa cultura. Nas sociedades em que se reconhece um estatuto artístico aos comics, tendencialmente estes aparecem como um submundo onde se torna possível afirmar uma identidade e um reconhecimento do género, que seja válido tanto para os criadores como para os seus leitores. Assim:

“Uns e outros veem nos comics um constante apelo à imaginação, um convite a viajar para outros mundos por meio de uma sequência de imagens, por uma transmutação de identidades que enriquece o conhecimento de si ao se colocar no lugar do outro, de qualquer personagem de comics” (Pais, 2020, p. 129).

A intensificação dos modos de vida também se manifesta nas histórias de vida que os jovens contam com os seus comics e, nesse sentido, Dubar (2007) refere a existência de uma identidade polifónica, que resulta do jovem como criador, tratando-se de uma tensão que é vivida subjetivamente e que parece reivindicar uma bifurcação do tempo (lazer e trabalho), dando lugar a outra temporalidade, a da criatividade (Pancot & Lusiani, 2021). Atentemos ao facto de que “as heterocronias saltam dos eixos das temporalidades sucessivas, narrativas e lineares. São uma marca da turbulência das temporalidades que se entrelaçam no turbilhão do caos da existência” (Pais, 2020, p. 130). Outro artista alvo de análise - Ana Saúde - demonstra nos seus comics que existe uma tensão entre identidade e subjetividade que se geram de uma maneira oblíqua. A obliquidade também se encontra assim no cerne da arte do comic e, assim, essa expressão tem lugar num domínio de hipertextualidade, cuja suposição é ir além dos limites daquilo que é figurado. A composição dos comics está relacionada com uma liberdade de experimentação, isto é, trata-se de uma atuação da obliquidade, tratando-se de um continuum entre o papel e a vida real, entre experiências e vivências. A própria atuação da obliquidade é a que leva os jovens a desenvolver um conhecimento baseado na criatividade. Estamos, assim, perante uma alquimia da interconetividade. Neste ponto do livro, Machado Pais narra a importância do impulso criativo nos comics no âmbito das trajetórias de vida dos artistas que os criam, sendo que a vida surge representada como uma duração (Bergson, 1985). Logo, as vinhetas dos comics ostentadas surgem interconectadas e balizadas a uma duração que, como no caso das histórias de vida, excluem uma repetição: “estamos defronte uma arte aberta ao devir, assim como a vida está aberta à experiência” (Pais, 2020, p. 134). A descodificação e o entendimento das vinhetas e das histórias de vida, implica reconhecer que existem aspetos que são ocultos (McCloud, 1993), possuindo assim - no caso das vinhetas - um hiato aparente, uma espécie de elipse que representa um desafio para a interpretação das conexões das narrativas. Assim, nos comics e nas histórias de vida, surge a intenção da linearidade, apesar de a vida ser feita de descontinuidades e de movimentos que são reversíveis. No caso dos comics de Pedro Manaças, as vinhetas emergem como um instrumento que explora os modos como funcionam os mecanismos de autoria - “neles vemos refletida a confluência do autor com o narrador e o personagem” (Pais, 2020, p. 136). Pedro Manaças tipifica a sua trajetória de vida marcada por uma singularidade significativa, no sentido em que as artes e os comics sempre marcaram a sua infância. Contudo, este nunca teve formação profissional, tendo aprendido sozinho, porém também não pretende profissionalizar a sua criatividade. Manaças também fez parte de várias bandas de garagem e, posteriormente, foi um membro integrante de um grupo de hip-hop. Manegas é o seu personagem mais famoso e Manaças descreve-o como “um adolescente que abandonou a escola para ingressar no mundo do trabalho. Rebelde e... apaixonado. Ele trabalha horas extras como vocalista da banda de metal Room, surfa nas horas vagas e é preguiçoso quando se trata de começar a trabalhar” (Pais, 2020, p. 138). No sentido em que Manaças nunca quis profissionalizar a sua atividade criativa, o mesmo refere a intenção de preservar realidades múltiplas (Schultz, 1962) para ser possível trabalhar de forma oblíqua sobre elas. O autor ainda refere a existência de uma espécie de solidariedade icónica que agrega os criadores de banda desenhada. Os comics encontram uma estética e uma semântica que é determinada pela coexistência dentro de uma estrutura do sentido, daí que os meios digitais tenham vindo a assumir uma importância crescente. Por outro lado, os artistas também se unificam com a intenção de descobrir novos sentidos para os seus comics. Estes permitem expressar a subjetividade de modo criativo, porém também questionam como é que processa o equilíbrio entre a realização pessoal e a sobrevivência económica. “de facto, pelo menos em Portugal, os criadores de banda desenhada de hoje enfrentam o problema de não terem uma população jovem adolescente tão entusiasta como a que existia nas décadas de 1950 e 1960” (Pais, 2020, p. 143).

Existem inúmeros constrangimentos que são vivenciados por jovens artistas. Por um lado, estes devem fazer um esforço superior para retirar os comics do universo da (sub)-literatura de consumo, no sentido em que sentem a necessidade de se afirmarem, para que a sua criação seja reconhecida enquanto uma forma de arte. Para o caso da profissionalização, é-lhes pedido que os trabalhos sejam realizados com rapidez, mas, depois, os pagamentos não padecem da mesma condição, contribuindo para a precariedade dos artistas. Paralelamente, em Portugal, é reconhecido pelos artistas que existe uma falta de reconhecimento e de sensibilidade empresarial para a criatividade. Outro caso apresentado é o de Cláudio, um jovem brasileiro que emigrou para Lisboa, deixando a sua mulher e filho além-mar em busca de uma oportunidade de vida melhor. Na banda desenhada sobre a sua história de vida, Cláudio compilou diversas vinhetas de audácia criativa, com o intuito de criar um personagem: uma hamburgueria vegetariana. Mais tarde, Cláudio acaba, de facto, por abrir um restaurante vegetariano. Assim, da mesma forma que Pais nos refere que as histórias são uma arte sequencial, também o mesmo pode ser dito das suas trajetórias profissionais.

Por fim, na última parte do livro - e após terem sido apresentados os estudos de caso em relação aos comics e aos jovens artistas - Machado Pais ainda faz algumas reflexões sobre as realidades que experimentam muitos jovens africanos, entrando numa tipologia de análise sobre os modos vivenciais distinta, relacionada com outros tipos de contextos não ocidentais. Estamos no capítulo 5, justamente cognominado “De que será feito o amanhã para os jovens de hoje?” Um dos casos analisados é o de Guiné-Bissau, focando nos processos de inversões corporais. Estes jovens traçam imagens de ocidentalização, no sentido em que os amuletos são substituídos por perfumes e telemóveis. Reparemos que “se pode até falar de um pós-colonialismo cultural em que o branku [branco] aparece como um ícone de referência cultural que deve ser imitado” (Pais, 2020, p. 163). Assiste-se a um processo progressivo de ocidentalização, dado que até os jovens dos locais mais remotos do mundo e desfavorecidos, como é o caso do Senegal, revelam o desejo de se interconectarem através dos meios digitais (Guerra, 2021). É inegável que atualmente os jovens encontram na comunicação móvel uma forma de expressão e de afirmação e, apesar de a maioria destes jovens ainda viver fora da cultura digital (Pais, 2006), vivida pelos países ocidentalizados, os mesmos encontram a sua expressão no rap crioulo, por exemplo, onde a palavra cantada é uma forma de denunciar as dificuldades sociais. Para perspetivar tais questões, José Machado Pais aborda a importância da relação entre crise e futuro, mas também as dicotomias entre rumos sociais e trajetos educacionais. Compreende-se que a crise pode ser aclarada como um efeito crítico de destabilização ou de uma fratura de uma ordem económica ou social. A anomalia advém de uma conceção de crise que considera a rutura com uma suposta normalidade que, passo a passo, seria reposta. Aqui, o autor apresenta diversas ideias sobre como devemos ou podemos entender a crise, sendo de enfatizar a perceção da mesma enquanto contexto, tornando-se imprescindível estabelecer uma análise da contextualização histórica da crise e das formas de superação da mesma. A imprevisibilidade e a incerteza do futuro são aspetos diferentes do conceito de crise, dado que nos encontramos perante noções de um contexto futuro de possibilidades e, por sua vez, esses futuros são marcados pela incerteza e pela imprevisibilidade.

Prosseguindo esta abordagem, Machado Pais avança com o facto de que o absentismo escolar perdura em países pobres e continua a afetar muitos jovens, especialmente jovens africanos. Dentro do campo dos rumos sociais e dos percursos educacionais não existe apenas uma alternativa. Devemos, pelo contrário, entender que existe uma pluralidade de pontos de vista e de disciplinas. Outro desafio educativo relaciona-se com a valorização da riqueza das experiências educativas que, na sua diversidade, podem oferecer uma resposta à heterogeneidade da população escolar: basta ter em mente os povos indígenas e a importância das suas narrativas orais. Por outro lado, as identidades juvenis caracterizam-se pela incerteza, pela fragmentação e pela dispersão (Ehrenberg, 1995). Desse modo, as novas configurações subjetivas entre os jovens requerem orientações pedagógicas que valorizem as suas implicações nas culturas expressivas e o principal objetivo é que se faça uma relação entre estas configurações e as suas experiências de natureza reflexiva. Por isso é que a educação desempenha um papel relevante no desenrolar de uma cultura feita de dádivas mútuas (Darder, 2017). Além destes entraves e desafios, também as tecnologias digitais criam constrangimentos de diversa ordem, daí que se afirme que as novas tecnologias também devam ser um instrumento de apoio pedagógico, uma vez que estas fomentam as conexões entre diferentes culturas, proporcionando novas lógicas de trabalho: “o crescente individualismo contemporâneo não impede o (re)surgimento, principalmente entre os jovens, de formas coletivas de participação social que permitem a afirmação de subjetividades sociocêntricas” (Pais, 2020, p. 190). Em suma, ao falarmos em novas culturas e de novos trabalhos, não devemos deixar de questionar o surgimento de um novo ethos criativo entre os jovens da atualidade (Florida, 2012) que se encontra presente em diversos segmentos juvenis, visto que “esses jovens «criativos» atuam no campo das artes, dos livros, da música e das tecnologias digitais, explorando redes de cooperação que prevalecem nas chamadas indústrias culturais” (Pais, 2020, p. 196).

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